Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Corrupção nazista: como Hitler comprou os generais https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/25/corrupcao-nazista-como-hitler-comprou-os-generais/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/25/corrupcao-nazista-como-hitler-comprou-os-generais/#respond Thu, 25 Jun 2020 14:39:25 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/konto.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=537 A falta de transparência das ditaduras anda de mãos dadas com a corrupção. Para se manter no poder, Hitler corrompeu oficiais graduados das forças armadas.

Aparentemente, nazistas e militares eram um casamento perfeito. Ambos queriam uma vingança contra a humilhação do Tratado de Versalhes, que desarmou a Alemanha após a Primeira Guerra. Com isso, acertar as contas com a inimiga dessa guerra, a França, e expandir o domínio da Alemanha pela Europa e pelo mundo. Ambos queriam uma ditadura militarista. E antissemitismo, se não exatamente um valor central à vida militar alemã, certamente não era impedimento.

Mas as forças armadas alemãs eram conhecidas por ser “um Estado dentro do Estado”. Ninguém menos que Otto von Bismarck, o chanceler considerado fundador da Alemanha Unificada, foi proibido de atender a reuniões do Supremo Conselho de guerra, por ser considerado civil. Os dois últimos anos da Primeira Guerra foram basicamente uma ditadura militar, num golpe silencioso por conta da incompetência que os militares viam no imperador Guilherme II e seu chanceler, Theobald von Bethmann-Hollweg. Era o “duumvirato” do marechal Hindenburg e ggeneral Ludendorff. Hinderbug acabaria por ser o homem a dar o cargo de chanceler a Hitler, em 30 de janeiro de 1933, selando o destino da Alemanha.

Mas, ao final do dia, Hitler continuava a ser um mero cabo plebeu, quando os oficiais graduados vinham da nobreza alemã – classe extinta com o fim da monarquia, mas obviamente na memória de seus membros. Diante de suas atrocidades – em vários casos, mais pelo desperdício de recursos que questão humana – e de sua condução desastrada e intempestiva da guerra, Hitler não pôde contar com a fidelidade incondicional de todos os militares. Antes mesmo de começar a guerra, já havia uma conspiração marcada para dar um golpe militar, a Conspiração Oster, liderada pelo general Hans Oster, que pretendia mater Hitler e restaurar o imperador Guilherme II para impedir que a Alemanha causasse outra guerra mundial. Estava para começar após a invasão da Checoslováquia, que podia precipitar a guerra – e fracassou porque o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain, deixou de graça, com Hitler ganhando as notícias como “exímio estadista”.

ENTRA O SUBORNO

Antes da guerra, e mais ainda durante, Hitler passou a molhar a mão dos oficiais com presentinhos como propriedades, carros, vultosos cheques e a liberação de impostos. Havia um fundo secreto para isso, chamado Konto 5 (“Conta 5”), que começou em 150 mil reichsmarks (RM) em 1933 (US$ 901.815,32 em dinheiro de hoje), e terminou em RM 40 milhões em 1945.  Oficiais ganhavam de RM 2 mil a RM 4 mil “por fora”, mais RM 250 mil no aniversário, para um salário de RM 24 mil de um general.

Hitler fazia questão de deixar claro que aquilo não era uma coisa oficial, mas um presente pessoal dele, mais ou menos ilegal, e que podia ser tirada a qualquer instante. Era uma forma de tornar a pessoa cúmplice num acordo desonroso, e dever fidelidade direto ao Fuhrer, não ao Estado. E funcionava: em julho de 1942, quando o marechal de campo Fedor von Bock, comandante de grupos importantes de exército nas invasões da Polônia, França e URSS, foi sacado de sua posição, a primeira coisa que perguntou é se continuaria a receber os cheques. Ao final, Hitler conseguiu prosseguir em sua campanha militar cada dia mais suicida. A tentativa de assassinato que sofreu em 20 de junho de 1942 partiu de uma minoria, e a razão maior era justamente que o país estava perdendo a guerra. Nenhum oficial ativo importante estava envolvido – Erwin Rommel, que seria eventualmente forçado a se suicidar em outubro de 1944, até onde se levantou, sabia do plano e fez vistas grossas, mas sua participação ficou no “apoio moral”.

