Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Irã vem dos arianos: 5 fatos pouco lembrados sobre o país https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/09/ira-arianos-5-fatos/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/09/ira-arianos-5-fatos/#respond Thu, 09 Jan 2020 20:50:30 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/azadi-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=336 Com as tensões crescentes entre EUA e Irã, é uma boa hora para desbaratar mitos e trazer um pouco mais do país. Estes são 5 fatos pouco conhecidos ou mal-interpretados sobre o Irã, que pouco tem pouco a ver com a teocracia radical instalada em 1979.

1. O IRÃ É A PÉRSIA, MAS NEM TODO IRANIANO É PERSA

O Irã era chamado de Pérsia até 1934, e fica na mesma região do centro do império que quase conquistou a Grécia na Antiguidade. Iranianos não tem nada a ver com árabes. Sua língua principal, o persa, é uma língua da família indo-européia, mais próxima ao português que ao árabe, escrita numa versão modificada do alfabeto árabe. Todos vivem na ex-Pérsia, mas os iranianos não são simplesmente persas. Persas são a etnia majoritária do Irã, por volta de 60% da população, e maioria em grandes centros como Teerã. Mas há azeris, curdos, turcomenos e, sim, árabes (2%), entre outros.

2. IRÃ VEM DE “ARIANO”

Irã não é um nome religioso e não tem nenhuma relação com o Islã. Quase ao contrário, parte do nacionalismo persa, que competiu com a religião até a revolução de 1979, e ainda é anima grupos no exílio. Em 1934, o monarca Reza Shah Pahlavi pediu ao mundo que parasse de usar “Pérsia” e passasse a se referir ao país da forma como os persas faziam: Iran. A palavra vem do antigo persa airya: arianos, povos que conquistaram ou colonizaram uma vasta região que incluía o Irã e o norte da Índia, por volta do 2º  milênio a.C. No sentido usado por historiadores, arianos são ancestrais dos (ou ao menos levaram sua língua aos) persas, curdos, pashtuns do Afeganistão e outros, e nada que ver com pintores austríacos.

3. EXISTIRAM NEONAZISTAS NO  IRÃ

A teoria racial nazista identificava os arianos com os indo-europeus em geral, que saíram do Cáucaso e chegaram também à Europa, dos quais os arianos eram só uma leva. Diziam que só nos países nórdicos os arianos se mantiveram “puros”, enquanto no próprio Cáucaso se misturaram e “degeneraram”, o que explica povos como armenos, georgianos e iranianos não serem loiros e de olhos azuis. Isso não tem a mínima base na realidade. Mas alguns persas de extrema direita aproveitaram a deixa: no século 20, houve no Irã um movimento neonazista, supremacista persa. A mais famosa organização neonazista do Irã foi o SUMKA, Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Iranianos, num plágio direto de Hitler, e usando uma versão modificada da suástica como símbolo.

4. PERSAS DOMINAVAM NA MONARQUIA

A monarquia Pahlavi, derrubada na Revolução Iraniana de 1979, era persa e tentava impor uma identidade persa ao país inteiro. Inclusive foi acusada de financiar o SUMKA. O monarca deposto em 1979, xá Reza Pahlavi, formalmente islâmico xiita, privilegiou a religião zoroastrista, a original do Império Persa, de antes da conquista islâmica do século 7. Livros didáticos lembravam as glórias de Xerxes e Dario como uma era de ouro. Enquanto os persas urbanos iam de sunga e biquíni à praia, e, à noite, dançavam nas discotecas – o que é visível em muitas fotos pré-revolução –, as populações do interior, de minorias étnicas, eram conservadoras e religiosas. Essa foi uma das tensões menos faladas que levou ao fim da monarquia e à instalação da teocracia, que busca trocar a identidade persa pela islâmica. Ainda hoje, muitos exilados do regime e descendentes preferem ser chamados de persas.

