Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 “Cidadãos contra a tirania”: EUA de 1791 inspiram o movimento pró-armas do Brasil https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/21/historia-movimento-pro-armas/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/21/historia-movimento-pro-armas/#respond Thu, 21 Nov 2019 22:44:32 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/usa-1872561_1280-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=294 Imagine o pior: alguém decide criar uma nova ditadura no Brasil. Tanques estão na rua, o Congresso é fechado, o STF, fuzilado. Seu líder é declarado Generalíssimo, com poder absoluto. De onde vem a esperança?

Do povo! Cada qual com sua arma legalmente adquirida, todos saem às ruas e passam a confrontar violentamente as forças da tirania. Os golpistas são derrotados. Liberdade!

Parece conversa de anarquista pré-Primeira Guerra, mas é o presidente Jair Bolsonaro. Ele afirmou em junho: “Além das Forças Armadas, defendo o armamento individual para o nosso povo, para que tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta”.

Outro exemplo vem do think tank Instituto Mises Brasil. Entre dezenas artigos numa pesquisa por “desarmamento”, está o do PhD em história Gay North: Desarmamentos e Genocídios. Sugere que o Genocídio Armênio, o Massacre de Ruanda de 1994 e a Revolução Chinesa poderiam ser evitados se o lado perdedor estivesse armado. Sua conclusão:

Há uma razão por que os governos são tão empenhados em desarmar seus cidadãos: eles querem manter seu monopólio da violência a todo custo. A ideia de haver cidadãos armados é apavorante para a maioria dos políticos. Afinal, para que serve um monopólio se ele não pode ser exercido? Cidadãos armados impõem um limite natural à tirania do estado. 

Daria para preencher uma enciclopédia com mais exemplos. Não é nada exótico: é uma conversa tão americana quanto torta de maçã, Elvis Presley em Las Vegas e Oreo empanado. Uma pesquisa do Instituto Rasmussen em 2013 revelou que 65% dos eleitores americanos acreditavam que os direitos às armas eram uma “defesa contra a tirania” –  pelo número, certamente entrando na conta milhões de eleitores do Partido Democrata, o de Barack Obama, Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez. A explicação vem da história dos EUA. 

NAÇÃO SEM EXÉRCITO

Assim como o tortuoso sistema eleitoral americano, o direito às armas é uma peculiaridade da história de um país que surgiu de uma revolução que criou a república democrática liberal moderna, no que era então um experimento novo, radical e cheio de contradições – como declarar a independência dizendo que os homens serem iguais é “verdade auto-evidente” e manter a escravidão. Essa peculiaridade está consolidada na Segunda Emenda da Constituição dos EUA, ratificada em 15 de dezembro de 1791, de autoria de James Madison:

A well regulated militia being necessary to the security of a free state, the right of the people to keep and bear arms shall not be infringed

(“Uma milícia bem regulamentada sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de manter e portar armas não deve ser infringido”)

Que “milícia” seria essa? Não como as do noticiário brasileiro: milícia, por definição, é uma força de civis mobilizada militarmente (e provavelmente é uma péssima ideia continuar a usar o termo para se referir a máfias policiais).

A Revolução Americana começou movida por milícias. As Batalhas de Lexington e Concord, em 19 de abril de 1775, foram travadas por civis armados. O Exército Continental, o primeiro dos EUA, surgiu em 14 de junho do mesmo ano a partir da adesão de militares profissionais saídos do Exército Britânico – George Washington, o mais notório deles – e a profissionalização dessas milícias. Durante a Guerra de Independência, outras milícias continuariam dando seu suporte às forças profissionais. 

Os Pais Fundadores dos EUA eram basicamente unânimes na ideia do povo se ter o direito de se levantar contra o próprio governo, um direito natural codificado pelo fundador do liberalismo John Locke em seus Dois Tratados Sobre o Governo (1689). Como Noah Webster, o pai da educação americana, já deixava claro enquanto a lei ainda era pensada, em 1787:

Before a standing army can rule the people must be disarmed; as they are in almost every kingdom in Europe. The supreme power in America cannot enforce unjust laws by the sword; because the whole body of the people are armed, and constitute a force superior to any band of regular troops that can be, on any pretence, raised in the United States. (An Examination Into the Leading Principles of the Constitution)

(“Antes que um exército regular possa dominar, as pessoas devem ser desarmadas; como foram em praticamente todos os reinos da Europa. O supremo poder na América não pode impor leis injustas pela espada; porque todo o coletivo do povo é armado, e constituiu uma força superior a qualquer tropa de tropas regulares que pode ser, por qualquer razão, criada nos Estados Unidos.”)

