Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A primeira vítima da ditadura militar: os militares https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/28/a-primeira-vitima-da-ditadura-militar-os-militares/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/28/a-primeira-vitima-da-ditadura-militar-os-militares/#respond Mon, 29 Jun 2020 01:04:39 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/marinheiros.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=542 O primeiro sangue derramado pela ditadura foi o do tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, morto em 4 de abril de 1964 por uma rajada de metralhadora pelas costas. Os tiros partiram de seus companheiros militares, por se recusar a apoiar o golpe. Sua posição de paciente zero foi reconhecida pela Justiça do Brasil em março de 2019.

Alfeu era parte de um grupo de vítimas da ditadura menos lembrado: o dos próprios militares. Quando a ditadura assumiu, imediatamente passou a um expurgo em suas forças, com o Ato Complementar nº 3, de 11 de abril, expulsando 122 oficiais de diversas patentes. Na alta cúpula, até 1966, seriam expulsos 24 dos 91 oficiais com patente de general ou equivalente. A perseguição atingiria, segundo a Comissão Nacional da Verdade, até 7.500 militares, entre expulsos, presos, torturados e assassinados.

E isso é outra parte menos lembrada do surgimento da ditadura: não era só uma disputa envolvendo João Goulart e a esquerda civil, de um lado, e os militares a direita civil, do outro. Era uma disputa também entre militares e militares. Havia uma ala pró-Goulart juntando nacionalistas e esquerdistas, que era forte na baixa patente, bastante ruidosa e teve suas vitórias. A própria posse de Goulart, em 1961, aconteceu em grande parte pelo apoio de militares dessa ala, que aderiram à Campanha da Legalidade de Leonel Brizola, contra a outra ala ameaçando fechar o congresso, segundo a denúncia do jornalista Carlos Lacerda, liderança conservadora que acabaria por apoiar o golpe em 64, para se arrepender. (A bem da verdade, a posse de Jango foi mais um “empate”: assumiu como presidente num regime parlamentarista aprovado às pressas, que seria revogado em janeiro de 1963 após um plebiscito.)

Nos anos que seguiram, os militares se polarizaram entre contra e a favor de Jango, culminando na Revolta dos Sargentos, em 12 de setembro de 1963, quando cerca de 600 militares de baixa patente se rebelaram em Brasília, prenderam adversários, inclusive um ministro do Supremo Tribunal Federal, cortaram as comunicações da cidade e tomaram o Departamento Federal de Segurança Pública e o Ministério da Marinha. A razão da revolta havia sido uma decisão do STF de considerar ilegal a eleição de militares a cargos legislativos em 1962. Esses militares representavam principalmente o movimento pró-Goulart.

Sem conquistar adesão em massa e por erros de comunicação, a revolta foi aniquilada. Seus líderes foram enviados a um navio-prisão na Baía de Guanabara.

Mas o clima de rebelião continuou. No que Elio Gaspari e diversos historiadores consideraram o principal estopim da ditadura, em 25 de março de 1964, foi a vez da Marinha. Em 24 de março, o almirante Sílvio Mota, ministro da marinha de João Goulart, decretou a prisão dos líderes da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, um sindicato considerado ilegal, que apoiava ferrenhamente o presidente. Em desafio, a associação celebrou seu aniversário no dia seguinte, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, com os líderes condenados. Os membros do Corpo de Fuzileiros Navais enviados para prendê-los aderiram ao movimento, como apoio de seu comandante, o vice-almirante vice-almirante Cândido Aragão. Humilhado, Mota pediu demissão, assumindo no lugar o almirante pró-rebeldes, pró-Jango, Paulo Mário da Cunha Rodrigues, que daria anistia a todos os rebelados no dia 27, para no dia 28 desfilarem pelas ruas do Rio. Mota, Aragão e Rodrigues seriam exonerados após o golpe. O vice-almirante dos fuzileiros, Aragão, aos seus 56 anos, chegaria a perder um olho sob torturas.