5. RADICAIS SUNITAS DESTROEM MONUMENTOS; RADICAIS XIITAS PREZAM POR ELES

O Irã é xiita e isso é crucial em seu papel geopolítico, influenciando principalmente xiitas iraquianos, sírios, libaneses. O Islã se dividiu em xiismo e o sunismo no século 7, numa briga pela sucessão de Maomé. Desde então, desenvolveram teologias diferentes. Historicamente, sunitas consideraram imagens e estátuas de humanos e animais uma forma de idolatria. Xiitas são bem mais tolerantes nesse quesito. A arte islâmica figurativa histórica, que inclui representações de Maomé é quase toda feita por xiitas. Iranianos desfilam com reproduções de pinturas em protestos religiosos. O wahhabismo, a interpretação radical sunita vinda da Arábia Saudita e oficial no país, inspira terroristas sunitas como os da Al Qaeda e o Estado Islâmico (Daesh). Nessa versão ultraconservadora do Islã, não só imagens, como monumentos históricos podem ser considerados idolatria. O que explica o vandalismo de terroristas sunitas na Síria e Afeganistão, mas também o menos falado do regime saudita. A monarquia saudita já botou abaixo múltiplas construções históricas islâmicas, como a tumba da esposa de Maomé, Kadijah, e o cemitério Al-Baqi, em Medina, que tinha várias tumbas de amigos e parentes de Maomé. Xiitas, radicais ou não, prezam por seus monumentos – e o Irã tem muitos. Isso dá um sentido mais grave à fala de Trump ameaçando destruí-los.

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Atrocidade química ou… cocô de abelha? O mistério da chuva amarela https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/29/atrocidade-quimica-ou-coco-de-abelha-o-misterio-da-chuva-amarela/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/29/atrocidade-quimica-ou-coco-de-abelha-o-misterio-da-chuva-amarela/#respond Fri, 29 Nov 2019 20:35:51 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/chuvaamarela-300x215.jpg http://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=43 A fuga dos americanos de Saigon em 30 de abril de 1975 foi má notícia para o povo Hmong do vizinho Laos. Enquanto corria a Guerra do Vietnã, seu país vivia a “Guerra Secreta”, como a batizou a CIA: o confronto entre a monarquia do rei Savang Vatthana e os comunistas do Pathet Laos, os primeiros apoiados pela CIA e pelos capitalistas do Vietnã do Sul, os segundos, pelos comunistas do Vietnã do Norte e os soviéticos. Os Hmong do Laos estavam do lado da monarquia e a resposta não tardou a chegar quando os comunistas do Vietnã viram suas mãos livres da guerra interna. A Guerra Civil do Laos seria vencida pelos comunistas antes do fim do ano. Vistos como vendidos aos americanos, os Hmong sofreram o que descreveriam como política de extermínio, com prisões, tortura e execuções mesmo entre civis apolíticos. 30% dos Hmong acabariam fugindo do Laos.

Os refugiados foram parar na Tailândia e alguns de lá foram para os EUA. Com eles, levaram suas histórias de guerra. Uma das quais saltou aos olhos do mundo mais que as outras: a chuva amarela.

PROJETO SECRETO?

Segundo sobreviventes, enquanto eles tentavam se refugiar na floresta, helicópteros e caças dos comunistas lançaram contra eles uma substância amarela e viscosa. As plantas morriam. E as pessoas tinham sangramentos, convulsões, até cegueira. Relatos parecidos começaram a aparecer também entre os refugiados do Camboja, invadido em 1979 pelo Vietnã comunista para depor o também comunista (e brutal) regime do Khmer Vermelho. (Para constar: o Khmer Vermelho era apoiado pelos EUA.)

Rapidamente, a chuva amarela virou um escândalo mundial: comunistas vietnamitas bancados pelos soviéticos estavam usando armas químicas, contrariando a Convenção de Genebra, da qual a União Soviética e, a partir de 1980, o Vietnã eram signatários.

Em 1981, o o Secretário de Estado dos EUA, Alexander Haig, levou a público a denúncia:”Encontramos agora evidências físicas do Sudeste Asiático, que foram analisadas e encontraram níveis anormais de micotoxinas – substâncias venenosas que não são nativas da região e são altamente tóxicas para o homem e para os animais”. Isto é, a URSS estava usando compostos de um fungo letal produzido em casa para envenenar seus opositores no Laos. Em 1982, um relatório do toxicologista C. G. Mirocha, da Universidade do Minnesota, confirmou os relatórios, encontrando micotoxinas nas roupas dos refugiados, com um misterioso pó amarelo.

