Karánsebes: a batalha mais absurda da história
Não faltam desastres, vitórias pírricas e decisões estúpidas na história militar. Mas há um lugar especial para a Batalha de Karánsebes, na qual um exército enfrentou a si próprio, perdeu e bateu em retirada.
A Guerra Austro-turca havia começado em fevereiro e, naquele 21 de setembro de 1788, o grande contingente de quase 40 mil homens sob o comando do general Wartensleben esperava perto da cidade de Karásanbes (atual Romênia, grafada com C) pela coluna do imperador José II. Foi enviado para o outro lado do rio Timis, numa missão de reconhecimento, um contingente de hussardos – cavaleiros que carregavam o título dos heroicos poloneses que haviam salvado a capital austríaca Viena em 1683, dos mesmos turcos otomanos que agora enfrentavam.
Há meses em movimento, ninguém ainda na coluna de Wartensleben havia avistado os bigodes do inimigo. Ainda assim, o moral era baixíssimo. No auge do verão, os soldados parados nas tendas estapeavam mosquitos da testa suada. A malária começava a tombar suas primeiras vítimas – e seriam ela e a disenteria, não os turcos, os grandes carrascos daquela guerra.
Os hussardos não encontraram o inimigo. Mas acharam uma cena familiar: um grupo de ciganos. Com eles, um barril de schnapps, um aguardente de frutas típico do centro europeu. De pronto abriram suas burras, fecharam negócio e passaram a celebrar ali mesmo.
Com a cavalaria demorando a voltar, um destacamento de infantaria foi enviado para procurá-los. E os achou abraçados a seu tesouro. Os soldados primeiro pediram, depois exigiram participar da festa. Mas os orgulhosos cavaleiros não estavam dispostos a bater copos com a ralé que lutava a pé.
A coisa foi esquentando até chegar o inevitável. O tiro fez-se ouvir do outro lado do rio. E o primeiro grito de “turcos!”. Estava instaurado o desastre.
As tropas foram despertadas da modorreira feito colméia cutucada. Quem estava do lado do rio tentou correr para o acampamento para ser recebido a balas. Oficiais exasperados, que entenderam a situação, deram a ordem de parar: “Halt! Halt!”. Que a soldadesca, em parte formada por húngaros, eslavos e até franceses, entendeu como “Allah! Allah!”. Até cargas de artilharia foram ordenadas contra o próprio exército.
O próprio imperador acabou envolvido. Em uma carta a seu irmão Leopoldo, afirmou:
“A coluna, na qual eu me encontrava, foi completamente dispersada por canhões, vagões e todas as tendas foram reviradas, foi um horror; meus soldados atirando uns nos outros! Eventualmente a calma foi restaurada, e tivemos sorte que os turcos não estavam em nossa rota porque, caso contrário, todo o exército teria sido destruído.”
Os austríacos não resistiram ao ataque fulminante. Antes do fim da noite, o Exército da Monarquia Habsburgo entrava para a história como vítima e algoz do mais bizarro incidente de fogo amigo conhecido.
José II voltaria à Áustria em novembro e passaria o resto de seus dias enfermo. O trono passaria a seu irmão, Leopoldo II, em 30 de setembro de 1790. Em seu epitáfio, José pediu para deixar:
Aqui jaz José II, que falhou em tudo que tentou.
A Guerra Austro-Turca terminaria no Tratado de Sistova, em 4 de agosto de 1791, com ganhos minúsculos para os Habsburgo e a promessa de ambas as partes de não intervirem mais umas com as outras.
(Nota: vários locais ainda descrevem a Batalha de Karánsebes como apócrifa – é o que aparece, taxativo, na Wikipedia em português. Afirmam que seria mencionada pela primeira vez em 1847. Isso é desatualizado. Ainda que haja controvérsias sobre detalhes, particularmente os mais coloridos, como a bebedeira dos hussardos, existem, sim, relatos imediatamente após a batalha que deixam claro ter havido um sério incidente de fogo amigo no local e data. Para detalhes da campanha e o relato do próprio imperador, confira a tese de mestrado do historiador Matthew Z. Mayer, Universidade McGill, Canadá, pg. 61, uma das fontes desta matéria.)