Assim foram os últimos dias da democracia. Os líderes do golpe deram também um golpe nas Forças Armadas. A guerra civil que nunca aconteceu foi ainda assim vencida e os militares à esquerda, destruídos. Sem o expurgo feito pela da direita militar, física e ideologicamente, das figuras militares que se opuseram ao golpe, seria difícil de imaginar quarteis ensinando ainda hoje que 1964 foi um “marco para a democracia“. Assim como o apoio com que um presidente como Bolsonaro ainda conta nas forças. Apologistas da ditadura raramente incluem em sua narrativa que os “comunistas” dos quais, a seu ver, salvaram a democracia, eram, em grande parte, outros militares.

A atual cultura militar do Brasil não é natural da profissão. É um legado da ditadura.

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Ditadura, só de fotógrafos, disse general a dias do golpe de 64 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/05/28/ditadura-so-de-fotografos-disse-general-a-dias-do-golpe-de-64/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/05/28/ditadura-so-de-fotografos-disse-general-a-dias-do-golpe-de-64/#respond Thu, 28 May 2020 22:43:37 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/Kruel-1.jpg true https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=511 A ideia veio da angustiante especulação sobre qual seria a real posição das Forças Armadas numa possibilidade de golpe. Resolvi descobrir o que diziam os generais à beira do golpe de 1964. Particularmente, queria saber das possíveis (e prováveis) garantias dos generais de que não haveria golpe. Fiz isso por uma pesquisa no Acervo Folha.

Saí frustrado. “Golpe” nas notícias de então era só de esquerda: o golpe que supostamente o presidente João Goulart estaria prestes a dar em si próprio. Com uma irônica exceção:

Recorte da Folha 21/04/1964
Recorte da Folha em 21/03/1964, a 10 dias do golpe militar (Acervo Folha)

O porta-voz dos EUA garantia que o país era contra golpes. O final é profético: “Só saberemos a política de [Lindon] Johnson [presidente dos EUA] a respeito da democracia na América – disse um diplomata – quando houver um golpe de Estado”. Dias depois, os EUA mandariam um porta-aviões na direção do Brasil, para ajudar o grupo golpista numa possível guerra civil. A ajuda da Operação Brother Sam, como foi chamada, não foi necessária.

O mais perto de “garantia” que consegui encontrar por parte de militares brasileiros foi uma nota curtíssima, no dia anterior:

Recorte da Folha
Recorte da primeira página da Folha em 20/03/1964 (Acervo Folha)

Em 17 de março, num encontro com o ministro da Justiça de Jango, Abelardo Jurema, o general Amauri Kruel, responsável pelo II Exército, sediado em São Paulo, teve que posar mais de uma vez para a foto (a que abre  a matéria) retratando a suposta paz entre o Poder Executivo e os militares. Jurema falou que estavam se submetendo a uma “ditadura dos fotógrafos” e Kruel se saiu, sorrindo, com: “É a única ditadura que nós admitimos no país”.

Amauri Kruel aderiria ao golpe algo relutantemente: ligou duas vezes para Jango para tentar convencê-lo a excluir a esquerda do governo como forma de ter sua fidelidade. Segundo o depoimento do coronel do Exército reformado Erimá Pinheiro Moreira à Comissão da Verdade em 2014, Kruel foi subornado pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) para aderir ao golpe.

Se Kruel estava sendo sincero com Jango, sua condição tinha dois nomes: Jango devia remover do governo o chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, e ninguém menos que Abelardo Jurema, o ministro da Justiça com quem havia posado sorridente duas semanas antes. Após o golpe, o ministro teria seus direitos políticos cassados, pelo AI-1, e seguiria para o exílio. Isso torna a foto e a frase simbólicas.

