Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Caso Evandro: caça às bruxas nos anos 1990? https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/18/caso-evandro-caca-as-bruxas-nos-anos-1990/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/18/caso-evandro-caca-as-bruxas-nos-anos-1990/#respond Thu, 18 Jun 2020 18:37:35 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/Bruxas.jpg true https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=526 O assunto veio à tona hoje por conta do suposto envolvimento de Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro na casa de quem Fabrício Queiroz foi preso esta manhã. Em 1992, ele próprio chegou a ter sua prisão requerida, acusado de participar de uma seita que teria feito dois “rituais satânicos” homicidas.

Foi o caso chamado de Bruxas de Guaratuba. Um caso que parece ter tido todas características, o rigor (sua ausência) e a fantasia dos julgamentos de bruxaria da Idade Média.

Poderia ser só uma história medonha de serial killer. Em 6 de abril de 1992, o menino Evandro Ramos Caetano desapareceu em Guaratuba, Paraná. Cinco dias depois, seu corpo foi encontrado em com indícios de uma morte brutal: peito aberto, sem vísceras, olhos perfurados, mãos amputadas, escalpo tirado. Dias depois, o pai de santo Osvaldo Marcineiro confessou ter matado a criança num ritual satânico, por encomenda da esposa e filha do prefeito da cidade, Celina e Beatriz Abagge – as “bruxas”, que afirmaram estar esperando ganhar prosperidade com isso. Eles e outros faziam parte do Centro Espírita Beneficiente Abassá Deoe. As “bruxas”  confirmaram o depoimento do pai de santo. Outro caso que havia acontecido dois meses antes, o desaparecimento de outro menino, Leandro Bossi, cujo corpo não fora encontrado, entrou na investigação – foi então que Wassef, que era parte do grupo religioso, e esteve no hotel onde trabalhava a mãe de Leandro, teve sua prisão requerida pelo delegado responsável pelo caso. Wassef não chegou a ser preso, mas sua casa em Atibaia, São Paulo, foi revistada.

E depois retiraram a confissão. Aqui começam as semelhanças com a Idade Média: a população revoltada foi às ruas, emulando naquele estereótipo de multidão com tochas e forcados, para atacar a prefeitura e a casa do prefeito. As pessoas acusadas afirmaram que foram torturadas para confessar sua “bruxaria” – e entregar outros “bruxos”. Também disseram que, na cadeia, onde ficaram entre 1992 e 1995, os guardas temiam que fossem se transformar em uma nuvem de fumaça e escapar, por isso fechavam a solda a janela da cela. E que, em outra ocasião, os guardas se jogaram no chão por medo da lua poder empoderar seus feitiços.

Em 1998, acabaram inocentadas do caso, em júri popular, que durou 34 dias. No ano seguinte, o julgamento foi suspenso, e retomado novamente em 2011, quando Beatriz acabou condenada a 21 anos e 4 meses (a mãe foi dispensada pela idade avançada). Em 2016, Celina perdoada pelo Tribunal de Justiça do Paraná, pelo caso ser considerado muito frágil. Em meio a isso, Osvaldo Marcineiro, mais o pintor Vicente Paulo Ferreira e o artesão Davi dos Santos Soares foram condenados.

Em março passado, o jornalista Ivan Mizanzuk, que cobriu extensivamente o caso em seu podcast Projeto Humanos – Caso Evandro, mostrou as gravações do interrogatório, que tinham evidências que ele considerou conclusivas de todas as confissões terem ocorrido sob tortura.

Certamente a criança parece ter sido assassinada em condições brutais, num crime horrendo. Mas o caso, como foi reportado e investigado, é imensamente suspeito, não só pela tortura e ideias supersticiosas, como a menção a religiões afro-brasileiras. Isso é mais uma semelhança com a Era Medieval: lembra um libelo de sangue, a acusação de sacrifício infantil que era feita contra os judeus da cidade, terminando em pogrom (massacre). O pai de santo, pelo racismo religioso brasileiro, ocupa o lugar do judeu.

PÂNICO SATÂNICO

E há ainda o contexto internacional. Em 1992, vivia-se o pânico moral de seita satanista. A onda começou nos Estados Unidos, em 1980, com o lançamento do livro Michelle Remembers, do psiquiatra canadense Lawrence Pazder. Nele, ele falava de uma paciente sua, a Michelle (Smith) do título, que, sofrendo de depressão, lembrou-se durante hipnose que sua mãe, entre 1954 e 1955, quando Michelle tinha 5 anos de idade, participava de um culto satânico, que fora abusada pelos membros, e que eram parte de um vasto grupo de satanistas. Pazder cunhou o termo “abuso ritual” para descrever a categoria dos crimes como os de Michelle, e, em setembro de 1990, afirmou em uma entrevista já ter desvendado “mais de 1000 casos”.

O livro deu um véu científico para uma outra onda do final dos anos 70, na cola do televangelismo: a de “ex-satanistas”, todos então fundamentalistas evangélicos, que diziam haver uma vasta rede de satanismo pelo país.

A história de Michelle simplesmente não batia com os fatos. Isso não impediu de, ao longo dos anos 80, mais de 12 mil casos terminassem investigados nos EUA, em acusações como prostituição forçada, tráfico de drogas, pornografia, abuso sexual, tortura, necrofilia, coprofilia, canibalismo de fetos… enfim, tudo de ruim em nome do Coisa Ruim. Nesses casos todos, jamais se provou haver uma real organização religiosa satanista, mas alguns casos reais partindo de indivíduos perturbados – psicopatas. As grande maioria das acusações partiam de crianças ou de pessoas relembrando “memórias reprimidas” sob hipnose, num contexto evangélico radical. Dezenas de pessoas foram presas sem provas definitivas, sob a acusação de participar da “rede satânica”, e várias continuam ainda hoje.

A ideia era parte da cultura popular mundial. Foi exportada para outros países e terminou sendo considerada pela grande maioria dos acadêmicos como um caso de pânico moral: um medo irracional e fantasioso da sociedade quase inteira, gerando uma teoria da conspiração socialmente aceita, que vai parar na grande imprensa. Como caça às bruxas original. E a maior prova é que quase não se ouve mais ouve falar disso hoje.