Militares alemães, como os do resto do mundo, gostavam de se apresentar como uma reserva moral da nação. Mas, com uma generosa dose de suborno, foram dobrados a participar das atrocidades (e participaram, principalmente durante a invasão da URSS) e levar seu país à ruína. As forças armadas alemãs limpinhas, sem envolvimento nos crimes nazistas, é um mito do pós-guerra, de quando oficiais veteranos foram re-recrutados para as Bundeswehr, forças da Alemanha democrática,  em 1955, e os EUA olharam para o outro lado porque os ex (ou “ex”) nazistas eram adversários dos soviéticos.

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São Valentim: por que, no resto do mundo, hoje é Dia dos Namorados https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/02/14/sao-valentim-dia-namorados/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/02/14/sao-valentim-dia-namorados/#respond Fri, 14 Feb 2020 21:44:16 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/valentino-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=380 Talvez você tenha visto num site do exterior, talvez alguma promoção por aqui: hoje, não 12 de junho, é o Dia dos Namorados do resto do mundo. Ou melhor: não é Dia dos Namorados; é dia de São Valentim. Dia celebrado não só nos States, mas em Cuba, Colômbia, Argentina, Portugal e Angola, para ficar em exemplos mais próximos.

São Valentim, enquanto santo, é um caso complicado. São na verdade dois santos em 14 de fevereiro: São Valentino de Roma, morto em 269, e São Valentino de Terni, em 273. Ambos são mártires cristãos da perseguição romana e, apesar de muitas lendas criadas posteriormente, depois da associação da data com namorados, não tem realmente nada que ver. A Igreja Católica tirou suas celebrações do calendário oficial em 1969, deixando-a para congregações locais. A justificativa é que não sabe nada realmente consistente sobre o(s) santo(s), exceto a data de sua morte.

A associação do misterioso santo que são dois surgiu com o (ou ao menos foi registrada pela primeira vez pelo) trovador medieval inglês Geoffrey Chaucer. Seu poema Parlamento das Aves (1382), incluiu os versos: “Pois assim foi no Dia de São Valentim/Quando toda ave ali vai escolher seu par” (capenga tradução minha).

Chaucer queria dizer o Dia de São Valentim marcava uma época romântica do ano, porque é quando as aves cantam e se reproduzem, e relacionou isso a casais humanos, num exemplo do ideal do amor cortês da literatura medieval. Mas isso não tem nada a ver com o santo, mas a época do ano. As explicações baseadas na vida do santo (da qual nada se sabe), ou um antigo feriado romano, são mitos criados depois dessa associação.

São Valentim virou o dia dos namorados nos países anglo-saxônicos, que herdaram a cultura de Chaucer, e só começou a estourar mesmo no século 19, quando surgiu a indústria de cartões de São Valentim, que movem o feriado nos EUA e Inglaterra até hoje. Os outros países pegaram por contágio cultural, como o Halloween – e o Brasil também pegou, mas é uma história curiosa.

O São Valentim foi importado pelo publicitário João Doria (João Agripino da Costa Doria Neto), pai do atual governador de São Paulo, João Doria Jr. Em 1949, ele recebeu uma encomenda da Exposição Clipper, uma loja de roupas no centro de São Paulo, para agitar as vendas na metade do ano, período até então meio morto nas vendas. Foi assim que o publicitário lançou a campanha para criar o São Valentim brasileiro.

Anúncio original do Dia dos Namorados
Anúncio original do Dia dos Namorados, 1949 (Reprodução)

Escolheu 12 de junho, um dia antes do dia de Santo Antônio, tido por casamenteiro, mas não o dia do santo em si, que é uma nada romântica festa junina. Sem cartões, mas presentes em geral. Apesar de a campanha dizer que “no mundo inteiro as criaturas se amam “, estamos sozinhos nessa: 12 de junho só tem a ver com namorados por aqui.

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Núcleo Demônio: como a terceira bomba atômica do Japão matou sem nunca explodir https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/21/nucleo-demonio-como-a-terceira-bomba-atomica-do-japao-matou-sem-nunca-explodir/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/21/nucleo-demonio-como-a-terceira-bomba-atomica-do-japao-matou-sem-nunca-explodir/#respond Wed, 21 Aug 2019 18:57:59 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/Wellerstein-TheDemonCore1-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=194 Quando Fat Man explodiu sobre Nagasaki, em 9 de agosto de 1945, não havia nenhuma garantia de que o Japão se renderia. De fato, a expectativa era lançar até uma dúzia de bombas, a próxima muito provavelmente destinada a Tóquio, dia 19, as outras em setembro ou outubro. O núcleo da bomba do dia 19, que nunca ganharia nome, era composto por duas semi-esferas e um anel de plutônio, diferente do núcleo da Fat Man nesse último detalhe. Estava pronto para ser instalado no resto da bomba quando veio a notícia, dia 15, da rendição japonesa. Mas essa peça de destruição em massa, frustrada sua função inicial, ainda teria um destino, que renderia a ela, um nome bem mais adequado que o “Menininho” e o “Homem Gordo” das bombas que caíram: Núcleo Demônio.

