Morte pelo correio: o mistério dos ataques de antraz de 2001

Em 19 de setembro de 2001, uma semana e um dia após atentado das torres gêmeas, cinco cartas chegavam a meios jornalísticos dos EUA. Uma era destinada à America Media Inc., em Boca Ratón, região metropolitana de Miami, Flórida. As outras quatro, aos telejornais da ABC News, da CBS News, da NBC News, e ao jornal impresso The New York Post, todos em Nova York. Dentro delas, uma mensagem ameaçadora e um pó branco, contendo esporos de uma versão militarizada do Bacillus anthracis – causador do antraz (ou carbúnculo), infecção bacteriana extremamente letal em sua versão respiratória.

E… nada. O dia terminaria sem que ninguém se desse conta do que havia acontecido. Provavelmente foi dispensado como ainda mais outro boato, na onda dos atentados do WTC, na qual uma maré de engraçadinhos havia começado a mandar e-mails, telefonemas e cartas ameaçadoras a meios de comunicação, fingindo ser terroristas islâmicos. E essas não pareciam diferentes. Dentro delas, havia a mensagem, com erro de ortografia:

Carta de antraz à NBC
Carta com antraz enviada à NBC (Governo dos EUA/Domínio Público)

Algo como: “11-09-2001 / O QUE VEM A SEGUIR[lit.  Isto é o próximo] / TOME A PENACILINA [sic] AGORA / MORTE À AMÉRICA / MORTE A ISRAEL / ALLAH É GRANDE”.

Seria apenas duas semanas depois, em 2 de outubro, que as consequências começariam a aparecer. Foi quando o editor de fotografia do Sun, Robert Stevens, de 63 anos, deu entrada ao hospital com febre alta e náusea. Por 48 horas, os médicos lutaram para entender o que estava acontecendo – nenhum havia lidado com antraz na vida; havia 25 anos que ninguém morria da doença nos EUA. Quando chegaram ao veredito, era tarde demais para Stevens, que faleceria na sexta-feira, dia 5.

No mesmo dia, em Miami, Ernesto Blanco, 73, que dera entrada em outro hospital por suspeita de pneumonia, foi diagnosticado com antraz. Quando Blanco revelou que trabalhava no mesmo prédio que Stevens, o que era uma investigação médica se tornou um caso de polícia. O FBI descobriu esporos de Antraz no teclado da mesa de Stevens, e o prédio inteiro da AMI foi interditado no domingo, dia 7.

Uma tensa semana se seguiria, na qual novos casos foram identificados, as cartas à NBC e o New York Post foram encontradas, e mais ameaças falsas foram enviadas, incluindo uma para a Microsoft e outra para a repórter Judith Miller, do New York Times. Até a manhã segunda-feira, dia 15, em Washington, quando Grant Leslie, secretária do senador Tom Daschle, abre uma correspondência para ver um pó branco cobrindo seu colo. A mensagem, agora, é ligeiramente diferente.

Conteúdo da carta de antraz ao senador Daschle
Conteúdo da carta de antraz ao senador Daschle (Governo dos EUA/Domínio Público)

“VOCÊS NÃO PODE NOS PARAR / TEMOS ESTE ANTRAZ / VOCÊS MORREM AGORA / ESTÃO COM MEDO / MORTE À AMÉRICA / MORTE À ISRAEL / ALLAH É GRANDE”

O prédio foi quarantinado e, no dia seguinte, outra carta com antraz, ao senador Patrick Leahy, seria encontrada fechada. Leslie e outras pessoas atingidas passaram por atendimento médico imediato e não desenvolveram a doença. Mas, fechadas, essas duas cartas já haviam feito vítimas fatais.

O MISTÉRIO AUMENTA

Os ataques parariam por aí, num saldo de 22 pessoas desenvolvendo a doença, cinco de forma fatal. E não era preciso abrir o envelope. Além de Stevens, morreriam também Thomas Morris Jr. e Joseph Curseen, funcionários dos correios em Washington. Outras duas vítimas permaneceriam um mistério até hoje: Kathy Nguyen, funcionária de uma clínica em Nova York, e Ottilie Lundgren, aposentada de 93 anos de Oxford, Connecticut.