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Thyphoid Mary: sem ficar doente, ela matou dezenas https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/27/thyphoid-mary-sem-ficar-doente-ela-matou-dezenas/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/27/thyphoid-mary-sem-ficar-doente-ela-matou-dezenas/#respond Fri, 27 Mar 2020 21:44:52 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Mallon-Mary_01.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=412 Seu nome era Mary Mallon e ela era, como muitos milhares, uma imigrante da Irlanda para Nova York. Seu país perderia, naquele século 19, um terço de sua população para a fome, e um terço para a emigração. Aos seus 21 anos, em 1900, ela daria início a uma meteórica carreira de cozinheira para os grã-finos nova-iorquinos. Aparentemente, ela era excelente no que fazia: pelos anos que se seguiriam, trabalho nunca faltaria. Mesmo matando, sem querer, talvez dezenas de seus empregadores.

Já em seu primeiro emprego, após duas semanas de trabalho, as pessoas da casa pegaram febre tifoide: uma doença intestinal grave causada por bactérias do gênero Salmonella, uma cepa específica, que não é a mesma que pode contaminar ovos de galinha. A tifoide é letal em até 20% dos casos, o que pode ser diminuído para 1% com tratamento moderno – mas não de 1900. Passa de pessoa em pessoa pela rota fecal-oral, o que é tão ruim quanto soa: o contágio se dá por alimentos contaminados por fezes do doente. Mary Mallon, uma portadora completamente assintomática, podia ser a rainha dos temperos, mas higiene não era seu forte.

No segundo emprego, no ano seguinte, Mallon causaria a primeira morte: a lavadeira da família. No terceiro, na casa de um advogado, sete dos oito membros da família ficaram hospitalizados. E o padrão continuaria por toda sua carreira: Mary arranja um emprego, todo mundo fica doente, Mary some e arranja emprego em outro lugar. Sempre arranjava.

Foi preciso um detetive biológico para acabar com seu rastro de doença: o engenheiro sanitário George Soper, contratado por uma das famílias afetadas, entrevistou as vítimas e traçou uma rota da doença em Nova York. Só famílias ricas pegavam, não havia uma epidemia. Concluiu que a cozinheira era a responsável, entrou em contato e tentou pedir que ela que colaborasse com um exame de fezes, para ser recusado repetidas vezes. Até mesmo propôs a escrever um livro com ela e dividir os direitos autorais, mas Mary tratava a ideia de estar contaminando as pessoas como um insulto. Em 1907, acabou internada à força pela autoridade sanitária de Nova York, baseada no trabalho de Soper, e ficaria três anos em quarentena num sanatório em North Brother Island. Na imprensa nova-iorquina, ganharia a alcunha pela qual entraria na história: Thyphoid Mary, a Maria Tifoide.

Em 1910, sob a promessa de nunca mais atuar como cozinheira, Mallon libertada. Por anos, ela tentou cumprir a promessa, atuando como lavadeira, mas o dinheiro não era o bastante e ela não conseguia satisfazer sua vocação. Mudando de nome para Mary Brown, e depois vários outros nomes falsos, conseguiu ser novamente empregada como cozinheira. Um novo ciclo de contaminação começou, e, desta vez, o investigador Soper não conseguiu encontrá-la. E Typhoid Mary acabou ousando: seu último emprego seria em nada menos que um hospital: o Hospital Sloane para Mulheres. Quando 25 pessoas ficaram doentes, e duas morreram, em novembro de 1915, a polícia foi acionada e a cozinheira acabou presa de volta no antigo asilo.

Maria Tifoide passaria o resto da vida, até 1937, em quarentena. Oficialmente, três mortes foram ligadas diretamente à ela, mas estimativas de alguns historiadores, considerando todos os casos entre os ricos de Nova York, chegam a 50 vítimas fatais.

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Pare de dizer milícia; o nome é máfia https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/11/pare-de-dizer-milicia-o-nome-e-mafia/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/11/pare-de-dizer-milicia-o-nome-e-mafia/#respond Wed, 11 Mar 2020 22:53:55 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/15812743505e4054eed2e0f_1581274350_3x2_xl-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=395 Milícia é atualmente a palavra mais nociva do português brasileiro. É preciso urgentemente parar de usá-la. A Folha devia parar. Todo mundo devia.

A dita “milícia” do Rio de Janeiro (daqui por diante, só com aspas) merece ser chamada simplesmente de Máfia do Rio de Janeiro (com maiúsculas, como Cosa Nostra e Camorra). Enquanto os traficantes são outra forma de crime organizado presente na cidade, eles não tem o alcance no Estado e negócios típico de organizações que são chamadas de “máfia” pelo mundo afora. Nenhum político apareceu dizendo para legalizar o narcotráfico. E talvez nem Flávio Bolsonaro ousasse se estivéssemos falando a palavra certa.

A “milícia” se parece inclusive com a mais clássica das máfias. A definição talvez mais canônica de máfia é no Código Penal Italiano. O artigo 416-bis diz que uma organização pode ser caracterizada como mafiosa se:

Aqueles que pertencem à associação exploram o potencial para intimidação que sua condição de associados permite, e a obediência e omertà que deriva dessa condição leva à prática de crimes, ao controle direto ou indireto da administração ou liderança de atividades financeiras, concessões, permissões, negócios, e serviços públicos, com o propósito de conseguir lucro ou vantagens injustas para si próprios ou outros.

A única coisa acima que não parece se aplicar à Máfia do Rio é a omertà, nome usado para o pacto de silêncio da máfia italiana. Mas não é como se alguém pudesse sair da “milícia” apontando os nomes de seus membros secretos sem consequências. Não teria sido a morte do mafioso Adriano, herói de Bolsonaro, uma ação para impor a omertà?

PALAVRA MALDITA

Mas o que é uma milícia? É uma força paramilitar, civis reunidos para alguma atividade militar. Milícias de cidadãos começaram a Revolução Americana, em 1776 – e o termo “milícia bem organizada” está até hoje na Constituição dos EUA. Milícia também era a Guarda Vermelha dos bolcheviques, em 1917, e a União Soviética e a Iugoslávia comunista chamavam suas forças policiais de “milícia”. A “milícia” do Rio ganhou esse nome porque se organizaram para conquistar morros do narcotráfico, e já eram membros de organizações militares ou paramilitares, como a PM. Mas isso sempre transmitiu a ideia errada: eles não tomaram os morros para trazê-los ao Império da Lei, mas fizeram uma conquista de território de organizações rivais, típica de máfias, que rendeu e rende a eles muito lucro. E uma máfia com origem militar não merece ser chamada de outra forma: a Máfia Russa foi formada principalmente por ex-agentes da KGB e veteranos da Guerra do Afeganistão. Ninguém chama de “milícia russa”.

