Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Até mais https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/27/ate-mais/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/27/ate-mais/#respond Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/relogio-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=624 Por questões diversas, o Flashback não será mais publicado. Talvez, qualquer dia desses, possa retornar. (Sem garantias.)

Valeu a pena! Espero que vocês tenham curtido esta jornada tanto quanto eu.

– Fábio Marton

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Em histórias de santos medievais, Deus fazia aborto https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/hagiografia-milagre-aborto-irlanda-medieval/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/hagiografia-milagre-aborto-irlanda-medieval/#respond Sun, 23 Aug 2020 10:00:58 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/brigida-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=594 Há uma semana, dia 16 de agosto, um grupo de manifestantes religiosos tentou invadir um hospital para impedir o aborto legal de uma menina de 10 anos, interrompendo a gravidez fruto de repetido estupro por um tio. O caso gerou repulsa profunda entre quem não compartilha a visão dos manifestantes – que vem a ser a maioria dos brasileiros. E levou a uma declaração do presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Walmor Oliveira Azedo. Disse que o aborto legal foi um “crime hediondo”.

A Igreja defende que sua posição é consistente com leis imutáveis do próprio Deus. Mas ou as leis mudaram, ou foi Deus. Porque, no passado, católicos chegaram a acreditar que Deus em pessoa provocava abortos. E não de castigo, mas como uma dádiva, um milagre.

Está em biografias (hagiografias) de quatro santos, todos da Irlanda. São eles: Santa Brígida de Kildare (451-525), São Ciarán de Saighir (?-530), Santo Áed mac Bricc (?-589) e São Cainnech de Aghaboe (515-600). A cada um deles, foi atribuído um aborto milagroso, uma intervenção divina que acabou com uma gravidez indesejada.

Aéd visitou um convento e notou que a barriga de uma freira “crescia sem comida”. A freira confessou ter caído em tentação e “Santo Aéd abençoou seu útero e subitamente o infante no útero desapareceu como se não existisse”.

Cainnech ouviu a confissão de fornicação de uma freira, que pediu para abençoar seu útero. Ele assim o fez e “de uma vez o infante no útero sumiu sem qualquer traço”.

Santa Brígida é padroeira das parteiras, dos recém-nascidos e da própria Irlanda (com São Patrício e São Columba). A ela são atribuídos vários milagres relacionados à gravidez. E um aborto. Novamente, de uma freira que havia ficado grávida num momento de fraqueza. “Brígida, exercendo a maior força de sua inefável fé, a abençoou, causando o feto a desaparecer sem nascer, e sem dor”. A freira assim abençoada termina por agradecer a Deus.

O relato mais detalhado, antigo e explícito é o de São Ciarán, escrito no século 7. Aparece na coletânea Vitae Sanctorum Hiberniae (“Vida dos Santos da Hibérnia”, isto é, Irlanda). Uma princesa virgem chamada Bruinnech decide se tornar freira, sob a proteção do santo, em seu mosteiro. Um rei, Dímma, tomado por desejo pecaminoso, rapta e estupra a jovem. Segue o relato: “Ciáran, desprezando a enormidade de tamanho crime, e desejando aplicar uma cura, foi até a casa do sacrilégio para trazer a garota de lá. O homem de Deus retornou ao monastério com a garota e ela confessou que estava grávida. Então o homem de Deus, guiado pelo zelo da justiça, não querendo que a semente da serpente crescesse, apertou sobre seu útero com o símbolo da cruz e forçou seu útero a se esvaziar”.

MILAGRES ESQUECIDOS

Estamos falando de histórias realmente esquecidas pelo tempo. Com exceção desta última, a de Ciáran, todos os abortos milagrosos foram suprimidos de hagiografias posteriores dos santos. “Eu diria que essas são histórias católicas obscuras”, afirma a historiadora da religião Maeve Callan, da Simpson College (EUA), autora do artigo Of Vanishing Fetuses and Maidens Made-Again: Abortion, Restored Virginity, and Similar Scenarios in Medieval Irish Hagiography and Penitentials (“Sobre Fetos Desaparecidos e Donzelas Refeitas: Aborto, Virgindade Restaurada, e Cenários Similares na Hagiografia e Penitências Medievais Irlandesas”; as traduções acima derivam de suas versões em inglês para o latim original). “Tão obscuras que a maioria dos católicos – provavelmente quase todos – não conhece.”

