Devorar para curar: uma história do canibalismo medicinal europeu

(Aviso: esta é uma matéria sobre canibalismo. Como é de se esperar, vem coisa pesada adiante)

Segundos após o machado do carrasco descer, o povo se aproxima. Trazem em mãos as canequinhas. Começam a colher o sangue do condenado. A maioria bebe ali mesmo, outros levam para casa. Indiferente, o carrasco volta-se a uma figura bem-vestida chamando sua atenção. É um apotecário, um farmacêutico alquímico. Segue-se uma breve barganha, acertando o preço, e terminam de acordo: o corpo tem novo dono e o carrasco já inclui no preço a taxa de entrega. Como um açougueiro, se põe a trabalhar: cabe a ele extrair do corpo a gordura e a carne, separar ossos do crânio, o umbigo e o que mais for encomendado. Ao apotecário, cabe misturar essas partes humanas a plantas e mineiras, criando unguentos, pós e pílulas diversas, para curar basicamente tudo.

Com variações regionais, a cena acima já foi corriqueira por toda a Europa. Na Alemanha, como acima, os carrascos vendiam as partes aos apotecários. Na França, eles cortavam os atravessadores e vendiam direto ao povo. Na Inglaterra, onde as leis exigiam a devolução do corpo à família, raramente tinham essa oportunidade – e os cemitérios se tornavam o lugar onde colher material para curar os vivos.

Principalmente dos séculos 16 ao 18 – justamente quando traziam relatos horrorizados de povos “selvagens” devorando seus inimigos, como os astecas e os tupinambás do Brasil –, a Europa, se não foi o lugar mais canibal da terra, era o menos aquele onde cadáveres foram mais comercializados. Isso jamais aparece nos registros da época como “canibal” – termo do século 16, corruptela dos índios Caribes encontrados por Colombo. Ou mesmo o bom latim “antropófago”.

APROVADO PELA IGREJA

Porque, em nome da medicina, era algo visto como válido, civilizado. E de prestígio: no final século 15, o advogado Stefano Infessura registrou que o médico do Papa Inocente VIII, tentando salvá-lo em julho de 1492, subornou três crianças pobres na rua com a promessa de um ducado (moeda de ouro de cerca de 4g) para cada. O plano era uma sangria, o que era um procedimento extremamente comum, inclusive para o propósito de curar os outros. Mas, nesse caso, a sangria foi até a morte. O sangue das vítimas foi dado à sua santidade, que sorveu de sua cama. E morreu do mesmo jeito, dias depois.

O Rei Carlos II (1630-1683) da Inglaterra tinha sua própria receita: crânio humano moído numa tintura com álcool, que passou a ser chamada “Gotas do Rei” e, acreditavam ele e seus súditos, servia para curar tudo.

E são só dois casos entre dezenas. Deixemos com a palavra Leonardo da Vinci, em um de seus aforismas:

Preservamos nossa vida com a morte de outras. Numa coisa morta, uma vida inconsciente continua que, quando reunida com os estômagos dos vivos, recupera a vida intelectual e das sensações.

O canibalismo medicinal não era exclusividade dos europeus. Casos similares foram encontrados na China e Índia, entre outros. Já em Roma, o sangue e fígado dos gladiadores eram consumidos como uma forma de revitalização. Mas renasceu por um possível erro de interpretação tradução: lendo em manuais árabes de medicina, os médicos medievais foram procurar por certa “mummya” – termo árabe derivado de “mum”, cera. Era um tipo de betume mineral vindo da Pérsia, considerado uma cura para vários problemas, principalmente de pele.

Mas um material parecido podia ser encontrado nos corpos embalsamados dos antigos egípcios – uma material em abundância numa época em que tumbas e pirâmides ancestrais eram desmontadas para construir mesquitas. Assim, do material inorgânico persa, passaram a consumir o que vinha das múmias (agora você sabe de onde vem o nome). Por fim, o resto do corpo. Uma indústria clandestina na fonte se estabeleceu – o consumo de corpos humanos é proibido pela sharia e a atitude das autoridades variava entre leniência conivente e aplicar a pena de morte. Por séculos, múmias milenares cruzaram o Mediterrâneo para serem trituradas e ensacadas na Europa, onde eram consumidas. Inclusive, havia um mercado de falsificações: múmias de gatos, comuns no Egito, corpos recentes mumificados no deserto, corpos europeus tratados em fornos.