Tanto os soviéticos quanto os vietnamitas e comunistas laotianos negaram veementemente. Entra em campo um jogador de peso: o geneticista e biólogo molecular Matthew Meselson, também um militante contra armas químicas, que havia estudado os efeitos do Agente Laranja no Vietnã. Ele teve acesso às regiões problemáticas e conduziu seu próprio estudo.

Sua conclusão: cocô de abelha. Era isso o que era a chuva amarela.

RESPOSTA NA NATUREZA

Meselson notou que as micotoxinas citadas na verdade eram comuns na região. Mais importante: todas as amostras apresentadas continham pólen. Ao olhar esse pólen no microscópio, notou que as plantas eram locais e as células estavam ocas –  algo que acontece quando passam pelo sistema digestivo de um inseto. Mais tarde, com a repercussão, foi apresentado um estudo chinês de 1976, que abordava camponeses falando em “chuva amarela”– as exatas mesmas palavras dos laotianos. Era um fenômeno idêntico, menos os helicópteros e caças. Uma substância amarela e oleosa caiu aparentemente do nada. Em suas conclusão, os biólogos chineses também apontaram para as abelhas. Um enxame voando rápido a 10 metros de altitude é muito difícil de enxergar contra o céu. Tanto na China quanto no Laos, as pessoas teriam levado a saraivada sem entender de onde vinha.

O governo dos EUA reagiu reconhecendo o pólen, mas dizendo que havia sido adicionado pelos soviéticos para disfarçar suas armas bioquímicas. Meselson contestou, dizendo que isso exigiria o transporte de toneladas de pólen sem detecção por milhares que quilômetros. Estudos posteriores confirmaram o pólen e não indicaram armas químicas. Um consenso na comunidade científica acabou se formando em favor de Meselson, o de que o episódio foi mesmo uma mistura de pavor de guerra com propaganda. As agências e militares dos EUA, porém, mantém até hoje que havia armas químicas, admitindo que não têm como provar.

Quanto aos refugiados Hmong, a maioria não se convenceu com a versão de Meselson. Em 2012, o jornalista Robert Krulwich entrevistou o sobrevivente Eng Yang e sua sobrinha, a escritora Kao Kalia Yang, para falarem da chuva amarela. Krulwich insistiu agressivamente na teoria da abelha, deixando Kao Kalia, segundo diria depois “à beira das lágrimas”. Acusado de racismo, insensibilidade e condescendência, o jornalista publicaria uma retratação.

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Eleições não fazem uma democracia: os muitos golpes da Ditadura https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/15/eleicoes-nao-fazem-uma-democracia-os-golpes-da-ditadura/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/15/eleicoes-nao-fazem-uma-democracia-os-golpes-da-ditadura/#respond Fri, 15 Nov 2019 22:23:31 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/vote-3676577_1280-300x215.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=280 presidente Jair Bolsonaro acaba de dizer que não existiu ditadura no Brasil. Em suas palavras: “você tinha direito de ir e vir, você tinha liberdade de expressão, você… votava”.

Liberdade de expressão num regime com censura prévia é negacionismo. Direito de ir e vir num país com os 5 mil exilados, a maioria sem condenação formal, é discutível. Se o regime não gostasse de você, era o direito de voltar para ser preso e torturado.

Mas eleições havia. Cinco delas: 1966, 1970, 1974, 1978 e 1982. Todas permitiram oposição. Entre as denúncias contra o regime militar, não está a mera fraude eleitoral massiva, como no Império e na República Velha. As urnas não mentiam. E mesmo Emílio Garrastazu Médici, indicado por uma junta militar (mais adiante), exigiu que o Congresso fosse reaberto para “elegê-lo”. O regime não terminou por revolução, mas pela eleição presidencial de uma chapa opositora, dentro de suas próprias regras.

E, ainda assim, foi ditadura. Do começo ao fim. Mesmo nos seus momentos mais “brandos”.

A NULIDADE DO VOTO

O Brasil nem de longe está sozinho em ter tido eleições sem democracia. Para instituições que absolutamente não podem ser acusadas de esquerdismo, como a Freedom House (ONG criada pela primeira-dama americana Eleanor Roosevelt) e o Projeto Polity IV (criado pela CIA), eleições formais dizem pouco. Ambos chamam o regime militar brasileiro de “ditadura militar” sem qualquer cerimônia. Inclusive o Polity IV a classifica como mais repressiva que URSS na época do AI-5 (fica para outro dia). 

