Por que devíamos parar de falar em ‘pisoteamento’

Não é exatamente um post de história, mas alguém tem que dizer. “Pisoteamento” não só não descreve a realidade, como é um insulto às vítimas. Jamais deveria ser usado para descrever catástrofes como a causada pela PM de São Paulo na favela de Paraisópolis.

E é um tema bem estudado, porque tem uma longa história. Aconteceu na Tragédia de Khodynka, na qual 1.389 russos morreram na nada auspiciosa festa de coroação do czar Nicolau II – o que seria morto pelos bolcheviques. Atiçada pelos presentes do Czar, a multidão, que congregava 500 mil pessoas, acabou prensando as vítimas contra as cercas de contenção. Também em 1989, numa partida de futebol no estádio de Hillsbourgh, Sheffield, Inglaterra, por falta de coordenação na entrada: 96 mortos. E, recentemente, em 2015, em Meca, na peregrinação (Hajj) de 2015, quando um grupo grande tomou um caminho errado e se espremeu contra outra indo na direção contrária, numa rua, causando o pior caso conhecido: 2.177 mortos.

A palavra “pisoteamento” parece culpar as vítimas, que saem parecendo um bando tão egoísta e irracional que pisa em gente ferida até a morte. Em 2015, diante do desastre no Hajj de Meca, o matemático e engenheiro Edwin Galea, professor da Universidade de Greenwhich (Reino Unido), falou ao jornal The Guardian sobre o tema. Ele se afirmou ofendido com termos como “pisoteamento” ou, comum na mídia em inglês, “estouro”. “Isso é um completo nonsense”, afirmou ao jornalista Leo Benedictus. “Pura ignorância e preguiça… passa a impressão de uma multidão descerebrada importando-se só consigo mesmos”.

Galea deixa claro que desastres assim acontecem com pessoas racionais, que não tem escolha. E quase nunca as vítimas morrem por alguém pisando em cima, mas por asfixia. Esse foi o resultado do laudo das vítimas do “pisoteamento” em Paraisópolis.

CATÁSTROFE INVOLUNTÁRIA

Segue-se uma descrição algo mórbida (esteja avisado) do que realmente acontece, por Galea e outros especialistas. Começa com uma multidão se movendo numa direção, mas sendo bloqueada de um lado, ou tendo fluxo insuficiente. Uma causa comum são incêndios: foi parte da tragédia da Boate Kiss, em 2013, na qual a saída acabou bloqueada. Outra é serem forçadas: em 2 de outubro de 2016, num protesto na Etiópia, até 678 morreram pela ação indireta da polícia, que disparou com o que acreditavam (mas as autoridades negaram) ser balas reais. Mesmo quando é um movimento voluntário, as pessoas que estão atrás simplesmente não tem como saber o que está acontecendo. Elas chegam no que parece uma fila normal, tentam tomar seu lugar e, quando percebem, estão espremidas e sem capacidade de voltar.

A partir de uma densidade de 4 pessoas por metro quadrado – o que não é incomum no transporte público –, a situação fica progressivamente mais desesperadora. As pessoas se sentem tocadas por corpos em todas as direções, depois não conseguem mais levantar os braços, por fim a multidão passa a se mover por ondas de choque, uma pressão entre os corpos que passa do começo da fila adiante, sem que ninguém se mova voluntariamente. Até que alguns não consigam mais respirar ou, no caso de Meca, no qual a temperatura passava dos 40 graus, têm crise de hipertermia.

Quando as primeiras pessoas tombam, um buraco pode ser formar nessa multidão compactada. Quem está em volta simplesmente é jogado por cima pela pressão e logo coberto por mais gente, sem que ninguém tenha decidido, mesmo irracionalmente, pisar em ninguém.

O que usar no lugar? Especialistas como Galea preferem falar em “esmagamento” ou “colapso de multidão”. Isso passa a impressão – correta – de um desastre involuntário com uma causa externa.