Núcleo Demônio: como a terceira bomba atômica do Japão matou sem nunca explodir
Quando Fat Man explodiu sobre Nagasaki, em 9 de agosto de 1945, não havia nenhuma garantia de que o Japão se renderia. De fato, a expectativa era lançar até uma dúzia de bombas, a próxima muito provavelmente destinada a Tóquio, dia 19, as outras em setembro ou outubro. O núcleo da bomba do dia 19, que nunca ganharia nome, era composto por duas semi-esferas e um anel de plutônio, diferente do núcleo da Fat Man nesse último detalhe. Estava pronto para ser instalado no resto da bomba quando veio a notícia, dia 15, da rendição japonesa. Mas essa peça de destruição em massa, frustrada sua função inicial, ainda teria um destino, que renderia a ela, um nome bem mais adequado que o “Menininho” e o “Homem Gordo” das bombas que caíram: Núcleo Demônio.
Com o fim da guerra, o núcleo foi redestinado a mais pesquisas no Laboratório de Los Alamos, o principal centro do Projeto Manhattan. Havia muito ainda a ser descoberto sobre energia nuclear, inclusive seu possível uso civil. E foi assim que, em 21 de agosto de 1945, menos de uma semana após o fim da guerra, o cientista Harry Daghlian estava testando colocar blocos de carbeto de tungstênio em volta dela. O composto é capaz de refletir nêutrons emitidos pelo núcleo, e, ao atingi-lo pela reflexão, mantém uma reação nuclear. A ideia era saber como fazer obter uma reação com menos material radioativo, por meio dessa reflexão.
Daghilian foi adicionando bloco a bloco até o último, quando o medidor revelou que isso poderia levar o núcleo a um estado supercrítico, uma reação nuclear autossustentada – morte certa para ele. E, de puxar o tijolo na pressa, esse escorregou da sua mão, caindo direto no núcleo, que entrou em estado crítico imediato. O cientista então tentou tirar o tijolo, sem sucesso, e teve que desmontar toda a pilha. Em meio a isso, recebeu uma dose de 5,1 Sievert (Sv) de radiação – 45 vezes o nível médio recebido pelos liquidadores de Chernobyl, 0.12 sV. Com as mãos queimadas, por 25 dias, ele agonizaria de síndrome de radiação aguda, que basicamente faz uma pessoa se decompor em vida (como visto na série da HBO).
A CAUDA DO DRAGÃO
Exatos 9 meses depois, 21 de maio de 1946, outro cientista, Louis Slotin, fazia um teste semelhante com o Núcleo Demônio. Desta vez, o que refletia os nêutrons eram duas semi-esferas de berílio em volta do núcleo. A reação supercrítica começaria se elas fossem fechadas.
Se Daghilian era cuidadoso – e errou ao ser cuidadoso –, Slotin era um famoso bravateiro, andando em jeans de cowboy, quando isso era visto como coisa de cowboy. Fazia seus experimentos, contrário a qualquer procedimento de segurança, com uma chave de fenda. A chave, manuseada em sua mão esquerda, era tudo o que impedia as esferas refletoras de se fecharem. Já havia feito a brincadeira diante de várias plateias de cientistas, desafiando seu medo. Isso havia levado a Enrico Fermi, um dos principais cientistas do Projeto Manhattan, a prever que estaria morto em um ano. O que ele fazia era, lembrando a frase do outro cabeça do projeto, Richard Feynman, “fazer cócegas no rabo de um dragão dormindo”.
É previsível como termina: o dragão acordou quando a chave escorregou para fora do espaço entre as semi-esferas refletoras. Ao se tocarem, um clarão azul visível foi provocado. Como Daghlian, Slotin teve o senso de parar a reação, enfiando de volta a chave de fenda e jogando a parte de cima do refletor para o chão. Havia recebido uma dose de 21 Sv. Agonizaria por nove dias.
Fora os dois cientistas imediatamente responsáveis, o núcleo pode ter matado mais três pessoas, mas é difícil averiguar. Robert J. Hemmerly, o soldado que fazia a guarda para Daghilian, e a única testemunha do primeiro experimento, morreria de leucemia em 1978. Das sete testemunhas do segundo experimento, o físico Marion Edward Cieslicki morreria também de leucemia, em 1965, e o fotógrafo David Smith Young, de anemia aplástica, que pode ser relacionada a exposição a radiação, em 1975.
O Núcleo Demônio estava destinado a explodir na Operação Crossroads, o famoso teste do Atol de Bikini. Mas, dada sua mais que comprovada insegurança, foi derretido para ser usado em outras armas nucleares. Se acabou explodido num teste ou ainda está por aí, reciclado ou perdido num depósito de material nuclear tirado de bombas obsoletas desativadas, ninguém sabe.