Não é porque algo está numa hagiografia que aconteceu, é óbvio. Pouca gente acredita que São Jorge enfrentou um literal dragão. Mas isso torna essas histórias ainda mais importantes, na verdade. “Hagiografia, falando estritamente, não é história”, afirma Maeve. “Seu objetivo não é registrar uma biografia objetiva do santo, mas apresentá-lo numa forma idealizada, um ser humano tão transformado pela graça de Deus que ele ou ela pode atingir façanhas nunca vistas.”

O que os santos aborteiros da Irlanda demonstram, que não é regional nem limitado ao começo da Idade Média, é que a Igreja já acolheu um pensamento muito diferente a respeito do aborto. “Se procurarmos ver o que diz a tradição católica sobre este tema, também encontraremos muitas contradições”, afirma a assistente social e mestra e doutora em ciências da religião Regina S. Jurkewicz, do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, em seu artigo A Defesa da Vida no Pensamento Católico. “Por exemplo, São Tomás de Aquino (1225-1274) admitia um desenvolvimento progressivo do embrião, através de etapas sucessivas. Para ele, a alma só pode estar presente em uma matéria capaz de recebê-la, e o óvulo fertilizado ou o embrião não podem ter uma alma humana porque não estão prontos para isso.”

Aquino e outros pesos-pesados da Igreja como Santo Agostinho (354-340) consideravam o aborto um pecado muito sério, mas defendiam que o embrião só se tornava humano bem depois da concepção. Portanto, aborto nesse estágio não era equivalente a assassinato. Aquino datava o momento em que isso mudava de figura, a hora da entrada da alma, ou “hominização”, em 40 dias para meninos, 90 para meninas.

Isso não era um consenso universal: outros teólogos, como João Crisótomo (347-407), não faziam distinção de tempo. A discussão se estendeu pelos séculos, mas o lado de Aquino predominou. A outra ala venceu em 1588, quando o papa Sisto 5emitiu uma bula excomungando todos os que se envolveram em aborto, independente do tempo de gravidez. Mas a ordem seria revertida três anos depois, por Gregório 14, que determinou que a hominização acontecia na 16a semana desde a concepção, período em que a maioria das grávidas percebe o feto se movendo, “chutando”. Isso restabeleceu a distinção entre dois tipos de aborto, que duraria até 1869.

A Igreja sempre condenou o aborto, não há dúvida. Mas de duas formas diferentes. Uma é a de um pecado de fornicação: um ato sexual que, prega o catolicismo, só devia acontecer por razões reprodutivas. O pecado aqui é tentar se escapar das consequências naturais – um “ato contra a natureza”, como sexo oral, com camisinha, pílula etc. Algo muito diferente é um pecado de homicídio. Para esse crime, é preciso acreditar que um óvulo fecundado é equivalente a uma pessoa adulta, como a Igreja defende hoje.

Essa distinção perdida ajuda a entender os milagres de aborto medievais. Nessas histórias, Deus não estava matando inocentes, mas livrando das consequências do pecado, num gesto de misericórdia que restaurava a honra das freiras. “Acredito que há uma forte conexão com essa distinção”, afirma Maeve. “Algumas penitências medievais indicam uma consciência similar de graus de severidade – no começo da gravidez sendo mais permissível, exigindo menos penitência.”

E relato de São Ciáran é particularmente significativo. “O estupro que causou a gravidez foi reconhecido como violência, mas o aborto foi mais como fazer sumir com o feto e os efeitos da gravidez, e restaurar o corpo a seu estado pré-gravidez – desfazer uma violência no lugar de perpetrá-la”, afirma a historiadora.

Por que essa postura mudou? Não sem alguma ironia ao olhar contemporâneo, pela ciência. Com a compreensão da fecundação humana e o desenvolvimento embriônico, a partir da década de 1830, foi posta em dúvida a ideia de que a alma entrava apenas quando o feto começa a chutar. Em 1869, o papa Pio 9o excomungou novamente todos os envolvidos em aborto, mudando o entendimento para o atual, de que todo aborto é o assassinato de um inocente. Está no cânon 1.398, no Código de Direito Canônico, que afirma:

Quem provoca aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae [i.e., automática].