Se você concluir que eleições bastam para definir uma democracia, então o Iraque de Saddam Hussein era uma democracia. Em 16 de outubro de 2002, ele foi confirmado num plebiscito no qual atingiu 100% dos votos. A União Soviética de Stalin realizou eleições em 1937 e 1950, permitindo independentes. Foi uma armadilha para pegar quem se levantasse para se candidatar, e também medir a força dos burocratas locais, punidos quando o PCUS não vencia em seu soviete.

Há um exemplo contemporâneo: a China tem um regime multipartidário. Oficialmente, o país se declara uma democracia. Das 2.980 cadeiras no Congresso Nacional do Povo, 2.119 são do Partido Comunista da China (71%). O resto se divide entre outros 8 partidos formalmente reconhecidos. E 470 independentes.

Mas ninguém compra essa “democracia”: os partidos formalmente reconhecem a primazia do Partido Comunista da China. Políticos problemáticos têm suas candidaturas cassadas.  

As eleições da ditadura não eram iguais às da China. A oposição não era aliada. Mas há uma semelhança: era um regime que consentia uma opção eleitoral que não podia mudar nada.

ROUBANDO NO PRÓPRIO JOGO

O regime começou por limar a oposição que o incomodava: foram 41 deputados cassados no AI-1, proclamado 8 dias depois do golpe, e 168 ao longo de regime. Entre os que perderam os direitos políticos estava gente como Juscelino Kubitschek, que de esquerdista não tinha nada, mas venceria facilmente qualquer general numa eleição limpa. 

O golpe de 1964 foi só o primeiro dos vários golpes da ditadura. Dá para listar ao menos mais seis:

  1. Em 1965, veio o AI-2, impedindo a eleição direta para presidente e dissolvendo todos os partidos, forçando-os a se reunir em dois: Arena, Aliança Renovadora Nacional, o partido da Ditadura; e MDB, Movimento Democrático Brasileiro, a oposição que não havia sido posta na ilegalidade.
  2. Em 7 de dezembro de 1966, veio o AI-4, obrigando esse Congresso mutilado e sob supervisão militar a fazer uma nova Constituição ao gosto do regime.
  3. Em 13 de dezembro de 1968, veio o famoso AI-5, que suspendeu as garantias dessa própria Constituição, fechando o Congresso, criando censura prévia e permitindo prisões sem acusação formal.
  4. Em 31 de agosto de 1969, seria a vez da junta militar. O ditador (como se chama um presidente ilegítimo de uma ditadura?) Costa e Silva teve um acidente vascular cerebral e, no lugar de assumir seu vice, o civil Pedro Aleixo, como previa a Constituição dos próprios militares, tomaram o poder os três ministros das Forças Armadas, criando uma junta militar que proibiu a expressão “junta militar”. Imporiam o general Emílio Garrastazu Médici como sucessor.
  5. e 6. A Lei Falcão e o Pacote de Abril.

Esses dois últimos seriam no período Geisel, o ditador que começou a “abertura gradual”.  Nas eleições de 1970, tempos do AI-5, da vitória na Copa, do milagre econômico e do “Ame-o ou Deixe-o”, a Arena havia feito 223 cadeiras contra 87 do MDB. Todos os senadores eleitos, exceto os da Guanabara (um vestígio do antigo Distrito Federal, unificada com o Rio em 1975) eram da Arena. Na eleição seguinte, um susto: em 1974, os brasileiros de 16 dos 22 estados decidiram por candidatos da oposição no Senado – só não obtiveram maioria porque os mandatos são de 8 anos e o Senado, como ainda hoje, renovava alternadamente um terço e dois terços de suas cadeiras a cada eleição. Nas eleições de 1974, foi só um terço. No Congresso, a situação foi menos dramática: 203 versus 161. Ainda assim um avanço ameaçador.

Os militares entraram em pânico. E vieram os dois “golpinhos” já citados: a Lei Falcão é de 1/6/1976 e o Pacote de Abril, de 13/4/1977. 