Se fosse só um erro semântico, não faria sentido eu chamar de “palavra mais nociva da língua portuguesa”. Mas a palavra “milícia” distorce grotescamente a gravidade e o significado do que estamos falando. O brasileiro, em geral, não tem nada contra militar: as Forças Armadas seguem sendo a organização mais bem-avaliada do país. “Milícia”, assim, particularmente para quem não é do Rio, dá um certo ar de dignidade, de guerreiro com uma causa, à Máfia Carioca. Não é difícil ler como um grupo de policiais particularmente durões, à Dirty Harry, que foi contra as leis “frouxas”, baseadas nos “direitos humanos”, para derrotar o narcotráfico – certamente a Máfia prefere ser vista assim.

E isso se reflete na situação política do Brasil. A Máfia matou Marielle Franco. Porque investigava a Máfia, não porque queria prender um grupo de policiais excessivamente durões em nome dos direitos humanos de “esquerda”.

O extremismo de direita brasileiro tem como uma de suas causas principais o combate ao crime pela via da brutalidade policial e a “milícia” é intimamente ligada com essa brutalidade. A brutalidade é a escola da intimidação. E uma forma como um policial, mesmo se “honesto”, torna-se um fora da lei, dando um trunfo para a Máfia recrutá-lo: o medo da punição. Não sabemos se e quanto a Máfia Carioca está infiltrada nas outras polícias. Mas os métodos do motim no Ceará –fechar o comércio, intimidar –são típicos da Máfia.

É parte da cultura popular, amplamente reproduzida em programas policialescos, que a solução para o crime é esse policial criminoso. E esses programas provavelmente são muito maiores que Olavo de Carvalho ou memes no WhatsApp em propagar a extrema direita no Brasil. Eles o tem feito por décadas. O maior ponto de aprovação de nosso governo extremista é justamente sua política de segurança. Política que se resumiu, basicamente, a tentar tornar mais difícil a punição a abusos policiais, o ponto mais central do Pacote Anticrime. Que não passou. Então a “política” tem sido um espírito de liberou geral nas forças policiais. PMs são estaduais e não respondem ao presidente, mas se sentem justificadas por suas palavras (e as do governador carioca e de outros extremistas ou plagiários). Os números da violência policial provam isso.

Essa impressão de dureza contra o crime segue firme diante de uma suspeita extremamente grave, na direção oposta: a de que a família presidencial, incluindo possivelmente o próprio mandatário da nação, está ou esteve ligada com as… “milícias”? PMs durões? Quem liga?

A família presidencial é suspeita de ligação com a Máfia Carioca.

Enquanto usarmos a palavra errada, o brasileiro médio não vai acordar para o fato de que estamos discutindo se o Brasil não elegeu a máfia para combater o crime.

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Fragging: assassinatos entre americanos e a derrota no Vietnã https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/02/16/fragging-historia-vietna/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/02/16/fragging-historia-vietna/#respond Sun, 16 Feb 2020 10:00:20 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/fragging-300x215.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=377 Para quem não viveu a época (eu incluso), o fim da Guerra do Vietnã tem algo de misterioso: como o Davi realmente venceu Golias? Por que os EUA desistiram e deixaram o Vietnã comunista ganhar por W.O, quando tombava um soldado seu para dez vietcongues?

O resumo mais aceito é que não havia mais clima político para isso. O que é vago e nebuloso –é difícil ver como hippies fazendo protesto podem fazer seu país perder uma guerra. Mas um fenômeno da guerra permite entender concretamente qual era o tamanho da desmoralização que fez com que os EUA perdessem: o fragging.

O nome vem das granadas de fragmentação (o icônico “abacaxi”) e a ação é simples: joga-se uma granada de fragmentação na tenda ou embaixo de sua cama de um oficial dormindo. E cabum! –o motim foi um sucesso. Não é possível identificar o autor facilmente porque a granada se espalha, sem deixar indícios de digitais, e, na confusão que se segue, todo mundo acaba se misturando. Além disso, os vietcongues faziam exatamente a mesma coisa, jogando granadas em tendas de americanos, tornando incerta a natureza do ataque. Por fim, mesmo quando a tropa sabia quem era o matador, pedir para quem está tão furioso quanto ele, ou tem medo dele, ser dedo-duro não era exatamente popular.

As razões para o fragging explicam como a guerra foi perdida. Havia uma diferença de geração entre oficiais e soldados: às vezes pouca, mas o suficiente para fazer valer o dito da época: “não confie em ninguém com mais de 30”. Os soldados não viam nenhum propósito na guerra, enquanto os oficiais haviam sido criados no anticomunismo dos anos 50. Os oficiais eram voluntários: estavam lá porque queriam. Os soldados eram recrutados à força, em sorteios transmitidos pela TV. Então, quando um oficial decidia ser o “John Wayne”, como diziam–arriscar a vida de todo mundo para ser visto como herói –ele se tornava alvo de fragging. E o “John Wayne” podia ser bem modesto: às vezes bastava fazer seu trabalho. Reprimir o consumo de drogas era particularmente impopular. Também havia questões raciais: oficial negro e subordinados brancos ou vice-versa. O general (negro) Colin Powell, secretário de Estado no governo de George W. Bush, afirmou que mudava seu colchonete de lugar toda noite, para não ser morto por granada. Segundo ele, por tentar reprimir drogas.

O historiador George Lepre, autor de Fragging: Why U.S. Soldiers Assaulted Their Officers in Vietnam (“Fragging: Por que os Soldados dos EUA Atacaram Seus Oficiais no Vietnã”) estimou no mínimo 900 casos, só entre 1969 e 1972, com 99 mortos. Outros casos ficaram na ameaça, verbal ou em fato, jogando uma granada não letal, de fumaça ou flashbang, como aviso. E quase certamente o número é sub-reportado: além do fragging poder ser atribuído a vietcongues, podia ser também praticado em campo, e aí com um mero tiro “mal-apontado”, não granada.

O fragging, além de ser um sintoma imenso de como os EUA desistiram do Vietnã, levou à mudança da estrutura das Forças Armadas dos EUA. Em 1973, o recrutamento compulsório foi encerrado e, desde então, a força é totalmente voluntária. Fragging continua a existir ainda hoje, e houve incidentes nas guerras do Afeganistão e Iraque –como em 2003, quando o sargento  Hasan K. Akbar jogou quatro granadas contra sua própria tropa. Mas a epidemia ficou no passado.