Seguindo essa regra, em 2009, num caso semelhante ao atual, envolvendo uma menina de 9 anos grávida de gêmeos, levou o então arcebispo (hoje emérito) de Olinda e Recife, José Cardoso Sobrinho, a declarar que a mãe e os médicos estavam automaticamente excomungados, gerando um escândalo que mobilizou até o então presidente Lula. Diante da reação negativa, a CNBB se moveu para afirmar que a mãe, por ter atendido à pressão e ao medo de perder a própria filha, não estaria excomungada, baseando-se em outra lei, o cânon 1.324, que prevê exceções para a excomunhão.

Nessa explicação, porém, não entrava nem o fato de ser estupro nem de ser contra criança. Não existe essa exceção. Aborto, para a Igreja Católica, não pode ser feito nem para salvar a mãe. A única possibilidade em que é permitido é se o bebê ser perdido faz parte de outro procedimento, como a remoção de um câncer, no qual a intenção não é tirar o feto. A absolvição que o papa Francisco deu, em 2015, para todas as pessoas envolvidas em aborto, foi o indulto por um crime. Que, para a Igreja, continua a ser crime.

OS DISSIDENTES

Mas o que pensam os católicos contemporâneos que discordam? Conversei com a teóloga Isabel Aparecida Felix, integrante do grupo Católicas pelo Direito de Decidir e doutora em ciências da religião. “Para nós, mais do que olhar para essa questão do aborto como uma questão religiosa, é olhar como uma questão de saúde pública, que a igreja não olha, como uma questão da dignidade das mulheres, e como uma questão do direito da autonomia, a autodeterminação das mulheres”, afirma.

As Católicas Pelo Direito de Decidir defendem que a mesma ciência usada pela hierarquia católica para justificar sua postura inflexível na verdade está de seu lado, com estava do lado dos teólogos medievais e dos hagiógrafos irlandeses. “Não há possibilidade de consciência sem vida cerebral”, afirma Dra. Regina Jurkewicz. “A célula geradora do córtex cerebral inicia seu desenvolvimento no 15º dia após a concepção e somente em torno da 8ª semana está suficientemente desenvolvido para que se possa detectar a atividade cerebral. O córtex cerebral é uma condição indispensável para que haja consciência humana, portanto para que haja uma pessoa.”

Segundo Isabel Felix, há uma falta de foco em outra parte da teologia católica. Ela cita a própria Declaração Sobre o Aborto Provocado, da Congregação Pela Doutrina da Fé (a versão atual da Inquisição). No artigo 9, afirma-se:

“Nunca se pode tratar um homem como simples meio de que porventura se dispusesse para alcançar um fim mais elevado”.

“O código é bem machista e patriarcal, e fala do ‘homem’, mas a gente interpreta como o direito à autonomia do ser humano”, comenta. “Ao mesmo tempo em que a igreja diz não olhar para as pessoas como objeto, mas como sujeitos de decisão, há uma incoerência: a questão das autonomia das mulheres para com o próprio corpo, com a sexualidade, não conta para a Igreja.” A teóloga diz que, ainda que haja uma vasta teologia feminista, que favorece essa autonomia, ela não tem penetração numa Igreja exclusivamente masculina em suas estruturas de decisão.

Se alguém discorda frontalmente dessa organização impenetrável, por que continuar a ser católico? Perguntei isso a Isabel, que respondeu: “Dentro da tradição católica, existem valores que nós acreditamos, da justiça da compaixão da dignidade. Por que continuamos? Por que não permitimos que eles, que a Igreja como instituição, defina o que é catolicismo para nós. Para eles, a igreja é a hierarquia. Para nós, é a comunidade.”

Tentei falar com a hierarquia, aliás. Levei a questão das mudanças no pensamento católico e a história dos santos irlandeses à CNBB. A assessoria de imprensa recebeu minhas perguntas e afirmou tê-las encaminhado a um bispo especialista em bioética. A reposta, infelizmente, não chegou no prazo combinado, a tempo da publicação. 