Os militares mudaram as regras do jogo para a próxima partida. Pela Lei Falcão, candidatos foram basicamente proibidos de falar na TV. A lei limitava a propaganda eleitoral a uma foto do candidato com número – até mesmo jingles com letra eram proibidos. Supostamente feita para equalizar as chances entre candidatos ricos e pobres; na prática, foi um jeito de calar qualquer discussão política. O Pacote de Abril foi mais explícito: garantiu ao presidente apontar um terço do senado – os retrofuturisticamente apelidados “senadores biônicos”.

Em A Ditadura Encurralada, Elio Gaspari relata traz o relato de um político da Arena com o Geisel: “disse que o general lhes pedira que se mobilizassem para a campanha eleitoral, pois queria ‘vencer e aumentar o percentual democrático, evitando a possibilidade de uma ditadura’. Tradução: se o governo perdesse, corria-se o risco de uma virada de mesa. Corolário: para quem quiser virar a mesa, será melhor perder a eleição do que ganhá-la”.

Isto é, os próprios militares diziam que, se não dessem um golpe brando, dariam um golpe duro. Enfim, era um regime que fazia um jogo eleitoral no qual não podia perder. Como a China. Como a União Soviética. Como Cuba.

SEM UM ESTRONDO, COM UM GRUNHIDO

Nas eleições de 1978, o Senado, contando biônicos e mandatos começados em 1974, terminou com 42 para a Arena e 25 para o MDB. No Congresso, o avanço do MDB não foi totalmente contido pela Lei Falcão: 189 do MDB versus 231 da Arena. 

Sob o sucessor de Geisel, João Figueiredo, a “abertura gradual” levou à Lei de Anistia em 1979, e o fim do bipartidarismo em 1980. Em 1982, o governo militar aceitou se expor a eleições mais ou menos competitivas. O agora Partido Democrático Social, como não sem certa ironia decidiu se rebatizar a Arena, ganhou 49% dos assentos (234 de 479), com o resto dividido entre as novas legendas. 

A ditadura teria eleito seu último candidato não fosse uma traição. Dois anos depois, a imensa pressão do movimento Diretas Já, além de desavenças internas com a indicação de Paulo Maluf (último candidato do regime que prometeu limpar o Brasil) e uma proposta para estender o mandato do general Figueiredo (isto é, mais um golpe ainda), levou a um racha no partido do regime, formando o Partido da Frente Liberal (hoje Democratas).

A criação do PFL, tomando votos do PDS, e algumas abstenções do próprio PDS, levariam à eleição da chapa Tancredo Neves/José Sarney em 15 de janeiro de 1985, com 480 votos (72,4%), contra 180 (27,3%).

E, desta vez, sem apoio das classes civis que os alçaram ao poder, e não sem novas ameaças de golpe da linha dura, os militares aceitaram seu destino. Como último gesto, Figueiredo recusou-se a passar a faixa a Sarney. Famosamente declarou: “Que o doutor Tancredo dê ao povo o que eu não consegui. E que me esqueçam”.

E saiu pelos fundos do Palácio do Planalto.

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Corda bamba a 410 metros: há 45 anos, artista invadia o WTC e dava um espetáculo entre as torres gêmeas https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/07/wtc-corda-bamba-philippe-petit/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/07/wtc-corda-bamba-philippe-petit/#respond Wed, 07 Aug 2019 08:00:15 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/maxresdefault-1-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=134 Aos seus 18 anos, o francês Philippe Petit sentiu algo que mudaria sua vida. Dor de dente. Sentado na sala de espera do dentista, pegou uma revista e leu uma matéria ilustrada sobre a construção do World Trade Center, em Nova York, conjunto que finalmente superaria o recorde de altura do Empire States, de 1931, como o então maior prédio do mundo. Prédios, aliás: não seriam uma, mas duas torres. E nisso estava uma oportunidade.

Petit é filho de um aviador e escritor, nascido na pequena Nemours, vila a 83 km de Paris, famosa por seu castelo medieval. Ainda criança, se interessou por artes circenses e começou a aprender sozinho. Aos 16 anos, depois de aprender mágica e malabarismo, passou a estudar a corda bamba. Segundo ele mesmo, em um ano havia aprendido tudo – mortal para frente e para trás, subir com bicicleta e monociclo, se equilibrar numa cadeira na corda. E ficou entendiado. “[Pensei:]’O que tem de mais nisso? Parece quase feio'”, falaria depois à revista The New Yorker. “Então passei a descartar esses truques e reinventar minha arte.”