Com o fim da guerra, o núcleo foi redestinado a mais pesquisas no Laboratório de Los Alamos, o principal centro do Projeto Manhattan. Havia muito ainda a ser descoberto sobre energia nuclear, inclusive seu possível uso civil. E foi assim que, em 21 de agosto de 1945, menos de uma semana após o fim da guerra, o cientista Harry Daghlian estava testando colocar blocos de carbeto de tungstênio em volta dela. O composto é capaz de refletir nêutrons emitidos pelo núcleo, e, ao atingi-lo pela reflexão, mantém uma reação nuclear. A ideia era saber como fazer obter uma reação com menos material radioativo, por meio dessa reflexão.

Demon Core teste Daghlian
Recriação do teste de Daghlian (Foto: Governo dos EUA/Domínio Público)

Daghilian foi adicionando bloco a bloco até o último, quando o medidor revelou que isso poderia levar o núcleo a um estado supercrítico, uma reação nuclear autossustentada – morte certa para ele. E, de puxar o tijolo na pressa, esse escorregou da sua mão, caindo direto no núcleo, que entrou em estado crítico imediato. O cientista então tentou tirar o tijolo, sem sucesso, e teve que desmontar toda a pilha. Em meio a isso, recebeu uma dose de 5,1 Sievert (Sv) de radiação – 45 vezes o nível médio recebido pelos liquidadores de Chernobyl, 0.12 sV. Com as mãos queimadas, por 25 dias, ele agonizaria de síndrome de radiação aguda, que basicamente faz uma pessoa se decompor em vida (como visto na série da HBO).

Mão de Harry Daghlian
Mão de Harry Daghlian, queimada por radiação (Foto: Governo dos EUA/Domínio Público)

A CAUDA DO DRAGÃO

Exatos 9 meses depois, 21 de maio de 1946, outro cientista, Louis Slotin, fazia um teste semelhante com o Núcleo Demônio. Desta vez, o que refletia os nêutrons eram duas semi-esferas de berílio em volta do núcleo. A reação supercrítica começaria se elas fossem fechadas.

Se Daghilian era cuidadoso – e errou ao ser cuidadoso –, Slotin era um famoso bravateiro, andando em jeans de cowboy, quando isso era visto como coisa de cowboy.  Fazia seus experimentos, contrário a qualquer procedimento de segurança, com uma chave de fenda. A chave, manuseada em sua mão esquerda, era tudo o que impedia as esferas refletoras de se fecharem. Já havia feito a brincadeira diante de várias plateias de cientistas, desafiando seu medo. Isso havia levado a Enrico Fermi, um dos principais cientistas do Projeto Manhattan, a prever que estaria morto em um ano. O que ele fazia era, lembrando a frase do outro cabeça do projeto, Richard Feynman, “fazer cócegas no rabo de um dragão dormindo”.

Demon Core Teste Slotin
Recriação do teste fatal de Slotin (Foto: Governo dos EUA/Domínio Público)

É previsível como termina: o dragão acordou quando a chave escorregou para fora do espaço entre as semi-esferas refletoras. Ao se tocarem, um clarão azul visível foi provocado. Como Daghlian, Slotin teve o senso de parar a reação, enfiando de volta a chave de fenda e jogando a parte de cima do refletor para o chão. Havia recebido uma dose de 21 Sv. Agonizaria por nove dias.

Fora os dois cientistas imediatamente responsáveis, o núcleo pode ter matado mais três pessoas, mas é difícil averiguar. Robert J. Hemmerly, o soldado que fazia a guarda para Daghilian, e a única testemunha do primeiro experimento, morreria de leucemia em 1978. Das sete testemunhas do segundo experimento, o físico Marion Edward Cieslicki morreria também de leucemia, em 1965, e o fotógrafo David Smith Young, de anemia aplástica, que pode ser relacionada a exposição a radiação, em 1975.

