Capitalismo ou comunismo? Há 60 anos, líder da URSS e vice dos EUA debatiam qual é o melhor – numa cozinha

1959 deve ter sido o ano em que Guerra Fria pareceu mais próxima de terminar. Se as potências ainda estavam em corrida armamentista nuclear e tentando limitar as áreas de influência do rival, a ascensão do moderado (se irascível) Nikita Khrushchev como premiê soviético, formalizada no ano anterior, parecia apontar um caminho para a paz. Khrushchev, mantendo-se firme em sua convicção socialista, também parecia convicto que as duas potências poderiam conviver como rivais amigáveis – até que o sistema soviético se provasse superior e os EUA, cedo ou mais tarde, tivessem sua própria revolução.

Os americanos, então sob a presidência do (também moderado) Dwight Eisenhower, se mostraram abertos à ideia. Foi assim que ambos os países concordaram com um pequeno e breve enclave do rival em seu território: uma exposição nacional mútua, no modelo das então famosas exposições mundiais. Em junho de 1959, a versão soviética abriu em Nova York. No mês seguinte, era a vez da americana abrir em Moscou. Para isso, o vice-presidente Richard Nixon foi enviado à Rússia. E a inauguração transformou-se num debate a ser traduzido e transmitido nos dois países.

Em 24 de junho de 1959, Nixon e Krushchev se encontraram diante de uma cozinha americana, equipada com os mais modernos eletrodomésticos e conveniências. E ali, diante de uma lava-louça e detergentes, se dispuseram a provar qual sistema era superior. E continuaram num debate mais formal num estúdio de TV.

A conversa, quase monopolizada por Khrushchev, sob protestos de Nixon, teria partes exaltadas e algumas bravatas pouco realistas. Mas foi amigável. Diplomaticamente, o que ficaria conhecido por Kitchen Debate (“Debate da Cozinha”) seria um sucesso: em 15 de setembro, Khrushchev se tornava o primeiro premiê soviético a pisar nos EUA.

A relação começaria a azedar com a Revolução Cubana, no fim do mesmo ano. Que acabaria levando a influência soviética perto demais para o conforto dos EUA, que tentaram derrubar o regime na desastrada operação da Baía dos Porcos. Assim, três anos depois, a Crise dos Mísseis, causada pela instalação de mísseis nucleares soviéticos em Cuba, deixaria o mundo à beira da aniquilação nuclear.

A seguir, um resumo (ainda assim longo) com recortes interessantes da conversa e edições para melhor compreensão.

(Duas versões ligeiramente diferentes dos originais podem ser lidas aqui e aqui). 

PARTE 1: NA EXPOSIÇÃO

[Os dois entram na cozinha da exposição americana]

Nixon: Eu quero te mostrar esta cozinha. É como as das nossas casas na Califórnia. [Aponta para uma lava-louças.]

Khrushchev: Nós temos essas coisas!

Nixon: Esse é o nosso mais novo modelo. O tipo que é construído em milhares de unidades para instalação direta nas casas. Nos Estados Unidos, gostamos de facilitar a vida das mulheres…

Khrushchev (interrompe): Sua atitude capitalista para com as mulheres não existe no comunismo!

Nixon: Acredito que essa atitude em relação às mulheres é universal. O que nós queremos é tornar a vida mais fácil para nossas donas de casa…

[…]

Nixon: Esta casa pode ser comprada por US $ 14.000 e a maioria dos americanos pode comprar uma casa na faixa de US$ 10.000 a US$ 15.000. Deixe-me dar um exemplo que você pode apreciar: nossos metalúrgicos da indústria do aço que, como vocês sabem, agora estão em greve. Qualquer metalúrgico poderia comprar esta casa. Eles ganham US$ 3 por hora. Esta casa custa cerca de US$ 100 por mês para adquirir num contrato de 25 a 30 anos.

Khrushchev: Temos metalúrgicos e camponeses que podem gastar US$ 14.000 numa casa! Suas casas americanas são construídas para durar apenas 20 anos, para que os construtores possam vender novas no final. Nós construímos com solidez. Nós construímos para nossos filhos e netos!

Nixon: Casas americanas duram mais de 20 anos, mas, mesmo assim, depois de vinte, muitos americanos querem uma nova casa ou uma nova cozinha. Sua cozinha fica obsoleta após tanto tempo… O sistema americano é projetado para tirar proveito de novas invenções e novas técnicas.

Khrushchev: Esta teoria não se sustenta. Algumas coisas nunca ficam obsoletas – casas, por exemplo, e móveis. Utilidades domésticas, talvez, mas não casas. Eu li muito sobre americanos e casas americanas, e não acho que essa exposição que você faz é estritamente precisa…

Nixon: Bem, hum …

Khrushchev: Espero não ter te insultado…

Nixon: Eu sou insultado por especialistas! Tudo o que dizemos é [num espírito de] bom humor. Fale tudo francamente!

Khrushchev: Os americanos criaram sua própria imagem do homem soviético. Mas ele não é como vocês imaginam. Acham que o povo russo ficará embasbacado de ver essas coisas, mas o  fato é que as casas russas recém-construídas têm todo esse equipamento hoje.