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“Cidadãos contra a tirania”: EUA de 1791 inspiram o movimento pró-armas do Brasil https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/21/historia-movimento-pro-armas/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/21/historia-movimento-pro-armas/#respond Thu, 21 Nov 2019 22:44:32 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/usa-1872561_1280-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=294 Imagine o pior: alguém decide criar uma nova ditadura no Brasil. Tanques estão na rua, o Congresso é fechado, o STF, fuzilado. Seu líder é declarado Generalíssimo, com poder absoluto. De onde vem a esperança?

Do povo! Cada qual com sua arma legalmente adquirida, todos saem às ruas e passam a confrontar violentamente as forças da tirania. Os golpistas são derrotados. Liberdade!

Parece conversa de anarquista pré-Primeira Guerra, mas é o presidente Jair Bolsonaro. Ele afirmou em junho: “Além das Forças Armadas, defendo o armamento individual para o nosso povo, para que tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta”.

Outro exemplo vem do think tank Instituto Mises Brasil. Entre dezenas artigos numa pesquisa por “desarmamento”, está o do PhD em história Gay North: Desarmamentos e Genocídios. Sugere que o Genocídio Armênio, o Massacre de Ruanda de 1994 e a Revolução Chinesa poderiam ser evitados se o lado perdedor estivesse armado. Sua conclusão:

Há uma razão por que os governos são tão empenhados em desarmar seus cidadãos: eles querem manter seu monopólio da violência a todo custo. A ideia de haver cidadãos armados é apavorante para a maioria dos políticos. Afinal, para que serve um monopólio se ele não pode ser exercido? Cidadãos armados impõem um limite natural à tirania do estado. 

Daria para preencher uma enciclopédia com mais exemplos. Não é nada exótico: é uma conversa tão americana quanto torta de maçã, Elvis Presley em Las Vegas e Oreo empanado. Uma pesquisa do Instituto Rasmussen em 2013 revelou que 65% dos eleitores americanos acreditavam que os direitos às armas eram uma “defesa contra a tirania” –  pelo número, certamente entrando na conta milhões de eleitores do Partido Democrata, o de Barack Obama, Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez. A explicação vem da história dos EUA. 

NAÇÃO SEM EXÉRCITO

Assim como o tortuoso sistema eleitoral americano, o direito às armas é uma peculiaridade da história de um país que surgiu de uma revolução que criou a república democrática liberal moderna, no que era então um experimento novo, radical e cheio de contradições – como declarar a independência dizendo que os homens serem iguais é “verdade auto-evidente” e manter a escravidão. Essa peculiaridade está consolidada na Segunda Emenda da Constituição dos EUA, ratificada em 15 de dezembro de 1791, de autoria de James Madison:

A well regulated militia being necessary to the security of a free state, the right of the people to keep and bear arms shall not be infringed

(“Uma milícia bem regulamentada sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de manter e portar armas não deve ser infringido”)

Que “milícia” seria essa? Não como as do noticiário brasileiro: milícia, por definição, é uma força de civis mobilizada militarmente (e provavelmente é uma péssima ideia continuar a usar o termo para se referir a máfias policiais).

A Revolução Americana começou movida por milícias. As Batalhas de Lexington e Concord, em 19 de abril de 1775, foram travadas por civis armados. O Exército Continental, o primeiro dos EUA, surgiu em 14 de junho do mesmo ano a partir da adesão de militares profissionais saídos do Exército Britânico – George Washington, o mais notório deles – e a profissionalização dessas milícias. Durante a Guerra de Independência, outras milícias continuariam dando seu suporte às forças profissionais. 

Os Pais Fundadores dos EUA eram basicamente unânimes na ideia do povo se ter o direito de se levantar contra o próprio governo, um direito natural codificado pelo fundador do liberalismo John Locke em seus Dois Tratados Sobre o Governo (1689). Como Noah Webster, o pai da educação americana, já deixava claro enquanto a lei ainda era pensada, em 1787:

Before a standing army can rule the people must be disarmed; as they are in almost every kingdom in Europe. The supreme power in America cannot enforce unjust laws by the sword; because the whole body of the people are armed, and constitute a force superior to any band of regular troops that can be, on any pretence, raised in the United States. (An Examination Into the Leading Principles of the Constitution)

(“Antes que um exército regular possa dominar, as pessoas devem ser desarmadas; como foram em praticamente todos os reinos da Europa. O supremo poder na América não pode impor leis injustas pela espada; porque todo o coletivo do povo é armado, e constituiu uma força superior a qualquer tropa de tropas regulares que pode ser, por qualquer razão, criada nos Estados Unidos.”)

Thomas Jefferson não só admitia como considerava salutar a violência que podia advir disso: 

The tree of liberty must be refreshed from time to time with the blood of patriots and tyrants. It is its natural manure. (Carta a William Stephens Smith, 13 de novembro de 1787.)

(“A árvore da liberdade deve ser renovada de tempos em tempos com o sangue de patriotas e tiranos. É seu esterco natural”.)

Quando os rebeldes venceram, havia uma forte antipatia à ideia de criar um exército profissional permanente, sob o poder central –, particularmente dos chamados anti-federalistas, como Jefferson, que queriam um poder o mais distribuído possível. Achavam que um exército poderia ser usado para impor a força do governo federal contra os estados. A ideia era que cada estado pudesse se defender sozinho, com suas milícias. Quando a Segunda Emenda foi aprovada, o Exército Continental havia sido desmobilizado, reduzido a 80 membros.

A ideia já estava morta no nascimento. Com a fragorosa derrota do General St. Clair contra os índios na Batalha de Wabash, em 4 de novembro de 1791, a opinião pública já estava mudando. O Exército dos EUA seria criado, como Legião dos Estados Unidos, em maio do ano seguinte, mudando o nome para “Exército” em 1796. O presidente George Washington, como chefe do Exército, também ganhou domínio sobre as milícias estaduais.

TEMPOS DO MOSQUETE

A Segunda Emenda mostra a idade. É fruto de uma época em que o grosso do combate consistia em linhas de infantaria atirando com mosquetes umas contra as outras, e então partindo para uma carga de baioneta às cegas, por conta da fumaça emitida por suas armas. Um soldado podia ser formado em uma semana. Em 1792, não havia ainda metralhadoras, submetralhadoras, fuzis de assalto, fuzis sniper, tanques, veículos blindados de infantaria, aviões, helicópteros, drones, foguetes. Nem 230 anos de avanços na doutrina militar, inclusive em contra-insurgência. É difícil imaginar o que faria o dono da padaria das esquina com seu revólver .38 contra as Forças Armadas do Brasil. Mesmo na nação da Segunda Emenda, armas automáticas são proibidas. Assim, as “milícias contra a tirania” estariam imensamente pior armadas que qualquer grupo radical islâmico que enfrentou o Exército dos EUA. 