O Núcleo Demônio estava destinado a explodir na Operação Crossroads, o famoso teste do Atol de Bikini. Mas, dada sua mais que comprovada insegurança, foi derretido para ser usado em outras armas nucleares. Se acabou explodido num teste ou ainda está por aí, reciclado ou perdido num depósito de material nuclear tirado de bombas obsoletas desativadas, ninguém sabe.

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Quem inventou que nazismo é de esquerda? Não foi brasileiro https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/17/quem-inventou-que-nazismo-e-de-esquerda-nao-foi-brasileiro/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/17/quem-inventou-que-nazismo-e-de-esquerda-nao-foi-brasileiro/#respond Sat, 17 Aug 2019 17:03:27 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/adorfo-300x215.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=178 Não, não é jabuticaba. Direitistas brasileiros não estão sozinhos em dizer que nazismo é de esquerda. A tese está em best-sellers da direita conspiratória internacional, como Liberal Fascism (2009), do comentarista político Jonah Goldberg, ou mais recentemente The Big Lie: Exposing the Nazi Roots of the American Left (2017), de Dinesh d’Sousa. 

E eu posso atestar de memória: topei com isso pela primeira vez nos idos de dois mil e celular clamshell. Bastava saber inglês. A evidência mais antiga, até onde pude averiguar, vem de 15 de janeiro de 1997. É o artigo Myth: Hitler was a Leftist (“Mito: Hitler era um Esquerdista) pelo jornalista ainda na ativa Steve Kangas. Ele demonstra que, 22 anos atrás, na era de Clinton, FHC e Spice Girls, chamar Hitler de esquerdista já era um esporte popular:

“Essa associação [entre Hitler e a direita] sempre foi algo vexaminoso para a ultradireita. Para escapar da crítica, os conservadores recentemente lançaram um contra-ataque, afirmando que Hitler era um socialista, portanto pertence à esquerda política, não direita.

Um exemplo prestigioso que chegou à grande mídia na mesma época: em 1998, o falecido linguista britânico George G. Watson (1927-2013), da Universidade de Cambridge, anuncia através do jornal britânico The Independent seu livro The Lost Literature of Socialism (“A Literatura Perdida do Socialismo”). Sua tese é que certas declarações de Hitler sobre Marx provam que ele era praticamente do PCO. Um trecho:

“Herman Rauschning, por exemplo, um nazista de Danzig que conheceu Hitler antes e depois de sua ascensão ao poder em 1933, afirma como Hitler reconhecia seu profundo débito com a tradição marxista. ‘Eu aprendi muito com Marx’, uma vez ele disse, ‘como não hesito em admitir’”. 

(“Aprender com Marx”, se o testemunho em segunda mão é confiável, não significa ser marxista. Mas explicar por que Hitler não era de esquerda não é o propósito desta matéria – há vasto material sobre isso.)

ESQUERDA É UM SACO

Não se sabe quem foi o primeiro a colocar com todas as letras que “Hitler era um esquerdista”, mas há uma vasta literatura afirmando que ele e Stalin – e Mao, Fidel etc. –, ditadores de ideologias opostas, eram ainda assim farinha do mesmo saco. Um saco chamado “coletivismo”.

“Fascismo, nazismo, comunismo e socialismo são só variações superficiais do mesmo tema monstruoso – coletivismo”.

Frase da escritora e filósofa Ayn Rand, refugiada soviética nos EUA que se tornaria uma das grandes inspirações da direita atual, em uma carta de 1944.

Outra figura imensamente influente, o economista Friedrich Hayek (1899-1992), ele mesmo um exilado do nazismo, se tornou famoso mundialmente por O Caminho da Servidão (1944). No capítulo “As Raízes Socialistas do Nazismo”, afirma:

“Não foram apenas a derrota, o sofrimento e a onda de nacionalismo que as conduziram ao sucesso. Tampouco, como muitos querem acreditar, foi o seu êxito ocasionado por uma reação do capitalismo contra o avanço do socialismo. Ao contrário, o apoio a essas ideias veio precisamente do lado socialista. Não foi, por certo, a burguesia, mas antes a ausência de uma burguesia forte, que favoreceu sua escalada ao poder.”

(Hayek separava totalitarismo de autoritarismo e achava que uma ditadura autenticamente capitalista podia ser boa, até melhor que uma democracia que distribui renda. Com essa justificativa, apoiou o regime Pinochet, que considerava autoritário, mas não totalitário. Isso fica para outro dia.)