Por volta do século 17, as múmias originais começaram a rarear, e o preço subiu. Por essa época, “múmia” passou a constar nos manuais médicos medievais em diversas variações. “Múmia natural” ou “múmia transmarinha” era a resina original. “Múmia verdadeira” ou “múmia árabe” era o corpo de um egípcio há muito ido. E “múmia paracélsica” foi a solução para o preço alto.

A AUTORIDADE RECOMENDA

Paracelso (1493-1541) foi um dos médicos mais influente dessa era. Uma figura de transição, que tratou a medicina como algo místico e filosófico, como antes, mas também rejeitou diversas tradições em favor da observação empírica – particularmente em relação a remédios químicos (“a dose faz o veneno”, sua frase mais famosa). Paracelso não só era a favor da cura pelos corpos, como deu uma receita: um homem jovem, de 24 anos, saudável, morto de forma violenta, não doença. Sua carne deveria ficar exposta à luz da lua por uma noite e depois, preservada em ervas e sal e posta para secar ao sol. Basicamente uma forma de presunto humano (não, a gíria não deriva daí).

Mas, afinal, por que faziam isso? De acordo com o historiador britânico Richard Sugg, da Universidade de Durham, autor Mummies, Cannibals and Vampires: The History of Corpse Medicine from the Renaissance to the Victorians (sem versão em português), a principal fonte dessa matéria, é basicamente pela mesma razão que os nativos da América consumiam seus inimigos ou seus entes queridos: absorver algo deles. No caso, a “força vital”. Isso se mistura a uma visão de mundo cristã, na qual as criaturas seguem uma hierarquia e o ser humano é o ápice da criação – portanto, sangue, ossos e carne de animais não teria o mesmo poder. Algo visto na simbologia da eucaristia, o consumo da “carne e sangue de Cristo”, pois mais bárbara que interpretação possa parecer aos cristãos de hoje. Por fim, a ideia de que Deus já planejou tudo de antemão. “A fonte [da receita de Paracelso] deve ser jovem, saudável e prematuramente morta porque todos os seres vivos tem uma duração de vida predeterminada e, assim, há mais a se extrair do corpo”, escreve Sugg.

É consenso entre historiadores que a medicina canibal – ou canibalismo iátrico, para ficar no termo exato – começou a ficar para o passado junto com alquimia e as crenças religiosas aplicadas à ciência que a motivavam, na era do Iluminismo. Entre o povo, a crença demorou a morrer: na execução do Rei Luís XVI, em plena Revolução Francesa, em 1792, a turba correu ao cadafalso para embebedar lenços ou partes da própria roupa em seu sangue (até onde se sabe, para guardar como suvernires). Ainda em 1854 na Alemanha, um tumulto ocorreu numa execução, quando o povo tentou pegar o sangue do morto. O pó de múmia ainda era encontrado em farmácias europeias até o começo do século 20, quando passaram a ser tratadas como tesouro arqueológico, não matéria-prima para remédio. Sugg, porém, lembra do longo processo de jogar esse passado canibal para fora dos livros de história da medicina ocidental, justamente advindo do iluminismo, que tentou limitar a data dessas histórias à Idade Média.

Diante desse voraz, amplo, socialmente aceito, teologicamente justificado e eventualmente esquecido canibalismo europeu, soa hipócrita sua condenação das culturas indígenas? Para a antropóloga Beth Conklin, da Universidade Vanderbilt (EUA), é muito pior, pois a versão europeia tem um caráter mais cruel. “Uma coisa que sabemos é que praticamente toda a forma de prática canibal não ocidental é profundamente social, no sentido em que a relação entre quem come e é comido importa”, afirma, à Revista da Fundação Smithsonian. Isto é, comia-se os inimigos, entes queridos, sacrificados aos deuses. “No processo europeu, isso foi amplamente apagado e tornado irrelevante. Seres humanos foram reduzidos a simples matéria biológica equivalente a qualquer outro produto medicinal.”