Mas a Constituição não pode ser contestada e não está no horizonte haver quórum para repelir a Segunda Emenda. De forma que os defensores de políticas desarmamentistas americanos não podem falar simplesmente em proibir armas. O argumento que eles empregam é que os Pais Fundadores não queriam dar o direito às armas a todos os cidadãos, mas apenas a quem estivesse ligado às tais milícias, cuja função é satisfeita pelas forças policiais modernas. 

Com sua história e sua Emenda, os EUA são o país mais armados do mundo. São 120,5 armas por 100 habitantes, segundo a Pesquisa de Armas Pessoais, do Instituto Superior de Genebra (2017). É o único país com mais armas que gente – o Canadá, segundo país desenvolvido no topo, no 7º lugar, tem 34,7. O Brasil, 8,3, ocupa 97º lugar. De acordo com estatísticas coletadas pela iniciativa gunpolicy.org, da Universidade de Sydney (Austrália), em termos de mortes por armas de fogo, o Brasil está em 4º lugar, com 22 mortes por 100 mil, superado pela Venezuela (49,73), El Salvador (44,75), Jamaica (35,22) e Guatemala (25,48). Os EUA tem 12,21 mortes por armas de fogo por 100 mil, o que bate as 11,95 do México. 

Faça o que quiser desses números, mas o Brasil ter poucas armas e matar tanto assim me parece não um argumento para liberar mais armas, mas indício de certo “potencial”. E muita gente defendendo a ideia de “cidadãos contra a tirania” parece ter uma definição de tirania bem flexível, que exclui as ditaduras do Chile e do Brasil. 

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Horror em Amityville: 45 anos do massacre da família DeFeo https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/13/horror-amityville-massacre-defeo/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/13/horror-amityville-massacre-defeo/#respond Wed, 13 Nov 2019 21:06:44 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/112_Ocean_Avenue_1973_2-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=282 Eram 18h30 de 13 de novembro de 1974 quando Ronald DeFeo Jr. entrou aos gritos no Henry’s Bar . “Vocês têm que me ajudar! Acho que atiraram no meu pai e na minha mãe!”.

Um grupo de amigos o acompanhou até sua casa, a alguns quarteirões dali. O bar e a casa ficavam em Amityville, municipalidade de Babylon, Long Island, estado de Nova York.

A cena que encontraram era ainda pior que o anunciado. Não só pais, Ronald DeFeo  (44) e Louise DeFeo (42), com as irmãs Dawn (18) e Allison (13), e os irmãos Marc (12) e John Matthew (9): todos mortos. Jazendo de bruços em suas camas, executados a tiros – dois para cada pai, um só para os irmãos.

A polícia tomou o depoimento de Ronald, que sugeriu que o mafioso Louis Falini era o responsável – o tio-avô de Ronald, Peter DeFeo, era, de fato, um caporegime da máfia de Nova York. Falini, porém, tinha um álibi: estava fora da cidade no dia. Logo o depoimento de Ronald começou a desabar em meio a várias inconsistências. Ronald terminou por confessar os assassinatos. Ele matou a família em 15 minutos, por volta das 3h da manhã daquele 13 de novembro. Disse que tomou banho e saiu de casa às 6h, dando fim à arma do crime – uma carabina Marlin 336 – e suas roupas sujas de sangue, jogando-os num bueiro. Daí seguiu para o trabalho normalmente.

Os advogados de DeFeo alegaram insanidade. Durante o julgamento, ele afirmou ter ouvido vozes comandando-o a matar a família. Também era usuário de heroína e LSD, e foi diagnosticado com transtorno de personalidade antissocial. Não colou: Ronald DeFeo terminaria condenado à prisão perpétua, onde permanece até hoje.

ASSOMBRAÇÃO LUCRATIVA

A icônica e luxuosa casa, em arquitetura colonial holandesa, ficou parada por 13 meses. Até ser comprada pelo casal George e Kathleen Lutz, em dezembro de 1975, por uma ninharia, e incluindo os móveis da família DeFeo. Eram recém-casados e Kathleen tinha 3 crianças de outro casamento. Os Lutz mudaram-se para a casa em Amityville em 19 de dezembro. Nos 28 dias em que permaneceriam, até saírem de madrugada, sem pegar nada, afirmaram ter visto (só para citar alguns):

  • Uma praga de moscas em meio ao inverno;
  • As crianças dormindo na posição em que os corpos foram encontrados;
  • Uma imagem de um demônio surgindo na lareira;
  • Uma cadeira de balanço se movendo sozinha;
  • Kathleen recebendo marcas no corpo sem explicação;
  • Um crucifixo virando de cabeça para baixo sozinho;
  • A filha de 5 anos, Missy, afirmar ter visto um amigo imaginário, uma demônio em forma de porco com olhos vermelhos; também encontraram pegadas de porco do lado de fora.
  • George vendo Kahtleen se transformar em uma velha de 90 anos;
  • Uma meleca verde saindo das paredes.

A história dos Lutz seria romantizada pelo escritor Jay Anson, a partir de 45 horas de depoimento do casal, e publicada como Horror em Amityville, em setembro de 1977. O filme viria em 1979.

Os Lutz foram acusados de mentir: quase nada do que disseram foi comprovado. Não havia marcas de animais, nem dano à casa, nem os vizinhos notaram qualquer coisa de anormal em sua estadia. Quando o livro saiu, a casa já havia sido vendida para James e Barbara Cromarty, em março de 1977. Viveriam lá por 10 anos. Quando indagado sobre aparições, James dizia: “Nada estranho jamais aconteceu, exceto por gente aparecendo por causa do livro e do filme”. A casa continua habitada, com uma reforma mudado as janelas para disfarçar. Continua oficialmente não assombrada.

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Morte pelo correio: o mistério dos ataques de antraz de 2001 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/09/19/ataques-antraz-2001/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/09/19/ataques-antraz-2001/#respond Thu, 19 Sep 2019 17:08:16 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/Anthrax_Envelope_to_Daschle-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=250 Em 19 de setembro de 2001, uma semana e um dia após atentado das torres gêmeas, cinco cartas chegavam a meios jornalísticos dos EUA. Uma era destinada à America Media Inc., em Boca Ratón, região metropolitana de Miami, Flórida. As outras quatro, aos telejornais da ABC News, da CBS News, da NBC News, e ao jornal impresso The New York Post, todos em Nova York. Dentro delas, uma mensagem ameaçadora e um pó branco, contendo esporos de uma versão militarizada do Bacillus anthracis – causador do antraz (ou carbúnculo), infecção bacteriana extremamente letal em sua versão respiratória.