Thomas Jefferson não só admitia como considerava salutar a violência que podia advir disso: 

The tree of liberty must be refreshed from time to time with the blood of patriots and tyrants. It is its natural manure. (Carta a William Stephens Smith, 13 de novembro de 1787.)

(“A árvore da liberdade deve ser renovada de tempos em tempos com o sangue de patriotas e tiranos. É seu esterco natural”.)

Quando os rebeldes venceram, havia uma forte antipatia à ideia de criar um exército profissional permanente, sob o poder central –, particularmente dos chamados anti-federalistas, como Jefferson, que queriam um poder o mais distribuído possível. Achavam que um exército poderia ser usado para impor a força do governo federal contra os estados. A ideia era que cada estado pudesse se defender sozinho, com suas milícias. Quando a Segunda Emenda foi aprovada, o Exército Continental havia sido desmobilizado, reduzido a 80 membros.

A ideia já estava morta no nascimento. Com a fragorosa derrota do General St. Clair contra os índios na Batalha de Wabash, em 4 de novembro de 1791, a opinião pública já estava mudando. O Exército dos EUA seria criado, como Legião dos Estados Unidos, em maio do ano seguinte, mudando o nome para “Exército” em 1796. O presidente George Washington, como chefe do Exército, também ganhou domínio sobre as milícias estaduais.

TEMPOS DO MOSQUETE

A Segunda Emenda mostra a idade. É fruto de uma época em que o grosso do combate consistia em linhas de infantaria atirando com mosquetes umas contra as outras, e então partindo para uma carga de baioneta às cegas, por conta da fumaça emitida por suas armas. Um soldado podia ser formado em uma semana. Em 1792, não havia ainda metralhadoras, submetralhadoras, fuzis de assalto, fuzis sniper, tanques, veículos blindados de infantaria, aviões, helicópteros, drones, foguetes. Nem 230 anos de avanços na doutrina militar, inclusive em contra-insurgência. É difícil imaginar o que faria o dono da padaria das esquina com seu revólver .38 contra as Forças Armadas do Brasil. Mesmo na nação da Segunda Emenda, armas automáticas são proibidas. Assim, as “milícias contra a tirania” estariam imensamente pior armadas que qualquer grupo radical islâmico que enfrentou o Exército dos EUA. 

Mas a Constituição não pode ser contestada e não está no horizonte haver quórum para repelir a Segunda Emenda. De forma que os defensores de políticas desarmamentistas americanos não podem falar simplesmente em proibir armas. O argumento que eles empregam é que os Pais Fundadores não queriam dar o direito às armas a todos os cidadãos, mas apenas a quem estivesse ligado às tais milícias, cuja função é satisfeita pelas forças policiais modernas. 

Com sua história e sua Emenda, os EUA são o país mais armados do mundo. São 120,5 armas por 100 habitantes, segundo a Pesquisa de Armas Pessoais, do Instituto Superior de Genebra (2017). É o único país com mais armas que gente – o Canadá, segundo país desenvolvido no topo, no 7º lugar, tem 34,7. O Brasil, 8,3, ocupa 97º lugar. De acordo com estatísticas coletadas pela iniciativa gunpolicy.org, da Universidade de Sydney (Austrália), em termos de mortes por armas de fogo, o Brasil está em 4º lugar, com 22 mortes por 100 mil, superado pela Venezuela (49,73), El Salvador (44,75), Jamaica (35,22) e Guatemala (25,48). Os EUA tem 12,21 mortes por armas de fogo por 100 mil, o que bate as 11,95 do México. 

Faça o que quiser desses números, mas o Brasil ter poucas armas e matar tanto assim me parece não um argumento para liberar mais armas, mas indício de certo “potencial”. E muita gente defendendo a ideia de “cidadãos contra a tirania” parece ter uma definição de tirania bem flexível, que exclui as ditaduras do Chile e do Brasil. 