Todo historiador sabe que é um erro pegar exemplos históricos para falar do presente. O que fiz foi uma pesquisa despretensiosa e primordial, que serve para um post, não uma tese. Mas, se esse pequeno achado ilustra alguma coisa, é a relação dos militares com o regime que criaram. Diz algo sobre a negação da natureza do regime pelos militares na época, tentando manter uma fachada democrática. E dos militares até hoje em admitir que “ditadura” é a palavra para o que seu regime foi.

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Democracia tutelada: a maldição da Anistia https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/01/ditadura-anistia/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/01/ditadura-anistia/#respond Wed, 01 Apr 2020 20:33:22 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/Ditadura.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=423 O vice Mourão, que cada dia mais parece próximo a ser o próximo, apareceu ontem com um tweet de – não dá pra concluir de outra forma – apologia à ditadura militar:

Há 56 anos, as FA intervieram na política nacional para enfrentar a desordem, subversão e corrupção que abalavam as instituições e assustavam a população. Com a eleição do General Castello Branco, iniciaram-se as reformas que desenvolveram o Brasil.

Vamos tentar passar isso por um filtro de realidade: vivemos um regime civil iniciado em 1985 após uma ampla campanha pelo fim do que era chamado, nessa campanha, de ditadura. Uma nova constituição foi entregue, o que quer dizer que não foi reforma; foi revolução. Até a guerra civil que exigia uma constituição democrática ganhou o prêmio de consolação de ser chamada de “Revolução Constitucionalista” porque veio uma constituição (já prometida e na data marcada). Nosso regime é um sucessor espiritual da democracia anterior, a Quarta República de de JK e João Goulart, mas não da ditadura ou sua “revolução de 1964”, como preferia ser chamada.

O que Mourão está fazendo na prática é dar uma declaração de fidelidade a um regime antagonístico. E essa postura não tem nada de exótica nas Forças Armadas brasileiras, ainda que costume vir com uma reafirmação formal de sua submissão ao regime democrático. É o duplipensar militar: sob o comando de uma democracia, demonstram fidelidade a um regime que a destruiu a democracia, com se não houvesse contradição. É, não sei se o bom Godwin me permite a comparação, como se oficiais da Bundeswehr, as forças armadas da Alemanha democrática, saíssem fazendo declarações de que o nazismo era necessário. (Pra ficar claro: a comparação é da fidelidade errada, não entre os militares da ditadura e nazistas.) Para ficar num exemplo próximo e menos dramático: que oficiais da Argentina, Uruguai ou Chile demonstrassem fidelidade às suas ditaduras. Isso seria visto como absurdo por lá e devia ser aqui também. A condição para a existência de forças armadas democráticas é (ou devia ser) que não demonstrem simpatia a golpes militares. Caso contrário, fica a séria suspeita de constituírem não os defensores da democracia que dizem ser, mas uma quinta coluna à espera de atacar.

Essa é a Maldição da Anistia. Quando, em 28 de agosto de 1979, num gesto “generoso”, os militares perdoaram os que se opuseram ao seu regime, violentamente ou não, perdoaram a si próprios. Essa impunidade foi a imposição para que aceitassem sair do poder. Um gesto de intimidação à democracia antes da democracia começar. Durante toda a segunda metade dos anos 80, quando certo tenente Bolsonaro era acusado de entreter sua mente com explosivos, uma conversa de “inquietude nos quartéis” pairava como um cúmulo-nimbo sobre a liberdade reconquistada. Pairaria até pelo menos 1989, quando a conversa era que, se Lula vencesse, a ditadura voltava.

Foi sob essa “inquietude” – eufemismo para “intimidação” – que a Sexta República aceitou o autoperdão dos militares. E ouça, caro direitista: o fim da Anistia significaria realizar o sonho dos militares de também levar os crimes da esquerda a julgamento. Julgamento democrático, legal, constitucional; não morrer por um torturador decidindo ser juiz, algo que era proibido pelas leis da própria ditadura. Do jeito que foi, os militares preferiram simplesmente ficar de lado, com sua narrativa própria, na qual nos impuseram 21 anos de ditadura para salvar a democracia. Não se viram obrigados a assumir um real compromisso de fidelidade ao novo regime, que é aceitar o significado da mudança histórica para esse regime.

