Pare de dizer milícia; o nome é máfia

Milícia é atualmente a palavra mais nociva do português brasileiro. É preciso urgentemente parar de usá-la. A Folha devia parar. Todo mundo devia.

A dita “milícia” do Rio de Janeiro (daqui por diante, só com aspas) merece ser chamada simplesmente de Máfia do Rio de Janeiro (com maiúsculas, como Cosa Nostra e Camorra). Enquanto os traficantes são outra forma de crime organizado presente na cidade, eles não tem o alcance no Estado e negócios típico de organizações que são chamadas de “máfia” pelo mundo afora. Nenhum político apareceu dizendo para legalizar o narcotráfico. E talvez nem Flávio Bolsonaro ousasse se estivéssemos falando a palavra certa.

A “milícia” se parece inclusive com a mais clássica das máfias. A definição talvez mais canônica de máfia é no Código Penal Italiano. O artigo 416-bis diz que uma organização pode ser caracterizada como mafiosa se:

Aqueles que pertencem à associação exploram o potencial para intimidação que sua condição de associados permite, e a obediência e omertà que deriva dessa condição leva à prática de crimes, ao controle direto ou indireto da administração ou liderança de atividades financeiras, concessões, permissões, negócios, e serviços públicos, com o propósito de conseguir lucro ou vantagens injustas para si próprios ou outros.

A única coisa acima que não parece se aplicar à Máfia do Rio é a omertà, nome usado para o pacto de silêncio da máfia italiana. Mas não é como se alguém pudesse sair da “milícia” apontando os nomes de seus membros secretos sem consequências. Não teria sido a morte do mafioso Adriano, herói de Bolsonaro, uma ação para impor a omertà?

PALAVRA MALDITA

Mas o que é uma milícia? É uma força paramilitar, civis reunidos para alguma atividade militar. Milícias de cidadãos começaram a Revolução Americana, em 1776 – e o termo “milícia bem organizada” está até hoje na Constituição dos EUA. Milícia também era a Guarda Vermelha dos bolcheviques, em 1917, e a União Soviética e a Iugoslávia comunista chamavam suas forças policiais de “milícia”. A “milícia” do Rio ganhou esse nome porque se organizaram para conquistar morros do narcotráfico, e já eram membros de organizações militares ou paramilitares, como a PM. Mas isso sempre transmitiu a ideia errada: eles não tomaram os morros para trazê-los ao Império da Lei, mas fizeram uma conquista de território de organizações rivais, típica de máfias, que rendeu e rende a eles muito lucro. E uma máfia com origem militar não merece ser chamada de outra forma: a Máfia Russa foi formada principalmente por ex-agentes da KGB e veteranos da Guerra do Afeganistão. Ninguém chama de “milícia russa”.

Se fosse só um erro semântico, não faria sentido eu chamar de “palavra mais nociva da língua portuguesa”. Mas a palavra “milícia” distorce grotescamente a gravidade e o significado do que estamos falando. O brasileiro, em geral, não tem nada contra militar: as Forças Armadas seguem sendo a organização mais bem-avaliada do país. “Milícia”, assim, particularmente para quem não é do Rio, dá um certo ar de dignidade, de guerreiro com uma causa, à Máfia Carioca. Não é difícil ler como um grupo de policiais particularmente durões, à Dirty Harry, que foi contra as leis “frouxas”, baseadas nos “direitos humanos”, para derrotar o narcotráfico – certamente a Máfia prefere ser vista assim.

E isso se reflete na situação política do Brasil. A Máfia matou Marielle Franco. Porque investigava a Máfia, não porque queria prender um grupo de policiais excessivamente durões em nome dos direitos humanos de “esquerda”.

O extremismo de direita brasileiro tem como uma de suas causas principais o combate ao crime pela via da brutalidade policial e a “milícia” é intimamente ligada com essa brutalidade. A brutalidade é a escola da intimidação. E uma forma como um policial, mesmo se “honesto”, torna-se um fora da lei, dando um trunfo para a Máfia recrutá-lo: o medo da punição. Não sabemos se e quanto a Máfia Carioca está infiltrada nas outras polícias. Mas os métodos do motim no Ceará –fechar o comércio, intimidar –são típicos da Máfia.

É parte da cultura popular, amplamente reproduzida em programas policialescos, que a solução para o crime é esse policial criminoso. E esses programas provavelmente são muito maiores que Olavo de Carvalho ou memes no WhatsApp em propagar a extrema direita no Brasil. Eles o tem feito por décadas. O maior ponto de aprovação de nosso governo extremista é justamente sua política de segurança. Política que se resumiu, basicamente, a tentar tornar mais difícil a punição a abusos policiais, o ponto mais central do Pacote Anticrime. Que não passou. Então a “política” tem sido um espírito de liberou geral nas forças policiais. PMs são estaduais e não respondem ao presidente, mas se sentem justificadas por suas palavras (e as do governador carioca e de outros extremistas ou plagiários). Os números da violência policial provam isso.

Essa impressão de dureza contra o crime segue firme diante de uma suspeita extremamente grave, na direção oposta: a de que a família presidencial, incluindo possivelmente o próprio mandatário da nação, está ou esteve ligada com as… “milícias”? PMs durões? Quem liga?

A família presidencial é suspeita de ligação com a Máfia Carioca.

Enquanto usarmos a palavra errada, o brasileiro médio não vai acordar para o fato de que estamos discutindo se o Brasil não elegeu a máfia para combater o crime.