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Karánsebes: a batalha mais absurda da história https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/02/batalha-karansebes/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/02/batalha-karansebes/#respond Fri, 02 Aug 2019 20:00:51 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/tinsoldiers-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=127 Não faltam desastres, vitórias pírricas e decisões estúpidas na história militar. Mas há um lugar especial para a Batalha de Karánsebes, na qual um exército enfrentou a si próprio, perdeu e bateu em retirada.

A Guerra Austro-turca havia começado em fevereiro e, naquele 21 de setembro de 1788, o grande contingente de quase 40 mil homens sob o comando do general Wartensleben esperava perto da cidade de Karásanbes (atual Romênia, grafada com C) pela coluna do imperador José II. Foi enviado para o outro lado do rio Timis, numa missão de reconhecimento, um contingente de hussardos – cavaleiros que carregavam o título dos heroicos poloneses que haviam salvado a capital austríaca Viena em 1683, dos mesmos turcos otomanos que agora enfrentavam.

Há meses em movimento, ninguém ainda na coluna de Wartensleben havia avistado os bigodes do inimigo. Ainda assim, o moral era baixíssimo. No auge do verão, os soldados parados nas tendas estapeavam mosquitos da testa suada. A malária começava a tombar suas primeiras vítimas – e seriam ela e a disenteria, não os turcos, os grandes carrascos daquela guerra.

Os hussardos não encontraram o inimigo. Mas acharam uma cena familiar: um grupo de ciganos. Com eles, um barril de schnapps, um aguardente de frutas típico do centro europeu. De pronto abriram suas burras, fecharam negócio e passaram a celebrar ali mesmo.

Com a cavalaria demorando a voltar, um destacamento de infantaria foi enviado para procurá-los. E os achou abraçados a seu tesouro. Os soldados primeiro pediram, depois exigiram participar da festa. Mas os orgulhosos cavaleiros não estavam dispostos a bater copos com a ralé que lutava a pé.

A coisa foi esquentando até chegar o inevitável. O tiro fez-se ouvir do outro lado do rio. E o primeiro grito de “turcos!”. Estava instaurado o desastre.

As tropas foram despertadas da modorreira feito colméia cutucada. Quem estava do lado do rio tentou correr para o acampamento para ser recebido a balas. Oficiais exasperados, que entenderam a situação, deram a ordem de parar: “Halt! Halt!”. Que a soldadesca, em parte formada por húngaros, eslavos e até franceses, entendeu como “Allah! Allah!”. Até cargas de artilharia foram ordenadas contra o próprio exército.

O próprio imperador acabou envolvido. Em uma carta a seu irmão Leopoldo, afirmou:

“A coluna, na qual eu me encontrava, foi completamente dispersada por canhões, vagões e todas as tendas foram reviradas, foi um horror; meus soldados atirando uns nos outros! Eventualmente a calma foi restaurada, e tivemos sorte que os turcos não estavam em nossa rota porque, caso contrário, todo o exército teria sido destruído.”

Os austríacos não resistiram ao ataque fulminante. Antes do fim da noite, o Exército da Monarquia Habsburgo entrava para a história como vítima e algoz do mais bizarro incidente de fogo amigo conhecido.

José II voltaria à Áustria em novembro e passaria o resto de seus dias enfermo. O trono passaria a seu irmão, Leopoldo II, em 30 de setembro de 1790. Em seu epitáfio, José pediu para deixar:

Aqui jaz José II, que falhou em tudo que tentou.

A Guerra Austro-Turca terminaria no Tratado de Sistova, em 4 de agosto de 1791, com ganhos minúsculos para os Habsburgo e a promessa de ambas as partes de não intervirem mais umas com as outras.

(Nota: vários locais ainda descrevem a Batalha de Karánsebes como apócrifa – é o que aparece, taxativo, na Wikipedia em português. Afirmam que seria mencionada pela primeira vez em 1847. Isso é desatualizado. Ainda que haja controvérsias sobre detalhes, particularmente os mais coloridos, como a bebedeira dos hussardos, existem, sim, relatos imediatamente após a batalha que deixam claro ter havido um sério incidente de fogo amigo no local e data. Para detalhes da campanha e o relato do próprio imperador, confira a tese de mestrado do historiador Matthew Z. Mayer, Universidade McGill, Canadá, pg. 61, uma das fontes desta matéria.)