A quinta coluna continua a nos intimidar hoje: será que podemos reconhecer o absurdo, o ridículo que é precisarmos saber da opinião de generais para remover um presidente acusado de violar a Constituição e ser uma ameaça à saúde pública? De onde vem essa consulta? Que poder lhes dá a Constituição? Se nossa democracia é intimidada por essa mesma sombra desde 1985, se nossa democracia só existe como uma concessão dos militares, dá pra dizer que somos – ou fomos – uma democracia real? Um regime que nasceu intimidado, forçado a aceitar a Anistia. E que parece ter um limite sobre o que pode decidir, limite imposto por uma ameaça de uso ilegal da força.

Não estou sugerindo um grande expurgo em 1988. Voltando à Alemanha: a Bundeswehr nasceu em 1955 e fez uso de nazistas: não era exatamente fácil achar oficiais alemães sem um passado dez anos depois da guerra. Mas os nazistas tinham que fechar o bico e a revelação de um passado ou opiniões problemáticas dava escândalo e podia significar expulsão.

Dizem que a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude. Mas devíamos parar de subestimar o quanto a hipocrisia é algo superior à apologia ao vício. Hipocrisia é um problema pessoal; a apologia é de todos. Em 1988, o Brasil devia ter, no mínimo, imposto aos militares a hipocrisia.

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Em 1970, Brasil tinha uma ditadura mais repressiva que a da URSS, afirma estudo da CIA https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/17/estudo_cia_polity_brasil_urss/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/17/estudo_cia_polity_brasil_urss/#respond Fri, 17 Jan 2020 22:35:10 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/880px-golpe_de_1964-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=355 Comentando sobre a ausência de questões no Enem sobre a ditadura militar, o ministro da Educação Abraham Weintraub afirmou hoje que é um tema “polêmico” e “não há pacificação sobre o que aconteceu”. Ele não explicitou qual é a polêmica exatamente, mas o fato é que a ditadura brasileira é tão “polêmica” para o resto do mundo quanto o Genocídio Armênio é “polêmico” fora da Turquia.

Vamos trazer um exemplo que não podia ser menos de esquerda: a CIA. Essa mesma, a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos. A fonte pública da CIA afirma que o que, há 50 anos, o Brasil não só era uma ditadura, quanto extremamente repressiva. De fato, mais que a União Soviética ou Cuba na mesma época.

O diretor atual do Estudo explica por que, mas primeiro vamos ao estudo em si.

Usado pela agência e também referência para o próprio governo americano, o estudo Polity, atualmente na versão 4, teve início nos anos 1960, pelo trabalho do falecido cientista político Ted Robert Gurr (1936-2017), da Universidade de Maryland. Ele classifica o tipo de regime dos países do mundo. O trabalho de Gurr foi bancado pela CIA e a versão atual é feita pela ONG Center for Systemic Peace (“Centro para Paz Sistêmica”), criada e patrocinada pela Political Instability Task Force (“Força-tarefa da Instabilidade Política”), fundada também pela CIA, em 1994.

O Polity dá uma nota entre -10 e 10, de absoluta ditadura a absoluta democracia. Ou, pelos termos do estudo:  democracia (6-10), anocracia aberta (1-5), anocracia fechada (-1 a -5) e autocracia (-6 a -10). Anocracia querendo dizer um regime híbrido, nem democracia, nem ditadura total. Em sua última edição, cobrindo até 2013, o Brasil levava uma nota 8 e a Venezuela, 4.

Nos tempos da ditadura, entre o AI-2 e a abertura de Geisel, o Brasil tem uma nota -9. O que quer dizer autocracia absoluta, a mesma nota da União Soviética no fim do regime Stalin e da China durante a Revolução Cultural.

