Pedro, o progressista: o outro mito do imperador
Duas semanas atrás, os historiadores Thiago Krause e Paulo Pachá falaram do uso nostálgico da história do Império pela extrema direita. Queria aproveitar a deixa, meio atrasado, para falar para outro lado desse mito, que atinge a outro tipo de pessoa, gente até de centro-esquerda: a ideia de que D. Pedro II foi um anti-déspota e esclarecido. Nosso Papai Noel no poder, o bom velhinho da tolerância e conciliação nacional. Uma força da democracia e do progresso, destituído por um golpe militar que abriu um precedente maldito, o da República tutelada.
Pedro, o democrata, teria evitado fazer uso de seus consideráveis poderes, governando como monarca constitucional moderno, deixando a política correr como um regime parlamentarista constitucional. O monarca também odiaria a escravidão, era um abolicionista constrito pelas limitações do sistema. Também fã de ciências e arqueologia, poliglota, muito lido, que até mesmo, em seus diário, registrou que a república era uma forma superior de governo que a monarquia. Um homem exasperado com um país que não avançava, apesar de seus desejos.
Enfim, ironicamente para os monarquistas atuais, Pedro II não poderia ser classificado como um conservador. Não para sua época.
Em sua época, o Pedro liberal tinha entre seus fieis gente com a cabeça considerada arejada para a época, como o abolicionista e secularista Joaquim Nabuco. A ideia foi reforçada por biografias relativamente recentes focadas na pessoa do imperador, como a de Paulo Rezutti e a de José Murilo de Carvalho.
Não há nada de errado em retratar o ser humano em suas contradições. É uma verdade histórica como outras. Mas há o risco de criar uma mitologia sem querer. Conhecendo Pedro enquanto humano, é fácil ser tentado a ver nele uma figura que não corresponde a suas ações.
Podemos discutir por dias o que Pedro II queria pessoalmente, se ele era mesmo essa figura avançada, e até especular se repudiaria seus descendentes retrógrados. Mas o que condena o Pedro liberal é o que foi seu governo na prática, no que implica esse “constitucionalismo democrático” todo dele. Assumindo um país em guerra civil, Pedro batalhou até a exaustão para moderar facções e evitar conflito, de forma a manter a integridade nacional. Esse é um mérito que se levanta dele, mas será mesmo mérito a moderação em face ao intolerável? O Segundo Reinado foi uma paz escravocrata, o que inclui medidas altamente pró-escravidão, como aceitar a continuidade do tráfico ilegal e mostrar simpatia para com os confederados na Guerra Civil Americana, até aceitar refugiados entre eles por aqui.
Se o monarca era mesmo tão arejado das ideias (não estou descartando nem aceitando essa possibilidade aqui; esse é outro tema), ele traiu o que acreditava em nome da estabilidade. Lutar pela estabilidade de uma situação iníqua é um mal. Isso não é grandeza.
A “moderação” de Pedro serviu para sermos o último país do continente americano a abolir a escravidão. O resultado foi a continuidade da tortura e cativeiro de milhões, por gerações, e o atraso econômico e social que segue ainda hoje. Se é uma trágica ironia para um monarca abolicionista, tanto faz. Esse é o triste presente que nos deixou o triste “bom velhinho”.