Sedução dos Inocentes: a cruzada contra os quadrinhos dos anos 1950
Mesmo quem não é muito ligado em quadrinhos talvez tenha ouvido falar na Era de Ouro (1938-1956) e na Era de Prata (1956-1970). A primeira é quando surgiram os grandes clássicos como Superman, Batman, Capitão Marvel (Shazam), Capitão América e Mulher Maravilha, e uma vasta produção em gêneros fora super-heróis, como crime, terror e ficção científica.A segunda, ainda que tenha rendido o Homem-Aranha, o Homem de Ferro e basicamente toda a gansa dos ovos de ouro da Marvel, é, vamos dizer assim… a era do quadrinho bobinho. Ingênuo, pra ser mais generoso. As histórias são extremamente infantilizadas e os vilões, inofensivos e caricatos ao ponto do ridículo. A (intencionalmente hilária) série de TV do Batman de 1966 retrata bem esse espírito (e demonstra que há o que se gostar nessa era).
O que nem todo mundo sabe é que há um nome por trás disso: Frederic Wertham, o psiquiatra que moveu, em nome das crianças, uma cruzada contra os quadrinhos. E venceu.
Wertham não era religioso nem particularmente conservador para sua época: até comprar essa briga, era famoso por atender de graça pacientes negros pobres em sua Clínica Lafargue, no Harlem, Nova York, que operou entre 1946 e 1958. Era uma época em que a maioria dos psiquiatras brancos sequer recebiam os negros e Wertham também se tornaria uma voz importante na era dos Direitos Civis, como autoridade científica contra a psiquiatria racista.
HERÓIS SÃO OS VILÕES
Mas ele tinha outras preocupações, e uma delas era a delinquência juvenil no pós-guerra – uma percepção comum, a “Juventude Transviada” encarnada por James Dean. E, nisso, acreditou achar seus culpados: Batman e Mulher Maravilha.
Em 1954, ele lançou o livro Seduction of the Innocent (“A Sedução dos Inocentes”, nunca chegou ao Brasil), um guia ilustrado de como quadrinhos eram brutais e pervertidos, e estavam destruindo a juventude. Incluía também testemunhos de delinquentes juvenis que (eureca!) gostavam de quadrinhos.
Foi uma sensação imediata e deu início a um movimento nacional contra os quadrinhos. No mesmo ano, Wertham seria convidado a falar ao Congresso americano, participando do Subcomitê Sobre a Delinquência Juvenil. Lá explicou sua teoria, mostrando imagens gráficas de violência – particularmente incomodado por um quadrinho mostrando alguém prestes ter seu olho furado – e também “demonstrando”, entre outras coisas, que Batman e Robin eram um casal gay e a Mulher Maravilha, por sua independência e força, só podia ser lésbica.
Estava em jogo mais que preconceito. Wertham falava enquanto um psiquiatra, no tempo em que a homossexualidade era classificada como doença mental. Estava dizendo aos pais que quadrinhos deixavam seus filhos “doentes”.
O Congresso e os pais compraram a versão de Wertham e, sob ameaça não muito velada de leis de censura, as próprias editoras se moveram para criar a autocensura: o Comics Code. Um selinho dado pela Comics Code Authority, um comitê de censores que determinava se uma revista estava de acordo com as regras. Dizia, entre outras coisas:
- Não se pode demonstrar simpatia pelo criminoso nem promover desconfiança das autoridades;
- Policiais, juízes e oficiais do governo não podem ser retratados de forma negativa;
- O bem sempre deve triunfar sobre o mal
- Violência deve ser limitada;
- Nenhum título pode usar as palavras “horror” e “terror”;
- Zumbis, tortura, vampiros e lobisomens são proibidos;
- Nudez de qualquer forma é proibida;
- Relações sexuais ilícitas não podem ser mostradas ou sugeridas;
- Perversões e “anomalias sexuais” são proibidas;
- Profanidade, obscenidade, vulgaridade e linguajar chulo é inaceitável;
- Figuras não podem ser vestidas de forma ofensiva ou contrária ao bom gosto e à moral.
Na prática, os censores da CCA faziam o que queriam. Num caso que terminou na justiça, exigiram dos autores da ficção científica Judgment Day (1956) mudarem seu protagonista, um astronauta negro, para branco, como condição para a aprovação.
Não havia nenhuma lei exigindo o selo da CCA, mas a maioria dos distribuidores só aceitava vender quadrinhos com ele. Servindo, assim, como a “polícia” a impor o código. Várias editoras, especializadas em estilos impossíveis de adaptar, como terror ou crime, fecharam. Das grandes, só as que distribuíam quadrinhos da Disney – uma “autoridade” maior ainda – não se importaram com o selo.
Mas a cultura deu suas voltas. No anos 1960, não usar o selinho se tornou motivo de orgulho para os produtores das underground comix (“kuadrinhos underground”), cena da qual emergiriam, entre outros, Robert Crumb e Trina Robins, que seria a primeira mulher a desenhar a Mulher Maravilha. A produção underground era baseada em editoras nanicas ou paga do próprio bolso.
Diante do claro mercado para quadrinhos adultos, as editoras pressionaram e, em 1971, o código foi bastante relaxado, permitindo, entre outras coisas, retratar policiais corruptos (desde que não fosse a regra), mostrar bandidos de forma simpática, e retratar monstros de terror. A partir daí, as brigas da CCA se focaram na ilustração do consumo de drogas.
Aos poucos, o selo foi caducando, perdendo sua importância. Com um público adulto crescente, os distribuidores deixaram de exigi-lo. A Marvel abandonou em 2001 e a DC, em 2011, quando a CCA foi fechada de vez.
Quanto a Wertham, tentou uma cruzada contra a TV, mas essa não colou. Algo ironicamente, em 1973, se encantou pelas fanzines – que podem ser a casa de quadrinhos bem extremos. Escreveu The World of Fanzines: A Special Form of Communication (“O Mundo das Fanzines: Uma Forma Especial de Comunicação”) . Chegou a ser convocado para convenções de quadrinhos, mas, por motivos óbvios, não foi recebido de forma exatamente calorosa. Morreria em 1981, aos 86 anos.