Ficamos, assim, com as palavras de seu presidente. Estupro de criança e interrupção legal da gravidez, numa menina estuprada de 10 anos: “Dois crimes hediondos”.

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Há 60 anos, cadelas se tornavam as primeiras criaturas a sobreviver ao espaço https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/19/belka-strelka-cachorras-espaco/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/19/belka-strelka-cachorras-espaco/#respond Wed, 19 Aug 2020 22:05:47 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/BelkaStrelka-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=601 Em 20 de agosto de 1960, as primeiras criaturas vivas voltavam do espaço… com vida. A famosa cadela Laika, que decolara no Sputink 2, em 3 de novembro de 1957, havia morrido de hiperaquecimento horas após o lançamento, quando a temperatura interna chegou a 43o C. Mesmo sem o calor, não havia qualquer chance para ela, porque sua nave não era nave. Era um satélite, que ficou meses no espaço, se desintegrando na atmosfera só em 14 de abril de 1958.

Quase 3 anos depois, os soviéticos estavam prontos para trazer de volta criaturas vivas. Ou quase: era a segunda tentativa. Na primeira, em 28 de julho de 1960, a nave se desintegrou logo após o lançamento, matando dois outros cachorros, Bars e Lisichka.

Às 8h44 da manhã, a Korabl-Sputnik 2, que ficaria conhecida como Spunik 5 no Ocidente, decolava de um míssil nuclear modificado R-7 Semyorka. No módulo Vostok 1, iam não só as duas cachorras, Belka e Strelka, como 40 camundongos, dois ratos e diversas plantas. Após 5 órbitas, às 6h da manhã do dia seguinte, a nave reentrava na atmosfera, para ser recuperada na Sibéria. Todos os ocupantes estavam vivos.

O surpreendente vem agora. Strelka, de volta ao centro de treinamento, teria um filhote com um cachorro chamado Pushok, que nunca chegou a ser mandado ao espaço. E um dos filhotes, uma cadela batizada de Pushinka, foi dada de presente ao presidente americano John Kennedy pelo premiê soviético. E aceita de coração, apesar da preocupação de agentes de segurança de que a cachorrinha tivesse algum tipo de grampo secreto. Ela teria mais quatro filhotes com um cachorro Chamado Charlie. Eventualmente, com a morte de Kennedy, a família passaria seus cães para amigos. Longe da Casa Branca, a linhagem da cadela espacial soviética segue viva nos EUA.

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Pedro, o progressista: o outro mito do imperador https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/01/pedro-ii-liberal-mito/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/01/pedro-ii-liberal-mito/#respond Sat, 01 Aug 2020 22:10:17 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/caiu-do-trono-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=582 Duas semanas atrás, os historiadores Thiago Krause e Paulo Pachá falaram do uso nostálgico da história do Império pela extrema direita. Queria aproveitar a deixa, meio atrasado, para falar para outro lado desse mito, que atinge a outro tipo de pessoa, gente até de centro-esquerda: a ideia de que D. Pedro II foi um anti-déspota e esclarecido. Nosso Papai Noel no poder, o bom velhinho da tolerância e conciliação nacional. Uma força da democracia e do progresso, destituído por um golpe militar que abriu um precedente maldito, o da República tutelada.

Pedro, o democrata, teria evitado fazer uso de seus consideráveis poderes, governando como monarca constitucional moderno, deixando a política correr como um regime parlamentarista constitucional. O monarca também odiaria a escravidão, era um abolicionista constrito pelas limitações do sistema. Também fã de ciências e arqueologia, poliglota, muito lido, que até mesmo, em seus diário, registrou que a república era uma forma superior de governo que a monarquia. Um homem exasperado com um país que não avançava, apesar de seus desejos.

Enfim, ironicamente para os monarquistas atuais, Pedro II não poderia ser classificado como um conservador. Não para sua época.

Em sua época, o Pedro liberal tinha entre seus fieis gente com a cabeça considerada arejada para a época, como o abolicionista e secularista Joaquim Nabuco. A ideia foi reforçada por biografias relativamente recentes focadas na pessoa do imperador, como a de Paulo Rezutti e a de José Murilo de Carvalho.