E… nada. O dia terminaria sem que ninguém se desse conta do que havia acontecido. Provavelmente foi dispensado como ainda mais outro boato, na onda dos atentados do WTC, na qual uma maré de engraçadinhos havia começado a mandar e-mails, telefonemas e cartas ameaçadoras a meios de comunicação, fingindo ser terroristas islâmicos. E essas não pareciam diferentes. Dentro delas, havia a mensagem, com erro de ortografia:

Carta de antraz à NBC
Carta com antraz enviada à NBC (Governo dos EUA/Domínio Público)

Algo como: “11-09-2001 / O QUE VEM A SEGUIR[lit.  Isto é o próximo] / TOME A PENACILINA [sic] AGORA / MORTE À AMÉRICA / MORTE A ISRAEL / ALLAH É GRANDE”.

Seria apenas duas semanas depois, em 2 de outubro, que as consequências começariam a aparecer. Foi quando o editor de fotografia do Sun, Robert Stevens, de 63 anos, deu entrada ao hospital com febre alta e náusea. Por 48 horas, os médicos lutaram para entender o que estava acontecendo – nenhum havia lidado com antraz na vida; havia 25 anos que ninguém morria da doença nos EUA. Quando chegaram ao veredito, era tarde demais para Stevens, que faleceria na sexta-feira, dia 5.

No mesmo dia, em Miami, Ernesto Blanco, 73, que dera entrada em outro hospital por suspeita de pneumonia, foi diagnosticado com antraz. Quando Blanco revelou que trabalhava no mesmo prédio que Stevens, o que era uma investigação médica se tornou um caso de polícia. O FBI descobriu esporos de Antraz no teclado da mesa de Stevens, e o prédio inteiro da AMI foi interditado no domingo, dia 7.

Uma tensa semana se seguiria, na qual novos casos foram identificados, as cartas à NBC e o New York Post foram encontradas, e mais ameaças falsas foram enviadas, incluindo uma para a Microsoft e outra para a repórter Judith Miller, do New York Times. Até a manhã segunda-feira, dia 15, em Washington, quando Grant Leslie, secretária do senador Tom Daschle, abre uma correspondência para ver um pó branco cobrindo seu colo. A mensagem, agora, é ligeiramente diferente.

Conteúdo da carta de antraz ao senador Daschle
Conteúdo da carta de antraz ao senador Daschle (Governo dos EUA/Domínio Público)

“VOCÊS NÃO PODE NOS PARAR / TEMOS ESTE ANTRAZ / VOCÊS MORREM AGORA / ESTÃO COM MEDO / MORTE À AMÉRICA / MORTE À ISRAEL / ALLAH É GRANDE”

O prédio foi quarantinado e, no dia seguinte, outra carta com antraz, ao senador Patrick Leahy, seria encontrada fechada. Leslie e outras pessoas atingidas passaram por atendimento médico imediato e não desenvolveram a doença. Mas, fechadas, essas duas cartas já haviam feito vítimas fatais.

O MISTÉRIO AUMENTA

Os ataques parariam por aí, num saldo de 22 pessoas desenvolvendo a doença, cinco de forma fatal. E não era preciso abrir o envelope. Além de Stevens, morreriam também Thomas Morris Jr. e Joseph Curseen, funcionários dos correios em Washington. Outras duas vítimas permaneceriam um mistério até hoje: Kathy Nguyen, funcionária de uma clínica em Nova York, e Ottilie Lundgren, aposentada de 93 anos de Oxford, Connecticut.

As suspeitas, a princípio, foram para o alvo óbvio, terroristas da Al Qaeda. Mas a análise genética das bactérias revelou que elas pertenciam à chamada Cepa Amis, que tinha uma origem bem próxima: o programa de armas biológicas americano, conduzido em Fort Detrick, Maryland. Em agosto, a investigação apontou para o médico especialista em armas biológicas Steven Hatfill, que trabalhava em Fort Detrick. Por longos anos, Hatfill seria tratado como o principal suspeito, até março de 2008, quando a investigação foi arquivada e ele recebeu uma indenização de US$ 5,8 milhões pelo dano à sua reputação.

A notícia parece ter caído como uma bomba sobre um ex-colega de trabalho, Bruce Edwards Ivins, que, sem saber, era o suspeito número dois. Segundo seus colegas, o cientista, que tinha um histórico de problemas mentais, pareceu altamente perturbado após Hatfill ser inocentado. Em 19 de março, a polícia foi enviada à sua casa para encontrá-lo inconsciente e levá-lo ao hospital.

Em junho, sob depressão extrema e risco de suicídio, foi internado numa instituição psiquiátrica. O FBI o interpelou lá, e o resultado foi um depoimento considerado ambíguo, como frases como “Posso dizer que não tenho em meu coração matar ninguém”, “Não me lembro de nada como isso [armas biológicas]” e “Não penso em mim mesmo como uma pessoa terrível, cruel, maligna”. Tendo alta, foi informado oficialmente da investigação.

Em 27 de julho, Irvins encontrado inconsciente outra vez em casa. Dessa vez, não sobreviveria: havia tomado uma dose letal de paracetamol e codeína, e padeceria dois dias depois.

A investigação concluiria, em agosto de 2008, que Irvins era culpado e agira sozinho. As evidências apresentadas foram seu passado de transtornos psiquiátricos, suas tentativas de confundir a investigação e destruir provas, suas declarações demonstrando culpa, suas horas extras precedendo o ataque, o fato de ele ter se vacinado no começo de setembro e, crucialmente, a mesma cepa da bactéria usada nos ataques ter sido encontrada num frasco seu laboratório, identificado como RMR-1029.

O que teria levado um cientista interiorano, com 55 anos na época do ataque, católico, casado e com dois filhos, a cometer o mais letal atentado biológico da história moderna? Ironicamente, pela hipótese mais aceita, o fato de ser um pesquisador de vacinas contra antraz. Irvin havia sido informado que seria transferido da pesquisa com antraz para outro agente biológico, e havia ficado muito perturbado. O propósito do ataque seria incendiaria o interesse do país pelo antraz – o que fez.