Gráfico Polity IV do Brasil
O gráfico do Brasil mostra uma democracia em queda, a ditadura e a abertura (Reprodução)

Na mesma época, a União Soviética levava -7:

Polity IV Russia
O gráfico da Rússia mostra uma ligeira melhora após a morte de Stalin, em 1953 (Reprodução)

Assim como Cuba:

Polity IV Cuba
Relatório de Cuba mostra a ditadura atual e a anterior, de Fulgéncio Batista (Reprodução)

Os únicos a ganhar -10 são a Coreia do Norte e o Haiti de Baby Doc Duvalier.

O Polity IV não conta mortes, mas a situação política de um país. E, em seu relatório, usa o termo “ditadura militar” para explicar o tipo de regime brasileiro, sem qualificação adicional. Monty G. Marshall, diretor atual do Centro para Paz Sistêmica, explica as razões para a nota tão baixa: “[O estudo] Polity não mede especificamente repressão, mas ele nota a coerção em determinar política pública ou limitar competição política. Em geral, ditaduras militares são semelhantes a Estados hegemônicos de partido único. Elas via de regra têm um sistema se auto-seleção para o Executivo ou autoridade designada para o Executivo”. A ditadura brasileira confirmava seus generais no Congresso, mas qual seria o “candidato” marcado para ganhar era escolhidos em decisão interna da cúpula militar. Quanto à comparação com a União Soviética, é a de uma ditadura ativa para uma que já havia sido pacificada. “O grau de repressão nas autocracias é uma função da intensidade do dissenso entre ativistas de oposição, no lugar de uma forma específica de autoridade executiva. Repressão sempre é aplicada por forças de seguranças leais em resposta a provocações reais ou percebidas. Autocracias podem evitar repressão aberta quando os elementos da sociedade civil se mantém obedientes ou inativos.”

Sobre a questão eleitoral da ditadura, a de que havia um sistema com um partido de oposição permitido e eleições regulares – geralmente levantada por seus apoiadores para negar seu status de ditadura – Monty diz que é irrelevante: “É a intenção do sistema de classificação Polity garantir que pseudo ‘democracias’recebam nota de acordo com suas práticas, não suas ‘fachadas’. Muitos regimes personalistas e de partido único tentam aumentar as percepções de legitimidade por procedimentos eleitorais que são controlados pelo regime. Desde a queda do comunismo soviético, essas ‘fachadas democráticas’ foram entendidas por autocratas como uma farsa necessária para abrandar a crítica internacional. Mas essa expectativa de penduricalhos democráticos parece estar retrocedendo em anos recentes.”

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Eleições não fazem uma democracia: os muitos golpes da Ditadura https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/15/eleicoes-nao-fazem-uma-democracia-os-golpes-da-ditadura/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/15/eleicoes-nao-fazem-uma-democracia-os-golpes-da-ditadura/#respond Fri, 15 Nov 2019 22:23:31 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/vote-3676577_1280-300x215.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=280 presidente Jair Bolsonaro acaba de dizer que não existiu ditadura no Brasil. Em suas palavras: “você tinha direito de ir e vir, você tinha liberdade de expressão, você… votava”.

Liberdade de expressão num regime com censura prévia é negacionismo. Direito de ir e vir num país com os 5 mil exilados, a maioria sem condenação formal, é discutível. Se o regime não gostasse de você, era o direito de voltar para ser preso e torturado.

Mas eleições havia. Cinco delas: 1966, 1970, 1974, 1978 e 1982. Todas permitiram oposição. Entre as denúncias contra o regime militar, não está a mera fraude eleitoral massiva, como no Império e na República Velha. As urnas não mentiam. E mesmo Emílio Garrastazu Médici, indicado por uma junta militar (mais adiante), exigiu que o Congresso fosse reaberto para “elegê-lo”. O regime não terminou por revolução, mas pela eleição presidencial de uma chapa opositora, dentro de suas próprias regras.

