Caso Evandro: caça às bruxas nos anos 1990?
O assunto veio à tona hoje por conta do suposto envolvimento de Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro na casa de quem Fabrício Queiroz foi preso esta manhã. Em 1992, ele próprio chegou a ter sua prisão requerida, acusado de participar de uma seita que teria feito dois “rituais satânicos” homicidas.
Foi o caso chamado de Bruxas de Guaratuba. Um caso que parece ter tido todas características, o rigor (sua ausência) e a fantasia dos julgamentos de bruxaria da Idade Média.
Poderia ser só uma história medonha de serial killer. Em 6 de abril de 1992, o menino Evandro Ramos Caetano desapareceu em Guaratuba, Paraná. Cinco dias depois, seu corpo foi encontrado em com indícios de uma morte brutal: peito aberto, sem vísceras, olhos perfurados, mãos amputadas, escalpo tirado. Dias depois, o pai de santo Osvaldo Marcineiro confessou ter matado a criança num ritual satânico, por encomenda da esposa e filha do prefeito da cidade, Celina e Beatriz Abagge – as “bruxas”, que afirmaram estar esperando ganhar prosperidade com isso. Eles e outros faziam parte do Centro Espírita Beneficiente Abassá Deoe. As “bruxas” confirmaram o depoimento do pai de santo. Outro caso que havia acontecido dois meses antes, o desaparecimento de outro menino, Leandro Bossi, cujo corpo não fora encontrado, entrou na investigação – foi então que Wassef, que era parte do grupo religioso, e esteve no hotel onde trabalhava a mãe de Leandro, teve sua prisão requerida pelo delegado responsável pelo caso. Wassef não chegou a ser preso, mas sua casa em Atibaia, São Paulo, foi revistada.
E depois retiraram a confissão. Aqui começam as semelhanças com a Idade Média: a população revoltada foi às ruas, emulando naquele estereótipo de multidão com tochas e forcados, para atacar a prefeitura e a casa do prefeito. As pessoas acusadas afirmaram que foram torturadas para confessar sua “bruxaria” – e entregar outros “bruxos”. Também disseram que, na cadeia, onde ficaram entre 1992 e 1995, os guardas temiam que fossem se transformar em uma nuvem de fumaça e escapar, por isso fechavam a solda a janela da cela. E que, em outra ocasião, os guardas se jogaram no chão por medo da lua poder empoderar seus feitiços.
Em 1998, acabaram inocentadas do caso, em júri popular, que durou 34 dias. No ano seguinte, o julgamento foi suspenso, e retomado novamente em 2011, quando Beatriz acabou condenada a 21 anos e 4 meses (a mãe foi dispensada pela idade avançada). Em 2016, Celina perdoada pelo Tribunal de Justiça do Paraná, pelo caso ser considerado muito frágil. Em meio a isso, Osvaldo Marcineiro, mais o pintor Vicente Paulo Ferreira e o artesão Davi dos Santos Soares foram condenados.
Em março passado, o jornalista Ivan Mizanzuk, que cobriu extensivamente o caso em seu podcast Projeto Humanos – Caso Evandro, mostrou as gravações do interrogatório, que tinham evidências que ele considerou conclusivas de todas as confissões terem ocorrido sob tortura.
Certamente a criança parece ter sido assassinada em condições brutais, num crime horrendo. Mas o caso, como foi reportado e investigado, é imensamente suspeito, não só pela tortura e ideias supersticiosas, como a menção a religiões afro-brasileiras. Isso é mais uma semelhança com a Era Medieval: lembra um libelo de sangue, a acusação de sacrifício infantil que era feita contra os judeus da cidade, terminando em pogrom (massacre). O pai de santo, pelo racismo religioso brasileiro, ocupa o lugar do judeu.
PÂNICO SATÂNICO
E há ainda o contexto internacional. Em 1992, vivia-se o pânico moral de seita satanista. A onda começou nos Estados Unidos, em 1980, com o lançamento do livro Michelle Remembers, do psiquiatra canadense Lawrence Pazder. Nele, ele falava de uma paciente sua, a Michelle (Smith) do título, que, sofrendo de depressão, lembrou-se durante hipnose que sua mãe, entre 1954 e 1955, quando Michelle tinha 5 anos de idade, participava de um culto satânico, que fora abusada pelos membros, e que eram parte de um vasto grupo de satanistas. Pazder cunhou o termo “abuso ritual” para descrever a categoria dos crimes como os de Michelle, e, em setembro de 1990, afirmou em uma entrevista já ter desvendado “mais de 1000 casos”.
O livro deu um véu científico para uma outra onda do final dos anos 70, na cola do televangelismo: a de “ex-satanistas”, todos então fundamentalistas evangélicos, que diziam haver uma vasta rede de satanismo pelo país.
A história de Michelle simplesmente não batia com os fatos. Isso não impediu de, ao longo dos anos 80, mais de 12 mil casos terminassem investigados nos EUA, em acusações como prostituição forçada, tráfico de drogas, pornografia, abuso sexual, tortura, necrofilia, coprofilia, canibalismo de fetos… enfim, tudo de ruim em nome do Coisa Ruim. Nesses casos todos, jamais se provou haver uma real organização religiosa satanista, mas alguns casos reais partindo de indivíduos perturbados – psicopatas. As grande maioria das acusações partiam de crianças ou de pessoas relembrando “memórias reprimidas” sob hipnose, num contexto evangélico radical. Dezenas de pessoas foram presas sem provas definitivas, sob a acusação de participar da “rede satânica”, e várias continuam ainda hoje.
A ideia era parte da cultura popular mundial. Foi exportada para outros países e terminou sendo considerada pela grande maioria dos acadêmicos como um caso de pânico moral: um medo irracional e fantasioso da sociedade quase inteira, gerando uma teoria da conspiração socialmente aceita, que vai parar na grande imprensa. Como caça às bruxas original. E a maior prova é que quase não se ouve mais ouve falar disso hoje.
Erramos: o texto foi alterado
Wassef foi teve sua prisão decretada na investigação de Leandro Bossi, não Evandro Ramos Caetano, como parecia na versão inicial.