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Devorar para curar: uma história do canibalismo medicinal europeu https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/01/canibalismo-medicinal-europeu/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/01/canibalismo-medicinal-europeu/#respond Thu, 01 Aug 2019 16:35:35 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/skull-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=113 (Aviso: esta é uma matéria sobre canibalismo. Como é de se esperar, vem coisa pesada adiante)

Segundos após o machado do carrasco descer, o povo se aproxima. Trazem em mãos as canequinhas. Começam a colher o sangue do condenado. A maioria bebe ali mesmo, outros levam para casa. Indiferente, o carrasco volta-se a uma figura bem-vestida chamando sua atenção. É um apotecário, um farmacêutico alquímico. Segue-se uma breve barganha, acertando o preço, e terminam de acordo: o corpo tem novo dono e o carrasco já inclui no preço a taxa de entrega. Como um açougueiro, se põe a trabalhar: cabe a ele extrair do corpo a gordura e a carne, separar ossos do crânio, o umbigo e o que mais for encomendado. Ao apotecário, cabe misturar essas partes humanas a plantas e mineiras, criando unguentos, pós e pílulas diversas, para curar basicamente tudo.

Com variações regionais, a cena acima já foi corriqueira por toda a Europa. Na Alemanha, como acima, os carrascos vendiam as partes aos apotecários. Na França, eles cortavam os atravessadores e vendiam direto ao povo. Na Inglaterra, onde as leis exigiam a devolução do corpo à família, raramente tinham essa oportunidade – e os cemitérios se tornavam o lugar onde colher material para curar os vivos.

Principalmente dos séculos 16 ao 18 – justamente quando traziam relatos horrorizados de povos “selvagens” devorando seus inimigos, como os astecas e os tupinambás do Brasil –, a Europa, se não foi o lugar mais canibal da terra, era o menos aquele onde cadáveres foram mais comercializados. Isso jamais aparece nos registros da época como “canibal” – termo do século 16, corruptela dos índios Caribes encontrados por Colombo. Ou mesmo o bom latim “antropófago”.

APROVADO PELA IGREJA

Porque, em nome da medicina, era algo visto como válido, civilizado. E de prestígio: no final século 15, o advogado Stefano Infessura registrou que o médico do Papa Inocente VIII, tentando salvá-lo em julho de 1492, subornou três crianças pobres na rua com a promessa de um ducado (moeda de ouro de cerca de 4g) para cada. O plano era uma sangria, o que era um procedimento extremamente comum, inclusive para o propósito de curar os outros. Mas, nesse caso, a sangria foi até a morte. O sangue das vítimas foi dado à sua santidade, que sorveu de sua cama. E morreu do mesmo jeito, dias depois.

O Rei Carlos II (1630-1683) da Inglaterra tinha sua própria receita: crânio humano moído numa tintura com álcool, que passou a ser chamada “Gotas do Rei” e, acreditavam ele e seus súditos, servia para curar tudo.

E são só dois casos entre dezenas. Deixemos com a palavra Leonardo da Vinci, em um de seus aforismas:

Preservamos nossa vida com a morte de outras. Numa coisa morta, uma vida inconsciente continua que, quando reunida com os estômagos dos vivos, recupera a vida intelectual e das sensações.

O canibalismo medicinal não era exclusividade dos europeus. Casos similares foram encontrados na China e Índia, entre outros. Já em Roma, o sangue e fígado dos gladiadores eram consumidos como uma forma de revitalização. Mas renasceu por um possível erro de interpretação tradução: lendo em manuais árabes de medicina, os médicos medievais foram procurar por certa “mummya” – termo árabe derivado de “mum”, cera. Era um tipo de betume mineral vindo da Pérsia, considerado uma cura para vários problemas, principalmente de pele.

Mas um material parecido podia ser encontrado nos corpos embalsamados dos antigos egípcios – uma material em abundância numa época em que tumbas e pirâmides ancestrais eram desmontadas para construir mesquitas. Assim, do material inorgânico persa, passaram a consumir o que vinha das múmias (agora você sabe de onde vem o nome). Por fim, o resto do corpo. Uma indústria clandestina na fonte se estabeleceu – o consumo de corpos humanos é proibido pela sharia e a atitude das autoridades variava entre leniência conivente e aplicar a pena de morte. Por séculos, múmias milenares cruzaram o Mediterrâneo para serem trituradas e ensacadas na Europa, onde eram consumidas. Inclusive, havia um mercado de falsificações: múmias de gatos, comuns no Egito, corpos recentes mumificados no deserto, corpos europeus tratados em fornos.