FERRADURAS 

Esses são só dois exemplos influentes. Outros favoritos do libertarianismo, como Ludwig von Mises e Murray Rothbard, aderem totalmente à teoria da farinha do mesmo saco. Chama-se Teoria da Ferradura a ideia de que esquerda e direita, nos seus extremos, acabam se tornando próximas, ao ponto de serem indistinguíveis. É um discurso extremamente popular no Brasil de hoje entre os ditos “isentões”. Se Hitler e Stalin eram basicamente o mesmo e Stalin era de esquerda, conclui-se, logicamente, que Hitler era de esquerda.

Mas isso não é aceito por historiadores. São redefinições revisionistas, que ignoram a origem intelectual dos termos “esquerda” e “direita”. Em sua origem, na Revolução Francesa, a direita defendia a manutenção da autoridade absolutista e privilégios de classes sociais e a esquerda, a abolição de ambos – isto é, liberdade e igualdade política. 

E isso pode se ver no propósito final de regimes de força que são comparados. Nazistas queriam estabelecer a hierarquia “natural” das raças no mundo e purificar a “raça ariana”, executando pessoas com doenças genéticas e “raças inferiores”. Comunistas queriam e querem acabar com classes sociais e chegar a a uma situação sem Estado ou opressão, o comunismo em si (não passaram nem perto, mas isso é outra história). A ditadura e o “coletivismo” (termo problemático, porque ignora a noção de liberdade individual da esquerda) eram meios, não o fim. Dizer que as duas coisas são idênticas é como falar que nazistas e aliados eram indistinguíveis, pois ambos davam tiros e jogavam bombas de aviões. 

“Existe uma ressonância fundamental, ideológica, entre extrema esquerda e direita?”, pergunta o cientista político Simon Shoat, da Kingston University, em seu artigo Horseshoe Theory is Nonsense (“A Teoria da Ferradura é Nonsense”). “Somente no vago sentido que ambas contestam o status quo. Mas fazem isso por razões muito diferentes e com propósitos muito diferentes. Quanto fascistas rejeitam o individualismo liberal, é em nome de uma visão de unidade nacional e pureza étnica baseada num passado romantizado; quando comunistas e socialistas o fazem, é em nome da solidariedade internacional e redistribuição de riquezas.”

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‘Corredor da Morte’ da Alemanha deu origem a uma imensa reserva ambiental involuntária https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/16/cinturao-verde-alemanha/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/16/cinturao-verde-alemanha/#respond Fri, 16 Aug 2019 20:28:35 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/CinturaoVerdeAlemanha2-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=164 É uma memória distante mesmo para quem viveu, mas, entre derrota nazista, em 1945, e a reunificação, em 1990, existiram duas Alemanhas. Conforme combinado entre Stalin e os aliados ocidentais, o país foi divido em 4 zonas de influência: soviética, americana, francesa e britânica, ocupadas pelo respectivo exército. A área soviética se tornou a República Democrática da Alemanha, mais conhecida por Alemanha Oriental, regime marxista de partido único. As outras três, a República Federal da Alemanha, ou Ocidental, a democracia liberal capitalista.

Entre essas duas, havia a Fronteira Interna Alemã – informalmente, Corredor da Morte, um cordão de isolamento formado por cercas eletrificadas e com alarmes, muros, torres de vigilância, campos minados, armadilhas para carros e pessoas. Ela surgiu 16 anos antes do Muro de Berlim, de 1961 – esse isolava a parte capitalista da antiga capital, também decidida na divisão, que se tornou um enclave na Alemanha comunista.

Cinturão Verde da Alemanha
Em verde, a Fronteira Interna das Alemanhas (Wikimedia Commons)

Por quatro décadas, qualquer ser humano que ousasse se aproximar da Fronteira Interna tinha grandes chances de nunca mais sair de lá. O isolamento era uma faixa de 500 m até 1 km do lado oriental, e, por segurança, não lei, ao menos 100 metros na ocidental. Isso que fez de uma linha de 1.400 km entre as duas Alemanhas um território livre de humanos. E, com isso, “a natureza essencialmente ganhou um feriado de 40 anos”, como definiu o ambientalista Kai Frobel à rede de TV alemã Deutsche Welle.

Cinturão Verde da Alemanha
Remanescente da cerca que dividia as Alemanhas, no Cinturão Verde (foto: Jurgen Skaa/Flickr/CC)

Frobel é considerado o pai do Cinturão Verde, um projeto de preservação da ONG Bund für Umwelt und Naturschutz Deutschland (“Federação Alemã pelo Ambiente e Conservação da Natureza”). Desde sua fundação, em 1975, a Bund, como é chamada pelos alemães, passou a observar, a uma distância segura, de binóculos, como a natureza reagia à ausência humana na fronteira entre os dois mundos.