O artista seria apresentado ao mundo em 1971, quando, sem autorização, suspendeu um cabo entre as duas torres da Catedral de Notre Dame, a 68 m do solo, e fez um espetáculo com malabares ao público parisiense. Em 1973, repetiria a façanha entre os pilares da Ponte da Baía de Sydney (Austrália).

Era tudo só um ensaio para o que chamaria de Le Coup (“o golpe”): desde 1968, lia tudo o que podia sobre as torres gêmeas enquanto a construção ia sendo erguida, dominando a skyline de Nova York. Chegou a contratar um helicóptero para tirar fotos de sua cobertura. Por meses, ele e seus parceiros passaram a estudar o lugar se passando por funcionários da obra, com identidades falsas e uniformes cuidadosamente recriados – apesar da inauguração oficial do WTC em abril de 1973, ainda havia obras em progresso no topo. O dinheiro para a empreita vinha do famoso malabarista Francis Brunn, do Ringling Brothers Circus, que havia se apresentado duas vezes ao presidente dos EUA.

Na noite do dia 6 de agosto de 1974, terça-feira, a equipe de Petit teve a sorte de conseguir pegar um elevador de serviço e no lugar de levar o equipamento por 110 andares de escadas, dividindo-se entre as duas torres. Com arco e flecha, passaram um cabo-guia para os parceiros na outra torre e, com ele, puxaram o cabo principal de aço, de 204 kg, além de diversos cabos secundários de estabilização.

E, assim, às 7h da manhã do dia 7, o artista pegou sua vara de equilibrista construída só para a ocasião, com 8 metros e pesando 25 kg e se lançou no vazio entre as torres. Quem levantasse a cabeça 410 metros abaixo, contra o o céu cinzento daquela manhã nublada, podia ver o homenzinho caminhando, se ajoelhando na corda, fazendo truques. Logo uma multidão se juntou olhando para cima, aplaudindo, gritando de medo e excitação – e, lá de cima, segundo relatou, ele pôde ouvir. Quando a polícia chegou, se postou nas duas pontas da corda, em cada torre – Naturalmente, subir na corda não era uma opção. Petit fez graça, indo até a ponta, como se fosse desistir, e voltando ao meio. Depois de 45 minutos, 8 travessias completas, a chuva começou a cair. E, enfim, o artista deu seu espetáculo por encerrado, se entregando aos policiais. No solo, afirmou aos jornalistas: “Se eu vejo três laranjas, faço malabares. Se vejo duas torres, eu ando”.

Sua passagem pela polícia seria breve. Philippe Petit havia se tornado uma celebridade mundial instantânea. O procurador do distrito propôs cancelar as acusações por invasão de propriedade e risco à segurança pública em troca de uma apresentação para as crianças no Central Park. E assim seria feito, um passeio bem mais modesto e seguro sobre a Turtle Pond, uma lagoinha do parque, perto do Belvedere Castle. O artista acabaria por se mudar para Nova York, onde vive até hoje.

Seria um bom negócio para o WTC. As solene e cinzenta arquitetura das torres gêmeas não agradava ao público, e ainda havia muitas unidades encalhadas. Depois disso, as torres foram aceitas como cartão-postal de Nova York, e permaneceriam assim até seu trágico fim, em 11 de setembro de 2001.

Quanto a Petit, nunca superaria a façanha de seus 25 anos, mas, prestes a fazer 70, continua na ativa. Segundo matéria do site France 24, ele está negociando repetir o passeio das torres de Notre-Dame, como parte do esforço de reconstrução depois do incêndio deste ano. “Acho que estou mais em posse de meu talento como equilibrista de corda bamba hoje aos 70 de que quando era um rapazinho”, afirma. “Não tenho mais nada a provar.”

A aventura de Petit rendeu dois filmes: o documentário O Equilibrista, de 2008, e a dramatização biográfica A Travessia, de 2015.