As suspeitas, a princípio, foram para o alvo óbvio, terroristas da Al Qaeda. Mas a análise genética das bactérias revelou que elas pertenciam à chamada Cepa Amis, que tinha uma origem bem próxima: o programa de armas biológicas americano, conduzido em Fort Detrick, Maryland. Em agosto, a investigação apontou para o médico especialista em armas biológicas Steven Hatfill, que trabalhava em Fort Detrick. Por longos anos, Hatfill seria tratado como o principal suspeito, até março de 2008, quando a investigação foi arquivada e ele recebeu uma indenização de US$ 5,8 milhões pelo dano à sua reputação.

A notícia parece ter caído como uma bomba sobre um ex-colega de trabalho, Bruce Edwards Ivins, que, sem saber, era o suspeito número dois. Segundo seus colegas, o cientista, que tinha um histórico de problemas mentais, pareceu altamente perturbado após Hatfill ser inocentado. Em 19 de março, a polícia foi enviada à sua casa para encontrá-lo inconsciente e levá-lo ao hospital.

Em junho, sob depressão extrema e risco de suicídio, foi internado numa instituição psiquiátrica. O FBI o interpelou lá, e o resultado foi um depoimento considerado ambíguo, como frases como “Posso dizer que não tenho em meu coração matar ninguém”, “Não me lembro de nada como isso [armas biológicas]” e “Não penso em mim mesmo como uma pessoa terrível, cruel, maligna”. Tendo alta, foi informado oficialmente da investigação.

Em 27 de julho, Irvins encontrado inconsciente outra vez em casa. Dessa vez, não sobreviveria: havia tomado uma dose letal de paracetamol e codeína, e padeceria dois dias depois.

A investigação concluiria, em agosto de 2008, que Irvins era culpado e agira sozinho. As evidências apresentadas foram seu passado de transtornos psiquiátricos, suas tentativas de confundir a investigação e destruir provas, suas declarações demonstrando culpa, suas horas extras precedendo o ataque, o fato de ele ter se vacinado no começo de setembro e, crucialmente, a mesma cepa da bactéria usada nos ataques ter sido encontrada num frasco seu laboratório, identificado como RMR-1029.

O que teria levado um cientista interiorano, com 55 anos na época do ataque, católico, casado e com dois filhos, a cometer o mais letal atentado biológico da história moderna? Ironicamente, pela hipótese mais aceita, o fato de ser um pesquisador de vacinas contra antraz. Irvin havia sido informado que seria transferido da pesquisa com antraz para outro agente biológico, e havia ficado muito perturbado. O propósito do ataque seria incendiaria o interesse do país pelo antraz – o que fez.

Um caso literal de cientista louco? Não faltou gente para duvidar. Entre outros, o jornalista Glenn Greenwald (esse mesmo), pediu pela reabertura das investigações. Seus colegas de trabalho foram unânimes em por em dúvida a conclusão. Henry S. Heine, um microbiólogo de Fort Detrick, afirmou que seria impossível alguém produzir armas biológicas sem ser notado pelos colegas, e sem contaminar todo o prédio, matando pessoas e animais. Estudos científicos apontaram que não haveria como estabelecer com 100% de precisão que os exemplares de antraz que Irvin mantinha eram mesmo os usados nos ataques – lembrando que ele distribuiu seus exemplares para outros cientistas.

No ano passado, o biólogo Scott Decker, funcionário do FBI que trabalhou nas investigações, lançou um livro sobre o assunto, demonstrando a sofisticação inovadora da pesquisa genética usada no caso. Outro agente do FBI, Glenn Cross, resenhou seu livro e não ficou convencido. “Ainda que os resultados forenses microbiológicos foram consistentes com RMR-1029 e seus descendentes como a origem das cartaz com antraz, a ciência em si não foi definitiva e foi insuficiente para estender a  sombra da culpa sobre Irvins”.

Mas se não Irvins, quem teria sido?