Por volta do século 17, as múmias originais começaram a rarear, e o preço subiu. Por essa época, “múmia” passou a constar nos manuais médicos medievais em diversas variações. “Múmia natural” ou “múmia transmarinha” era a resina original. “Múmia verdadeira” ou “múmia árabe” era o corpo de um egípcio há muito ido. E “múmia paracélsica” foi a solução para o preço alto.

A AUTORIDADE RECOMENDA

Paracelso (1493-1541) foi um dos médicos mais influente dessa era. Uma figura de transição, que tratou a medicina como algo místico e filosófico, como antes, mas também rejeitou diversas tradições em favor da observação empírica – particularmente em relação a remédios químicos (“a dose faz o veneno”, sua frase mais famosa). Paracelso não só era a favor da cura pelos corpos, como deu uma receita: um homem jovem, de 24 anos, saudável, morto de forma violenta, não doença. Sua carne deveria ficar exposta à luz da lua por uma noite e depois, preservada em ervas e sal e posta para secar ao sol. Basicamente uma forma de presunto humano (não, a gíria não deriva daí).

Mas, afinal, por que faziam isso? De acordo com o historiador britânico Richard Sugg, da Universidade de Durham, autor Mummies, Cannibals and Vampires: The History of Corpse Medicine from the Renaissance to the Victorians (sem versão em português), a principal fonte dessa matéria, é basicamente pela mesma razão que os nativos da América consumiam seus inimigos ou seus entes queridos: absorver algo deles. No caso, a “força vital”. Isso se mistura a uma visão de mundo cristã, na qual as criaturas seguem uma hierarquia e o ser humano é o ápice da criação – portanto, sangue, ossos e carne de animais não teria o mesmo poder. Algo visto na simbologia da eucaristia, o consumo da “carne e sangue de Cristo”, pois mais bárbara que interpretação possa parecer aos cristãos de hoje. Por fim, a ideia de que Deus já planejou tudo de antemão. “A fonte [da receita de Paracelso] deve ser jovem, saudável e prematuramente morta porque todos os seres vivos tem uma duração de vida predeterminada e, assim, há mais a se extrair do corpo”, escreve Sugg.

É consenso entre historiadores que a medicina canibal – ou canibalismo iátrico, para ficar no termo exato – começou a ficar para o passado junto com alquimia e as crenças religiosas aplicadas à ciência que a motivavam, na era do Iluminismo. Entre o povo, a crença demorou a morrer: na execução do Rei Luís XVI, em plena Revolução Francesa, em 1792, a turba correu ao cadafalso para embebedar lenços ou partes da própria roupa em seu sangue (até onde se sabe, para guardar como suvernires). Ainda em 1854 na Alemanha, um tumulto ocorreu numa execução, quando o povo tentou pegar o sangue do morto. O pó de múmia ainda era encontrado em farmácias europeias até o começo do século 20, quando passaram a ser tratadas como tesouro arqueológico, não matéria-prima para remédio. Sugg, porém, lembra do longo processo de jogar esse passado canibal para fora dos livros de história da medicina ocidental, justamente advindo do iluminismo, que tentou limitar a data dessas histórias à Idade Média.

Diante desse voraz, amplo, socialmente aceito, teologicamente justificado e eventualmente esquecido canibalismo europeu, soa hipócrita sua condenação das culturas indígenas? Para a antropóloga Beth Conklin, da Universidade Vanderbilt (EUA), é muito pior, pois a versão europeia tem um caráter mais cruel. “Uma coisa que sabemos é que praticamente toda a forma de prática canibal não ocidental é profundamente social, no sentido em que a relação entre quem come e é comido importa”, afirma, à Revista da Fundação Smithsonian. Isto é, comia-se os inimigos, entes queridos, sacrificados aos deuses. “No processo europeu, isso foi amplamente apagado e tornado irrelevante. Seres humanos foram reduzidos a simples matéria biológica equivalente a qualquer outro produto medicinal.”

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