Um caso literal de cientista louco? Não faltou gente para duvidar. Entre outros, o jornalista Glenn Greenwald (esse mesmo), pediu pela reabertura das investigações. Seus colegas de trabalho foram unânimes em por em dúvida a conclusão. Henry S. Heine, um microbiólogo de Fort Detrick, afirmou que seria impossível alguém produzir armas biológicas sem ser notado pelos colegas, e sem contaminar todo o prédio, matando pessoas e animais. Estudos científicos apontaram que não haveria como estabelecer com 100% de precisão que os exemplares de antraz que Irvin mantinha eram mesmo os usados nos ataques – lembrando que ele distribuiu seus exemplares para outros cientistas.

No ano passado, o biólogo Scott Decker, funcionário do FBI que trabalhou nas investigações, lançou um livro sobre o assunto, demonstrando a sofisticação inovadora da pesquisa genética usada no caso. Outro agente do FBI, Glenn Cross, resenhou seu livro e não ficou convencido. “Ainda que os resultados forenses microbiológicos foram consistentes com RMR-1029 e seus descendentes como a origem das cartaz com antraz, a ciência em si não foi definitiva e foi insuficiente para estender a  sombra da culpa sobre Irvins”.

Mas se não Irvins, quem teria sido?

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Os EUA financiaram Osama bin Laden? https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/09/11/os-eua-financiaram-osama-bin-laden/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/09/11/os-eua-financiaram-osama-bin-laden/#respond Wed, 11 Sep 2019 20:05:14 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/osamastates-1-300x215.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=243 Há quem veja uma uma perversa ironia nos ataques de 11 de setembro de 2001. A de que o mandante teria começado sua carreira sob patrocínio dos próprios EUA. Osama bin Laden teria recebido dinheiro da CIA durante sua participação na Guerra do Afeganistão (1979-1989). E essa é uma que mesmo quem não é adepto de teorias da conspiração costuma repetir como um fato de conhecimento público.

Bin Laden lutou no Afeganistão ao lado dos mujahidins (termo em árabe para “quem faz a Jihad”). Assim se chamavam os militantes islâmicos combatendo os soviéticos, que haviam entrado no país para tentar defender o governo afegão contra sua insurgência. E os mujahidins, definitivamente, receberam dinheiro da CIA, num total de US$ 3 bilhões (cerca de US$ 6 bilhões hoje).

Mas, até onde documentos e testemunhos podem provar, Osama nunca embolsou um tostão do Tio Sam – algo que ele e a CIA sempre afirmaram. O jornalista Peter Bergen, que escreveu sete livros sobre Bin Laden e a Guerra ao Terror, foi um dos muitos que pesquisou e não achou nada. O jornalista Steve Coll ganhou o prêmio Pulitzer por seu livro de 2004, Ghost Wars: The Secret History of the CIA, Afghanistan, and Bin Laden, from the Soviet Invasion (“Guerras-Fantasma: A História Secreta da CIA, Afeganistão e Bin Laden, da Invasão Soviética”). No livro, ele afirma: “Bin Laden se movia pelas operações de inteligência compartimentadas sauditas, fora da vista da CIA. Os arquivos da CIA não contém qualquer registro ou contato entre um oficial da CIA e Bin Laden nos anos 1980”.

Há uma razão para acreditar que Osama não foi parar no borderô da CIA: primeiro, era filho de uma das famílias mais ricas da Arábia Saudita e levou seu próprio dinheiro para financiar sua luta, parte da torrente de dinheiro saudita que foi parar nas mãos dos mujahidins.

Indiretamente, o terrorista certamente se beneficiou do patrocínio EUA. Dois de seus grandes aliados, os líderes mujahidins Gulbuddin Hekmatyar e Jalaluddin Haqqani, eram amplamente apoiados pela CIA, e continuaram a dar seu suporte a ele. Haqqani facilitou sua fuga do Afeganistão em 2001 – e, com isso, garantiu sua sobrevivência pelos anos que se seguiram.

Mas há um terrorista que atacou os EUA e foi, com certeza, patrocinado pela CIA. Omar Abdel-Rahman, o “sheik cego”, recebeu apoio americano no Afeganistão. Inclusive, a CIA mexeu uns pauzinhos para conseguir seu visto de entrada nos EUA, em 1991, quando outras autoridades desconfiavam que podia ter intenções terroristas. Menos de dois anos depois, em 23 de fevereiro de 1993, ele comandou o ataque com caminhão-bomba ao World Trade Center. O plano era fazer uma torre cair em cima da outra, mas o resultado foram seis mortos e dano local. Era para ser só um de uma série de ataques a Nova York, mas Rahman acabou preso em junho do mesmo ano, e ficaria até sua morte, em 2017. Sua história serviria de inspiração para Osama, digamos, “terminar o trabalho’ em 2001.

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5 fatos que provam que Charles Manson era um assassino calculista, não um hippie lunático https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/08/5-fatos-charles-manson-nao-hippie/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/08/5-fatos-charles-manson-nao-hippie/#respond Thu, 08 Aug 2019 17:52:47 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/Manson1-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=146 Na madrugada de 8 para 9 de agosto de 1969, um grupo de três jovens – Tex Watson, Susan Atkins e Patricia Krenwinkel (com Linda Kasabian como espia, na rua), invadiu o casarão em 10050 Cielo Drive, Los Angeles. Eram membros da Família Manson, um grupo supostamente hippie comandado por Charles Manson, que acreditavam ser a reencarnação de Jesus. A tiros e facadas, foram massacrados os 5 ocupantes da casa, incluindo quem se tornaria o símbolo do massacre, a atriz Sharon Tate, grávida de 8 meses e meio, esposa do diretor Roman Polanski, que estava fora, filmando na Europa.

O líder não ficou feliz com a atuação, que achou bagunçada. Na noite seguinte, comandou pessoalmente o assassinato do casal Leno e Rosemary LaBianca, em outro local da cidade. Nenhuma das vítimas tinha qualquer relação com o líder ou ninguém mais da seita.

Charles Manson acabaria entrando para a cultura popular como uma figura maligna, mas com algo de folclórico. Um símbolo das ideias exóticas da era hippie, um desvio macabro da contracultura dos anos 1960. Dizia que Helter Skelter, música dos Beatles do Álbum Branco, do ano anterior, era um anúncio guerra de raças que viria – os negros venceriam, mas os brancos se esconderiam no subsolo para reemergirem como elfos de luz e tomarem seu lugar. Ele tentara uma carreira musical, mas acabara recusado por um produtor importante. Assim, num ato de vingança, ele ordenou os assassinatos contra a casa do produtor, que não morava mais lá. Como forma de incitar a tal guerra racial, deixaram mensagens em sangue para fazer a polícia acreditar que o crime era dos Panteras Negras: “pig” (porco), escrito com o sangue de Sharon Tate, era como eles se referiam aos policiais (e “political pig”, aos brancos conservadores). O nome da guerra, Helter Skelter, também foi pintado.