Nixon: Sim, mas …

Khrushchev: Na Rússia, tudo que você precisa fazer para conseguir uma casa é nascer na União Soviética. Você tem direito à moradia … Na América, se você não tem um dólar, [não] tem o direito de escolher entre dormir em uma casa ou na calçada. No entanto, você diz que somos escravos do comunismo!

Nixon: Eu aprecio que você é muito articulado e enérgico …

Khrushchev: Enérgico não é a mesma coisa que sábio.

Nixon: Se você estivesse no Senado, nós chamaríamos você de filibusteiro [alguém que fica falando sem parar para impedir uma votação]! Você domina toda a conversa e não deixa ninguém falar. Esta exposição não foi projetada para embasbacar, mas para criar interesse. Diversidade, o direito de escolher, o fato de termos mil construtores construindo mil casas diferentes é o mais importante. Nós não temos um modelo decidido pelo funcionário mais alto do governo. Essa é a diferença!

Khrushchev: Sobre política, nunca vamos concordar com você… [Mas] Por exemplo, Mikoyan gosta de sopa muito apimentada. Eu não. Mas isso não significa que não nos damos bem.

Nixon: Vocês podem aprender conosco e nós podemos aprender com vocês. Deve haver um livre intercâmbio! Deixem as pessoas escolherem o tipo de casa, o tipo de sopa, o tipo de ideias que elas querem!

PARTE 2: NO ESTÚDIO

Khrushchev: (…) Desejamos aos Estados Unidos o melhor para mostrar seus bens, produtos e habilidades… grandes habilidades, e teremos prazer em olhar e aprender. Não só vamos aprender, mas também podemos mostrar – e vamos mostrar – o que fazemos. Isso contribuirá para melhorar as relações entre nossos países – e entre todos os países – para garantir a paz mundial. (…) Há quanto tempo existe a América? São 300 anos? (…) A América existe há 150 anos e aqui está o seu nível. Nós existimos por quase 42 anos e em outros 7 estaremos no mesmo nível da América. Depois seguiremos em frente. Quando cruzarmos com eles pelo caminho, vamos cumprimentá-los amigavelmente, assim! [acena] Então, se vocês quiserem, podemos parar e convidá-los a seguir conosco! (…)

Nixon: (…) Os comentários de Khrushchev agora… eles estão na tradição que aprendemos a esperar dele falando de maneira intempestiva e franca sempre que tem uma chance. E fico feliz que ele tenha feito isso em nossa televisão colorida, em um momento como este. (…) Isso, Sr. Khrushchev é uma das criações mais avançadas em comunicação que temos! (…) Só posso dizer que, se esta competição que você assim descreveu tão eficazmente, na qual você planeja nos ultrapassar, especialmente na produção de bens de consumo, se essa competição é o melhor para o nosso povo e para pessoas em todos os lugares, deve haver um livre intercâmbio de idéias. Existem alguns casos em que você pode estar à frente de nós, por exemplo, no desenvolvimento de seus foguetes para a exploração do espaço sideral. Pode haver outras áreas, como na televisão em cores, onde estamos à sua frente. Para que nossos dois povos façam isso. . .

Khrushchev (interrompendo): O que você quer dizer com na frente?! Não! Nunca! Nós derrotamos você em foguetes e, nessa tecnologia [comunicações], estamos à sua frente também!

Nixon: Espere até ver a imagem.

Khrushchev: Bom! (…) Engenheiros soviéticos ficaram impressionados com o que viram. Também me uno à admiração de nossos engenheiros soviéticos. O fato de os americanos serem pessoas inteligentes é algo no que sempre acreditamos e soubemos, porque pessoas estúpidas não poderiam elevar a economia ao nível que alcançaram. Mas nós também não somos tolos (…). Em 42 anos, demos esse passo! Somos parceiros dignos! Então vamos competir! Vamos competir! O que pode produzir a maioria das mercadorias para as pessoas: esse sistema é melhor e vai vencer!

[Mais conversa sobre comunicação]

Nixon: Você não deve ter medo de idéias!

Khrushchev: Nós estamos dizendo a você: não tenha medo de ideias! Não temos nada a temer! Nós já superamos isso [nota: provável referência ao período Stalin] e agora não tememos ideias!

(…)

Khrushchev: você é um advogado do capitalismo, eu sou um advogado comunista! Então vamos competir!

Nixon: Tudo que pode dizer, pela forma como você fala e como domina a conversa, [é que] você daria um ótimo advogado! O que quero dizer é: aqui você vê o tipo de fita que vai transmitir esta conversa e isso mostra as possibilidades de aumentar a comunicação. E esse aumento na comunicação vai nos ensinar algumas coisas, e algumas coisas a você também. Porque, afinal, você não sabe de tudo!

Khrushchev: Se eu não sei tudo, você não sabe nada sobre comunismo, exceto pelo medo! (…) Me dê sua palavra, vice-presidente, me dê sua palavra que minha fala vai ser também gravada em inglês. Vai ser?

Nixon: Certamente será! E, na mesma moeda, tudo o que eu disser será gravado e traduzido e transmitido por toda União Soviética. É um bom negócio.

[Apertam as mãos]