E, ainda assim, foi ditadura. Do começo ao fim. Mesmo nos seus momentos mais “brandos”.

A NULIDADE DO VOTO

O Brasil nem de longe está sozinho em ter tido eleições sem democracia. Para instituições que absolutamente não podem ser acusadas de esquerdismo, como a Freedom House (ONG criada pela primeira-dama americana Eleanor Roosevelt) e o Projeto Polity IV (criado pela CIA), eleições formais dizem pouco. Ambos chamam o regime militar brasileiro de “ditadura militar” sem qualquer cerimônia. Inclusive o Polity IV a classifica como mais repressiva que URSS na época do AI-5 (fica para outro dia). 

Se você concluir que eleições bastam para definir uma democracia, então o Iraque de Saddam Hussein era uma democracia. Em 16 de outubro de 2002, ele foi confirmado num plebiscito no qual atingiu 100% dos votos. A União Soviética de Stalin realizou eleições em 1937 e 1950, permitindo independentes. Foi uma armadilha para pegar quem se levantasse para se candidatar, e também medir a força dos burocratas locais, punidos quando o PCUS não vencia em seu soviete.

Há um exemplo contemporâneo: a China tem um regime multipartidário. Oficialmente, o país se declara uma democracia. Das 2.980 cadeiras no Congresso Nacional do Povo, 2.119 são do Partido Comunista da China (71%). O resto se divide entre outros 8 partidos formalmente reconhecidos. E 470 independentes.

Mas ninguém compra essa “democracia”: os partidos formalmente reconhecem a primazia do Partido Comunista da China. Políticos problemáticos têm suas candidaturas cassadas.  

As eleições da ditadura não eram iguais às da China. A oposição não era aliada. Mas há uma semelhança: era um regime que consentia uma opção eleitoral que não podia mudar nada.

ROUBANDO NO PRÓPRIO JOGO

O regime começou por limar a oposição que o incomodava: foram 41 deputados cassados no AI-1, proclamado 8 dias depois do golpe, e 168 ao longo de regime. Entre os que perderam os direitos políticos estava gente como Juscelino Kubitschek, que de esquerdista não tinha nada, mas venceria facilmente qualquer general numa eleição limpa. 

O golpe de 1964 foi só o primeiro dos vários golpes da ditadura. Dá para listar ao menos mais seis:

  1. Em 1965, veio o AI-2, impedindo a eleição direta para presidente e dissolvendo todos os partidos, forçando-os a se reunir em dois: Arena, Aliança Renovadora Nacional, o partido da Ditadura; e MDB, Movimento Democrático Brasileiro, a oposição que não havia sido posta na ilegalidade.
  2. Em 7 de dezembro de 1966, veio o AI-4, obrigando esse Congresso mutilado e sob supervisão militar a fazer uma nova Constituição ao gosto do regime.
  3. Em 13 de dezembro de 1968, veio o famoso AI-5, que suspendeu as garantias dessa própria Constituição, fechando o Congresso, criando censura prévia e permitindo prisões sem acusação formal.
  4. Em 31 de agosto de 1969, seria a vez da junta militar. O ditador (como se chama um presidente ilegítimo de uma ditadura?) Costa e Silva teve um acidente vascular cerebral e, no lugar de assumir seu vice, o civil Pedro Aleixo, como previa a Constituição dos próprios militares, tomaram o poder os três ministros das Forças Armadas, criando uma junta militar que proibiu a expressão “junta militar”. Imporiam o general Emílio Garrastazu Médici como sucessor.
  5. e 6. A Lei Falcão e o Pacote de Abril.