Reagia bem. No Cinturão Verde, mais de 1.200 espécies consideradas em risco encontram moradia em seus 109 habitats diferentes.

O cinturão não é um parque contínuo. Existem múltiplas áreas preservadas ao longo da antiga fronteira, mas 200 km dos 1.400 km totais são interrompidos por fazendas, estradas e outras obras. O projeto, que conta com a colaboração do governo alemão, é ir ligando essas áreas comprando terras e conseguindo acordos com governos locais. E existe um plano, ainda bem mais ambicioso, de criar o Cinturão Verde Europeu, ocupando toda a fronteira da antiga Cortina de Ferro, uma linha de 12.500 km passando por 24 países.

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Quantos Stalin matou? https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/07/22/quanto-stalin-matou/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/07/22/quanto-stalin-matou/#respond Mon, 22 Jul 2019 22:15:37 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/07/stalin-300x215.png http://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=62 Livros ainda serão escritos sobre como o número de pessoas mortas por um premiê soviético se tornou tema de disputa política no Brasil. Se você perguntar à internet brasileira, a resposta varia entre “pouco” e “100 milhões” ou mais.

Mas este é um caso peculiar em que, se a mesma pergunta for feita a historiadores profissionais, a resposta será quase tão discrepante quanto. Os neostalinistas (raros no Ocidente, em ascensão na Rússia) vão falar em menos de 100 mil, e relativizar mesmo esses números. Do outro lado, já se falou em até 110 milhões – pelo escritor e historiador dissidente Alexander Soljenítsin, em 1975, logo após ser expulso da União Soviética.

Um número assim não é levado mais a sério hoje em dia. Mas foi bastante circulado durante a Guerra Fria, quando acadêmicos ocidentais confiavam no testemunho e estatísticas produzidas por dissidentes. Por exemplo, o historiador americano Rudolph Rummel, em 1990, publicou sua estimativa de 51,5 milhões de mortes no período Stalin.

Após a queda do regime soviético, em 1991, os arquivos da inteligência soviética foram abertos e os historiadores puderam finalmente contar com números oficiais. E esses números acabaram parecendo modestos em comparação. São eles:

  1. Execuções políticas (1929-1953): 777.975
  2. Mortes nos gulags (campos de trabalhos forçados): entre 1,5 e 1,7 milhões
  3. Mortos no reassentamento dos kulaks (proprietários de terras): 389.521
  4. Mortos em outros reassentamentos: 309.521
  5. Mortos na Grande Fome da Ucrânia (Holodomor): mínimo 1,8 milhões, máximo 6,7 milhões (pesquisa pelo historiador australiano Stephen G. Wheatcroft; já se chegou a falar até em 20 milhões).

Total: 3,2 – 9,9 milhões.

Em sua forma bruta, esses números não são aceitos por ninguém. Entre outras coisas, está em disputa se a fome da Ucrânia foi mesmo uma política deliberada de extermínio por Stalin, com o governo do país adotando como posição oficial que foi um genocídio. Historiadores variam entre concordar ou considerar o desastre resultado da coletivização agrícola de Stalin e/ou também problemas climáticos. Neostalinistas não só descontam o Holodomor, como afirmam que as mortes nos Gulags foram naturais em sua maioria e que os números de execuções listados pela NKVD foram inflados. Mais comum é ir na direção oposta, argumentando que os números oficiais certamente ficam aquém da realidade, com execuções e mortes nos gulags subnotificadas.

Noves fora, no que pode ser considerado mainstream hoje, Stalin foi responsável pela morte de algo entre 9 milhões (Oleg Khlevniuk, da Universidade de Moscou, uma das maiores autoridades da Rússia atual) a 20 milhões ou mais (o historiador britânico Simon Sebag Montefiore, autor das recentes biografias de Stalin e Lenin). Na média, 15 milhões é um número frequentemente citado.

Sejam 3, 9, 15 ou 20 os milhões de Stalin são menos do que se ouve por ai, mas ainda muita, muita gente. E, já que ninguém vai resistir à tentação de comparar com Hitler, o número desse fica entre 10 milhões e 25 milhões. Mas isso não conta a Segunda Guerra na Europa, que ele causou, e custou mais uns 35 milhões, pelo menos.

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