Não há nada de errado em retratar o ser humano em suas contradições. É uma verdade histórica como outras. Mas há o risco de criar uma mitologia sem querer. Conhecendo Pedro enquanto humano, é fácil ser tentado a ver nele uma figura que não corresponde a suas ações.

Podemos discutir por dias o que Pedro II queria pessoalmente, se ele era mesmo essa figura avançada, e até especular se repudiaria seus descendentes retrógrados. Mas o que condena o Pedro liberal é o que foi seu governo na prática, no que implica esse “constitucionalismo democrático” todo dele.  Assumindo um país em guerra civil, Pedro batalhou até a exaustão para moderar facções e evitar conflito, de forma a manter a integridade nacional. Esse é um mérito que se levanta dele, mas será mesmo mérito a moderação em face ao intolerável? O Segundo Reinado foi uma paz escravocrata, o  que inclui medidas altamente pró-escravidão, como aceitar a continuidade do tráfico ilegal e mostrar simpatia para com os confederados na Guerra Civil Americana, até aceitar refugiados entre eles por aqui.

Se o monarca era mesmo tão arejado das ideias (não estou descartando nem aceitando essa possibilidade aqui; esse é outro tema), ele traiu o que acreditava em nome da estabilidade. Lutar pela estabilidade de uma situação iníqua é um mal. Isso não é grandeza.

A “moderação” de Pedro serviu para sermos o último país do continente americano a abolir a escravidão. O resultado foi a continuidade da tortura e cativeiro de milhões, por gerações, e o atraso econômico e social que segue ainda hoje. Se é uma trágica ironia para um monarca abolicionista, tanto faz. Esse é o triste presente que nos deixou o triste “bom velhinho”.

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O Dia Mundial do Rock não é mundial, nem realmente do rock https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/07/13/o-dia-mundial-do-rock-nao-e-mundial-nem-do-rock/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/07/13/o-dia-mundial-do-rock-nao-e-mundial-nem-do-rock/#respond Mon, 13 Jul 2020 17:00:26 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/roque.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=575 Perdoem tirar o dia para chover na festa dos outros, mas é gatilho em roqueiro velho (pleonasmo?). O Dia Mundial do Rock é uma jabuticaba. Existem jabuticabas deliciosas, mas não consigo ver mcjabuticabas publicitárias (como o Dia dos Namorados) como algo que mereça ser chamado de rock’n’roll.

O Dia Mundial do Rock foi concebido em 13 de julho de 1985, quando o brutal roqueiro Phil Collins, criador dos hits derretedores de cara Invisible Touch e Paradise, no calor do momento de seu show no Live Aid, sugeriu que aquele dia passasse a ser conhecido como “Dia Mundial do Rock”. (Para quem não pegou a referência: Phil Collins era um astro pop vindo do rock progressivo; no máximo podia ser classificado como soft rock.)

O apelo foi solenemente ignorado pelo resto do planeta. Até, anos depois, ser lembrado por executivos das rádios de rock de São Paulo. Nos anos 90, as FMs 89 e 97 passaram a celebrar o “Dia Mundial do Rock” proposto por Phil Collins, numa tentativa de recuperar fãs do gênero que havia sido mainstream por alguns anos da década anterior, mas perdia espaço para o pagode e o sertanejo. Basicamente como o Dia dos Namorados do pai de João Doria, esse feito para vender roupas. Meio que colou. Não muito.

MEGA EVENTO

Fazendo 35 anos hoje, o Live Aid merece uma menção mais extensa que o Dia Mundial (Só No Brasil) do Rock. Foi uma iniciativa para arrecadar fundos para combater a fome na Etiópia, que, entre 1984 e 1985, matou cerca de 600 mil pessoas. Foram dois megaconcertos acontecendo em Londres e Filadélfia (EUA). Nomes mais que bem estabelecidos, e boa parte já na faixa dos quarenta anos de idade, como os Rolling Stones, Led Zeppelin e Black Sabbath. Alguns mais jovens (e mais pop), como U2, Duran Duran e Madonna. Phil em pessoa, que tinha 34 e começara sua carreira no progressivo Genesis, tinha razão para estar empolgado: havia se apresentado em Londres, pego um voo de Concorde, e fazia outro show no outro continente no mesmo dia.

