A primeira vítima da ditadura militar: os militares
O primeiro sangue derramado pela ditadura foi o do tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, morto em 4 de abril de 1964 por uma rajada de metralhadora pelas costas. Os tiros partiram de seus companheiros militares, por se recusar a apoiar o golpe. Sua posição de paciente zero foi reconhecida pela Justiça do Brasil em março de 2019.
Alfeu era parte de um grupo de vítimas da ditadura menos lembrado: o dos próprios militares. Quando a ditadura assumiu, imediatamente passou a um expurgo em suas forças, com o Ato Complementar nº 3, de 11 de abril, expulsando 122 oficiais de diversas patentes. Na alta cúpula, até 1966, seriam expulsos 24 dos 91 oficiais com patente de general ou equivalente. A perseguição atingiria, segundo a Comissão Nacional da Verdade, até 7.500 militares, entre expulsos, presos, torturados e assassinados.
E isso é outra parte menos lembrada do surgimento da ditadura: não era só uma disputa envolvendo João Goulart e a esquerda civil, de um lado, e os militares a direita civil, do outro. Era uma disputa também entre militares e militares. Havia uma ala pró-Goulart juntando nacionalistas e esquerdistas, que era forte na baixa patente, bastante ruidosa e teve suas vitórias. A própria posse de Goulart, em 1961, aconteceu em grande parte pelo apoio de militares dessa ala, que aderiram à Campanha da Legalidade de Leonel Brizola, contra a outra ala ameaçando fechar o congresso, segundo a denúncia do jornalista Carlos Lacerda, liderança conservadora que acabaria por apoiar o golpe em 64, para se arrepender. (A bem da verdade, a posse de Jango foi mais um “empate”: assumiu como presidente num regime parlamentarista aprovado às pressas, que seria revogado em janeiro de 1963 após um plebiscito.)
Nos anos que seguiram, os militares se polarizaram entre contra e a favor de Jango, culminando na Revolta dos Sargentos, em 12 de setembro de 1963, quando cerca de 600 militares de baixa patente se rebelaram em Brasília, prenderam adversários, inclusive um ministro do Supremo Tribunal Federal, cortaram as comunicações da cidade e tomaram o Departamento Federal de Segurança Pública e o Ministério da Marinha. A razão da revolta havia sido uma decisão do STF de considerar ilegal a eleição de militares a cargos legislativos em 1962. Esses militares representavam principalmente o movimento pró-Goulart.
Sem conquistar adesão em massa e por erros de comunicação, a revolta foi aniquilada. Seus líderes foram enviados a um navio-prisão na Baía de Guanabara.
Mas o clima de rebelião continuou. No que Elio Gaspari e diversos historiadores consideraram o principal estopim da ditadura, em 25 de março de 1964, foi a vez da Marinha. Em 24 de março, o almirante Sílvio Mota, ministro da marinha de João Goulart, decretou a prisão dos líderes da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, um sindicato considerado ilegal, que apoiava ferrenhamente o presidente. Em desafio, a associação celebrou seu aniversário no dia seguinte, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, com os líderes condenados. Os membros do Corpo de Fuzileiros Navais enviados para prendê-los aderiram ao movimento, como apoio de seu comandante, o vice-almirante vice-almirante Cândido Aragão. Humilhado, Mota pediu demissão, assumindo no lugar o almirante pró-rebeldes, pró-Jango, Paulo Mário da Cunha Rodrigues, que daria anistia a todos os rebelados no dia 27, para no dia 28 desfilarem pelas ruas do Rio. Mota, Aragão e Rodrigues seriam exonerados após o golpe. O vice-almirante dos fuzileiros, Aragão, aos seus 56 anos, chegaria a perder um olho sob torturas.
Assim foram os últimos dias da democracia. Os líderes do golpe deram também um golpe nas Forças Armadas. A guerra civil que nunca aconteceu foi ainda assim vencida e os militares à esquerda, destruídos. Sem o expurgo feito pela da direita militar, física e ideologicamente, das figuras militares que se opuseram ao golpe, seria difícil de imaginar quarteis ensinando ainda hoje que 1964 foi um “marco para a democracia“. Assim como o apoio com que um presidente como Bolsonaro ainda conta nas forças. Apologistas da ditadura raramente incluem em sua narrativa que os “comunistas” dos quais, a seu ver, salvaram a democracia, eram, em grande parte, outros militares.
A atual cultura militar do Brasil não é natural da profissão. É um legado da ditadura.