Quem inventou que nazismo é de esquerda? Não foi brasileiro

Não, não é jabuticaba. Direitistas brasileiros não estão sozinhos em dizer que nazismo é de esquerda. A tese está em best-sellers da direita conspiratória internacional, como Liberal Fascism (2009), do comentarista político Jonah Goldberg, ou mais recentemente The Big Lie: Exposing the Nazi Roots of the American Left (2017), de Dinesh d’Sousa. 

E eu posso atestar de memória: topei com isso pela primeira vez nos idos de dois mil e celular clamshell. Bastava saber inglês. A evidência mais antiga, até onde pude averiguar, vem de 15 de janeiro de 1997. É o artigo Myth: Hitler was a Leftist (“Mito: Hitler era um Esquerdista) pelo jornalista ainda na ativa Steve Kangas. Ele demonstra que, 22 anos atrás, na era de Clinton, FHC e Spice Girls, chamar Hitler de esquerdista já era um esporte popular:

“Essa associação [entre Hitler e a direita] sempre foi algo vexaminoso para a ultradireita. Para escapar da crítica, os conservadores recentemente lançaram um contra-ataque, afirmando que Hitler era um socialista, portanto pertence à esquerda política, não direita.

Um exemplo prestigioso que chegou à grande mídia na mesma época: em 1998, o falecido linguista britânico George G. Watson (1927-2013), da Universidade de Cambridge, anuncia através do jornal britânico The Independent seu livro The Lost Literature of Socialism (“A Literatura Perdida do Socialismo”). Sua tese é que certas declarações de Hitler sobre Marx provam que ele era praticamente do PCO. Um trecho:

“Herman Rauschning, por exemplo, um nazista de Danzig que conheceu Hitler antes e depois de sua ascensão ao poder em 1933, afirma como Hitler reconhecia seu profundo débito com a tradição marxista. ‘Eu aprendi muito com Marx’, uma vez ele disse, ‘como não hesito em admitir’”. 

(“Aprender com Marx”, se o testemunho em segunda mão é confiável, não significa ser marxista. Mas explicar por que Hitler não era de esquerda não é o propósito desta matéria – há vasto material sobre isso.)

ESQUERDA É UM SACO

Não se sabe quem foi o primeiro a colocar com todas as letras que “Hitler era um esquerdista”, mas há uma vasta literatura afirmando que ele e Stalin – e Mao, Fidel etc. –, ditadores de ideologias opostas, eram ainda assim farinha do mesmo saco. Um saco chamado “coletivismo”.

“Fascismo, nazismo, comunismo e socialismo são só variações superficiais do mesmo tema monstruoso – coletivismo”.

Frase da escritora e filósofa Ayn Rand, refugiada soviética nos EUA que se tornaria uma das grandes inspirações da direita atual, em uma carta de 1944.

Outra figura imensamente influente, o economista Friedrich Hayek (1899-1992), ele mesmo um exilado do nazismo, se tornou famoso mundialmente por O Caminho da Servidão (1944). No capítulo “As Raízes Socialistas do Nazismo”, afirma:

“Não foram apenas a derrota, o sofrimento e a onda de nacionalismo que as conduziram ao sucesso. Tampouco, como muitos querem acreditar, foi o seu êxito ocasionado por uma reação do capitalismo contra o avanço do socialismo. Ao contrário, o apoio a essas ideias veio precisamente do lado socialista. Não foi, por certo, a burguesia, mas antes a ausência de uma burguesia forte, que favoreceu sua escalada ao poder.”

(Hayek separava totalitarismo de autoritarismo e achava que uma ditadura autenticamente capitalista podia ser boa, até melhor que uma democracia que distribui renda. Com essa justificativa, apoiou o regime Pinochet, que considerava autoritário, mas não totalitário. Isso fica para outro dia.)

FERRADURAS 

Esses são só dois exemplos influentes. Outros favoritos do libertarianismo, como Ludwig von Mises e Murray Rothbard, aderem totalmente à teoria da farinha do mesmo saco. Chama-se Teoria da Ferradura a ideia de que esquerda e direita, nos seus extremos, acabam se tornando próximas, ao ponto de serem indistinguíveis. É um discurso extremamente popular no Brasil de hoje entre os ditos “isentões”. Se Hitler e Stalin eram basicamente o mesmo e Stalin era de esquerda, conclui-se, logicamente, que Hitler era de esquerda.

Mas isso não é aceito por historiadores. São redefinições revisionistas, que ignoram a origem intelectual dos termos “esquerda” e “direita”. Em sua origem, na Revolução Francesa, a direita defendia a manutenção da autoridade absolutista e privilégios de classes sociais e a esquerda, a abolição de ambos – isto é, liberdade e igualdade política. 

E isso pode se ver no propósito final de regimes de força que são comparados. Nazistas queriam estabelecer a hierarquia “natural” das raças no mundo e purificar a “raça ariana”, executando pessoas com doenças genéticas e “raças inferiores”. Comunistas queriam e querem acabar com classes sociais e chegar a a uma situação sem Estado ou opressão, o comunismo em si (não passaram nem perto, mas isso é outra história). A ditadura e o “coletivismo” (termo problemático, porque ignora a noção de liberdade individual da esquerda) eram meios, não o fim. Dizer que as duas coisas são idênticas é como falar que nazistas e aliados eram indistinguíveis, pois ambos davam tiros e jogavam bombas de aviões. 

“Existe uma ressonância fundamental, ideológica, entre extrema esquerda e direita?”, pergunta o cientista político Simon Shoat, da Kingston University, em seu artigo Horseshoe Theory is Nonsense (“A Teoria da Ferradura é Nonsense”). “Somente no vago sentido que ambas contestam o status quo. Mas fazem isso por razões muito diferentes e com propósitos muito diferentes. Quanto fascistas rejeitam o individualismo liberal, é em nome de uma visão de unidade nacional e pureza étnica baseada num passado romantizado; quando comunistas e socialistas o fazem, é em nome da solidariedade internacional e redistribuição de riquezas.”