Quando os filmes fotográficos eram racistas

Fábio Marton

Entre 1977 e 1978, o cineasta francês Jean-Luc Godard, um dos pais da nouvelle vague, foi convidado pelo governo marxista de Samora Machel a trabalhar no Moçambique. Sua missão era ajudar na comunicação visual do novo regime, principalmente televisão. Como parte de seu trabalho, tinha que filmar curtas.

Não deu em nada. O cineasta recusou-se a usar o filme que estava disponível. Disse que era “racista”.

Godard havia notado que, ao filmar ou fotografar pessoas negras com filmes coloridos Kodak, a pele surgia escurecida ao ponto de mal dar para identificar os traços da expressão, enquanto os dentes e o branco dos olhos saltavam à vista, por contraste. Era como se o filme estivesse enxergando-as como um estereótipo do vaudeville americano, de blackface.

Foto colorida no Zambia, 1974
Foto colorida tirada no Zâmbia, 1974 (Foto: Walt Jabsco/Flickr/CC)

O problema era mais notável nos filmes da americana Kodak que nos da japonesa Fuji, com quem formava um duopólio, e tinha uma tecnologia de cores diferente.

Mas, afinal, estariam os fabricantes pregando uma peça racista? Fotografia colorida não é um processo simples. É preciso reconstruir uma imagem com todas as cores da natureza em apenas três delas: ciano, magenta, amarelo. Qualquer desequilíbrio na proporção pode levar a tons alienígenas: gente verde, púrpura, amarela. Assim, as indústrias tinham que calibrar seus próprios filmes para algo que favorecesse o (que viam como seu) consumidor – e, dentro disso, ser fiel ao seu tom de pele, retratar bem a pessoa, era mais importante que as demais cores. Para acertar essas cores na revelação, proviam aos estúdios cartões de referência – as “Shirleys”, que permitiam comparar a pele como na revelação com o que era “normal”. Literalmente podia estar escrito “normal”. E basta ver uma Shirley para entender o problema:

Imagem de uma Shirley Card da Kodak 1974
Shirley Card da Kodak de 1974 (Foto: Kodak/Reprodução/via Hermann Zschiegner)

O nome vem de Shirley Page, a primeira modelo nesses cartões, e continuou até pararem de ser produzidos. Invariavelmente, as Shirleys eram da cor que que os lápis de cor e os band-aids chamavam de “tom de pele”. E, calibradas para esse tom, os filmes podiam passar longe quando não estavam lidando com o “normal”.

Ainda nos anos 1970, os filmes da Kodak começam a melhorar. Se você olhar as fotos de pessoas negras, elas progressivamente vão se tornando mais fiéis. A pesquisadora de comunicação Lorna Roth, da Université Concordia, Montreal (Canadá), descobriu o porquê: os executivos da empresa receberam reclamações de agências de publicidade. Os filmes estavam causando problemas para retratar… chocolate e móveis.

A Kodak eventualmente lançaria uma Shirley multirracial em 1995, com uma mulher branca, uma negra e uma leste-asiática. Já era quase sem efeito: as câmeras digitais começavam a tomar o espaço dos velhos filmes físicos, e elas podem calibrar a cor antes da captura e oferecer correção digital depois.

Shirley Card Multiracial da Kodak 1994
Shirley Card multiracial da Kodak, 1994 (Kodak/Reprodução)

Mas o problema renasceu. No século 21, a tecnologia do reconhecimento facial falha em entender que nem todo mundo é branco. Em 2015, o Google teve que pedir desculpas por seu sistema de identificação de fotos ter chamado um grupo de jovens negras sorrindo de “gorilas”. Mesmo após denúncias, o problema persiste. Ano passado, um estudo da pesquisadora Joy Buolamwini, do Laboratório de Mídia do MIT mostrou que aplicativos de reconhecimento facial funcionam 99% em casos de homens brancos. E 35% em mulheres negras mais escuras –quanto mais escura a pele, maior a taxa de erro.

Isto é, assim como os filmes, estamos treinando computadores para entender o “normal” e ignorar o “anormal”. E isso é um problema sério quando programas de reconhecimento facial estão se tornando acessórios da polícia.