Em outras palavras, um bicho-grilo fora desse mundo, que cometeu um ato aleatório por excesso de drogas e ideias exóticas da geração hippie.

Charles Manson em 1968
Charles Manson fotografado em passagem pela polícia não relacionada, mais de um ano antes dos assassinatos (California Department of Corrections and Rehabilitation)

1. MANSON FEZ DA SEITA UM NEGÓCIO

Manson não era da geração de seus seguidores. Nascido em 1934, sua vida havia sido uma catástrofe, de abuso e negligência na infância a passagens pelo reformatório na adolescência e múltiplos crimes, principalmente roubo, na vida adulta. Havia passado por um casamento arruinado, que incluiu um filho, em 1955. Entre suas diversas passagens pela polícia, havia sido diagnosticado como sociopata manipulativo, com um QI ligeiramente acima da média (100), 109. Em 1967, quando saiu de sua segunda prisão, havia passado mais da metade de seus 32 anos atrás das grades. E encontrou um mundo de efervescência jovem pronta para ser abusada. Criou sua seita – baseada em sexo “livre” comandado por ele. Recrutava mulheres em situação vulnerável, até 18 anos mais jovens que ele, prometendo liberação espiritual, e ordenando-as a fazer sexo para conquistar os poucos membros homens ou conseguir amizades e outros favores, incluindo pagar o aluguel. Em outras palavras, a seita era um negócio baseado em abuso psicológico e sexual, que serviria para catapultar seu plano narcisista para ser idolatrado por multidões: o estrelato no rock.

2. O CRIME NÃO FOI UM ENGANO

Foi oferecendo o “serviço” de sua seita que Manson se tornou amigo do baterista dos Beach Boys, Dennis Wilson – e arrancou um bocado de dinheiro dele, inclusive para tratamento de gonorreia, que acometeu eles e o resto da seita. Wilson o apresentou à indústria musical, incluindo o produtor Terry Melcher, e chegou a colocar uma música sua, sem crédito e altamente modificada, num álbum dos Beach Boys: Never Learn Not to Love, baseada em Cease to Exist, de Manson. Isso azedou a relação, mas antes ambos haviam frequentado a casa de Melcher, a fatídica residência em 10050 Cielo Drive. Em janeiro de 1969, recomendado por sua mãe a se afastar de Manson, Melcher se mudara, cedendo lugar à Roman Polanski e Sharon Tate. Assim, o líder da seita sabia muito bem que Melcher não morava mais lá: ele não só visitava sua casa pessoalmente, como manteve contato após a mudança, até a confirmação da recusa de qualquer possibilidade na indústria musical por Melcher, em junho. O assassinato foi ordenado contra o imóvel que tinha certa simbologia para ele, mas não pessoalmente aos ocupantes. Não uma vingança, mas um ato terrorista.

3. A GUERRA RACIAL É UMA IDEIA EXÓTICA

Um ato terrorista com uma causa conhecida. Durante seu julgamento, em 1971, Mason apareceu com um X cortado a faca na testa. Depois, completou com os braços de uma suástica, que permaneceu lá até o fim de sua vida. Foi visto como parte de sua maluquice. Mas Manson sabia o que queria dizer quando falava em guerra racial, ideia não inventada por ele e repetida ainda hoje por supremacistas brancos. Na cadeia, recusava-se a interagir com prisioneiros negros, falava gírias racistas o tempo todo e acabou se juntando à Irmandade Ariana. “Charles Manson foi um dos mais virulentos racistas que já andaram no planeta”, afirmou Jeff Guinn, autor de Manson: A Biografia, em entrevista à Newsweek. Segundo Guinn, é preciso esquecer a ideia de uma orgia de destruição movida por drogas, quando o ato de Mason é um precursor dos cometidos por terroristas supremacistas brancos atuais.

4. A SEITA E SEU LÍDER JÁ HAVIAM MATADO

Também foi um ato que não veio do nada. Mason alegou a vida toda que os crimes foram uma loucura isolada de seus seguidores, sem relação com ele próprio. Mas ele havia cometido mais de um crime violento. Em maio de 1969, havia atirado pessoalmente no traficante Bernard Crowe, deixado a cena acreditando-o por morto. Crow sobreviveu, potencialmente para testemunhar. Dois meses depois, ordenou o sequestro do amigo da seita Gary Hinman, que foi mantido de refém por três dias, sob tortura, com Manson chegando a cortar sua orelha. Manson queria dinheiro, mas como Hinman não entregou nada – depois se descobriria que tinha US$ 33 em sua conta bancária – o líder ordenou sua execução, levada a cabo pelo ex-ator infantil e ex-roomate de Hinman, Bobby Beausoleil. Uma figura conhecida de Hollywood. O que nos leva à….

5. O CRIME PODE TER SIDO O ACOBERTAMENTO DE OUTRO

Como fariam depois, os membros da seita escreveram “porco político” na parede, tentando incriminar os negros pela morte de Hinman. Não funcionou: Beausoleil acabou preso pelo crime, meros três dias antes do ataque à casa em Cielo Drive. Um ator de Hollywood assassino certamente chamaria a atenção indesejada – e poderia acusar a seita. Foi nessa situação que Mason ordenou os ataques, um crime de alto impacto midiático para ocupar a polícia e a mídia com algo mais urgente, potencialmente ampliado pelo escândalo racial. Poderia ter dado certo: dias depois do crime, a polícia invadiu o Rancho Spahn, onde a seita morava, sob uma acusação de roubo de veículos. Na hora, ficou por isso mesmo. Em 26 de agosto, Donald Shea, funcionário do rancho, que achavam tê-los dedurado, foi morto. Em outubro, finalmente, os membros da seita foram presos – por roubo de veículos. Só então a investigação começou a ligar os pontos entre os múltiplos assassinatos, levando à condenação de Manson, Watson, Atkins, Kerwinkle, mais Leslie van Houten, envolvida no crime do casal LaBianca (Linda Kasabian colaborou com a defesa e foi solta). Susan Atkins morreria na cadeia em 2009 e Mason, em 2017. Os demais continuam cumprindo prisão perpétua.

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