Esses dois últimos seriam no período Geisel, o ditador que começou a “abertura gradual”.  Nas eleições de 1970, tempos do AI-5, da vitória na Copa, do milagre econômico e do “Ame-o ou Deixe-o”, a Arena havia feito 223 cadeiras contra 87 do MDB. Todos os senadores eleitos, exceto os da Guanabara (um vestígio do antigo Distrito Federal, unificada com o Rio em 1975) eram da Arena. Na eleição seguinte, um susto: em 1974, os brasileiros de 16 dos 22 estados decidiram por candidatos da oposição no Senado – só não obtiveram maioria porque os mandatos são de 8 anos e o Senado, como ainda hoje, renovava alternadamente um terço e dois terços de suas cadeiras a cada eleição. Nas eleições de 1974, foi só um terço. No Congresso, a situação foi menos dramática: 203 versus 161. Ainda assim um avanço ameaçador.

Os militares entraram em pânico. E vieram os dois “golpinhos” já citados: a Lei Falcão é de 1/6/1976 e o Pacote de Abril, de 13/4/1977. 

Os militares mudaram as regras do jogo para a próxima partida. Pela Lei Falcão, candidatos foram basicamente proibidos de falar na TV. A lei limitava a propaganda eleitoral a uma foto do candidato com número – até mesmo jingles com letra eram proibidos. Supostamente feita para equalizar as chances entre candidatos ricos e pobres; na prática, foi um jeito de calar qualquer discussão política. O Pacote de Abril foi mais explícito: garantiu ao presidente apontar um terço do senado – os retrofuturisticamente apelidados “senadores biônicos”.

Em A Ditadura Encurralada, Elio Gaspari relata traz o relato de um político da Arena com o Geisel: “disse que o general lhes pedira que se mobilizassem para a campanha eleitoral, pois queria ‘vencer e aumentar o percentual democrático, evitando a possibilidade de uma ditadura’. Tradução: se o governo perdesse, corria-se o risco de uma virada de mesa. Corolário: para quem quiser virar a mesa, será melhor perder a eleição do que ganhá-la”.

Isto é, os próprios militares diziam que, se não dessem um golpe brando, dariam um golpe duro. Enfim, era um regime que fazia um jogo eleitoral no qual não podia perder. Como a China. Como a União Soviética. Como Cuba.

SEM UM ESTRONDO, COM UM GRUNHIDO

Nas eleições de 1978, o Senado, contando biônicos e mandatos começados em 1974, terminou com 42 para a Arena e 25 para o MDB. No Congresso, o avanço do MDB não foi totalmente contido pela Lei Falcão: 189 do MDB versus 231 da Arena. 

Sob o sucessor de Geisel, João Figueiredo, a “abertura gradual” levou à Lei de Anistia em 1979, e o fim do bipartidarismo em 1980. Em 1982, o governo militar aceitou se expor a eleições mais ou menos competitivas. O agora Partido Democrático Social, como não sem certa ironia decidiu se rebatizar a Arena, ganhou 49% dos assentos (234 de 479), com o resto dividido entre as novas legendas. 

A ditadura teria eleito seu último candidato não fosse uma traição. Dois anos depois, a imensa pressão do movimento Diretas Já, além de desavenças internas com a indicação de Paulo Maluf (último candidato do regime que prometeu limpar o Brasil) e uma proposta para estender o mandato do general Figueiredo (isto é, mais um golpe ainda), levou a um racha no partido do regime, formando o Partido da Frente Liberal (hoje Democratas).

A criação do PFL, tomando votos do PDS, e algumas abstenções do próprio PDS, levariam à eleição da chapa Tancredo Neves/José Sarney em 15 de janeiro de 1985, com 480 votos (72,4%), contra 180 (27,3%).

E, desta vez, sem apoio das classes civis que os alçaram ao poder, e não sem novas ameaças de golpe da linha dura, os militares aceitaram seu destino. Como último gesto, Figueiredo recusou-se a passar a faixa a Sarney. Famosamente declarou: “Que o doutor Tancredo dê ao povo o que eu não consegui. E que me esqueçam”.

E saiu pelos fundos do Palácio do Planalto.

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