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Quando os filmes fotográficos eram racistas https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/07/14/quando-os-filmes-fotograficos-eram-racistas/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/07/14/quando-os-filmes-fotograficos-eram-racistas/#respond Sun, 14 Jul 2019 05:00:50 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/07/img_4371-150x150.jpg http://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=18 Entre 1977 e 1978, o cineasta francês Jean-Luc Godard, um dos pais da nouvelle vague, foi convidado pelo governo marxista de Samora Machel a trabalhar no Moçambique. Sua missão era ajudar na comunicação visual do novo regime, principalmente televisão. Como parte de seu trabalho, tinha que filmar curtas.

Não deu em nada. O cineasta recusou-se a usar o filme que estava disponível. Disse que era “racista”.

Godard havia notado que, ao filmar ou fotografar pessoas negras com filmes coloridos Kodak, a pele surgia escurecida ao ponto de mal dar para identificar os traços da expressão, enquanto os dentes e o branco dos olhos saltavam à vista, por contraste. Era como se o filme estivesse enxergando-as como um estereótipo do vaudeville americano, de blackface.

Foto colorida no Zambia, 1974
Foto colorida tirada no Zâmbia, 1974 (Foto: Walt Jabsco/Flickr/CC)

O problema era mais notável nos filmes da americana Kodak que nos da japonesa Fuji, com quem formava um duopólio, e tinha uma tecnologia de cores diferente.

Mas, afinal, estariam os fabricantes pregando uma peça racista? Fotografia colorida não é um processo simples. É preciso reconstruir uma imagem com todas as cores da natureza em apenas três delas: ciano, magenta, amarelo. Qualquer desequilíbrio na proporção pode levar a tons alienígenas: gente verde, púrpura, amarela. Assim, as indústrias tinham que calibrar seus próprios filmes para algo que favorecesse o (que viam como seu) consumidor – e, dentro disso, ser fiel ao seu tom de pele, retratar bem a pessoa, era mais importante que as demais cores. Para acertar essas cores na revelação, proviam aos estúdios cartões de referência – as “Shirleys”, que permitiam comparar a pele como na revelação com o que era “normal”. Literalmente podia estar escrito “normal”. E basta ver uma Shirley para entender o problema:

Imagem de uma Shirley Card da Kodak 1974
Shirley Card da Kodak de 1974 (Foto: Kodak/Reprodução/via Hermann Zschiegner)

O nome vem de Shirley Page, a primeira modelo nesses cartões, e continuou até pararem de ser produzidos. Invariavelmente, as Shirleys eram da cor que que os lápis de cor e os band-aids chamavam de “tom de pele”. E, calibradas para esse tom, os filmes podiam passar longe quando não estavam lidando com o “normal”.

Ainda nos anos 1970, os filmes da Kodak começam a melhorar. Se você olhar as fotos de pessoas negras, elas progressivamente vão se tornando mais fiéis. A pesquisadora de comunicação Lorna Roth, da Université Concordia, Montreal (Canadá), descobriu o porquê: os executivos da empresa receberam reclamações de agências de publicidade. Os filmes estavam causando problemas para retratar… chocolate e móveis.

A Kodak eventualmente lançaria uma Shirley multirracial em 1995, com uma mulher branca, uma negra e uma leste-asiática. Já era quase sem efeito: as câmeras digitais começavam a tomar o espaço dos velhos filmes físicos, e elas podem calibrar a cor antes da captura e oferecer correção digital depois.

Shirley Card Multiracial da Kodak 1994
Shirley Card multiracial da Kodak, 1994 (Kodak/Reprodução)

Mas o problema renasceu. No século 21, a tecnologia do reconhecimento facial falha em entender que nem todo mundo é branco. Em 2015, o Google teve que pedir desculpas por seu sistema de identificação de fotos ter chamado um grupo de jovens negras sorrindo de “gorilas”. Mesmo após denúncias, o problema persiste. Ano passado, um estudo da pesquisadora Joy Buolamwini, do Laboratório de Mídia do MIT mostrou que aplicativos de reconhecimento facial funcionam 99% em casos de homens brancos. E 35% em mulheres negras mais escuras –quanto mais escura a pele, maior a taxa de erro.

Isto é, assim como os filmes, estamos treinando computadores para entender o “normal” e ignorar o “anormal”. E isso é um problema sério quando programas de reconhecimento facial estão se tornando acessórios da polícia.

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