Infelizmente, o esforço do Live Aid, assistido por 1,5 bilhão de espectadores, rendeu mais às gravadoras que aos etíopes. As músicas dispararam nas pardadas. Mas o dinheiro arrecadado, transferido ao governo Mengistu Haile Mariam, serviu para manter no poder um ditador que seria condenado por genocídio pelas autoridades etíopes em 2007, e segue no exílio até hoje. Mengistu foi acusado de usar de fundos para massacrar sua oposição e a oposição. E uma parte dessa oposição, o grupo guerrilheiro Frente de Libertação do Povo Tigré, também recebeu fundos e o empregou no combate.

Tanto Mengistu quanto a Frente se consideravam marxistas. Em 1990, Mengistu perdeu o apoio da União Soviética, renunciou ao marxismo e tentou reformas de mercado – para ser derrubado pela (também marxista, então adotando o socialismo democrático) Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope, que tomou a capital em 27 de maio. Foi o começo da atual democracia etíope.

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1932 não teve revolução; teve guerra civil https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/07/09/1932-nao-teve-revolucao-teve-guerra-civil/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/07/09/1932-nao-teve-revolucao-teve-guerra-civil/#respond Thu, 09 Jul 2020 19:21:35 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/1932-2.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=565 O Brasil celebra hoje, 9 de julho, os 88 anos de um evento insólito: uma revolução que perdeu. E, por isso, não revolucionou nada.

A Guerra Civil de 1932 pretendia ser uma revolução. E não tinha nada de separatista. O plano era invadir o Rio de Janeiro para derrubar Getúlio Vargas, com a principal justificativa de estabelecer a democracia. A movimentação envolvia interesses da elite cafeeira e um bairrismo paulista meio esquecido, o do “povo bandeirante” que se acreditava fundador do Brasil e se sentia humilhado por uma série de interventores (governadores não eleitos) de outros estados, impostos pelo governo provisório que vinha desde 24 de outubro de 1930 prometendo justamente a democracia.

A revolta paulista não conseguiu o apoio de outros estados (crucialmente Minas Gerais), como esperavam seus líderes. Foi parada militarmente sem cruzar a fronteira com o Rio, invasão planejada para começar pela cidade de Resende, e se tornou uma causa perdida logo na primeira semana. Em 2 de outubro de 1932, os paulistas se renderam.

Em 3 de maio de 1933, os brasileiros foram convocados a eleger uma Assembleia Constituinte – exatamente no dia que já estava previsto antes da guerra começar. E essa Constituição, promulgada em junho de 1934, duraria pouco mais de 3 anos, até o autogolpe do Estado Novo impor uma carta de inspiração fascista – e aí não teve guerra nenhuma. Mesmo se é verdade que a Constituição só saiu mesmo por causa de 1932, mantido o status quo e com a constituinte partindo do governo provisório no Rio, seria no máximo uma “Pressão Constitucionalista”.

PRÊMIO DE CONSOLAÇÃO

Nossa esquisitice está no dicionário: no Michaelis, brasileiro, “revolução” pode ser sinônimo de mera revolta ou sublevação. No Priberam, português, só num sentido figurado. Mais para: “Menino, seu quarto está uma revolução!”.

A “Revolução” Constitucionalista tem precedentes na história brasileira. No Rio Grande do Sul, tem duas: a Farroupilha (1835 a 1845) e a Federalista (1895). Por outro lado, a “Guerra de Canudos” raramente é chamada de Revolução. A impressão é que os líderes serem ricos e influentes, terminando anistiados, determina o título histórico, mais que a natureza do movimento. Que “revolução” não descreve a natureza do movimento, mas serve de prêmio de consolação aos revoltosos, em nome da pacificação nacional.

São Paulo ganhou um baita prêmio de consolação, aliás. Usa como símbolo do estado a bandeira rebelde. que na verdade era uma proposta não aprovada de bandeira do Brasil. A Farroupilha também pode ser chamada de Guerra dos Farrapos, mas o nome “Guerra Paulista”, comum nos anos que se seguiram, raramente é usado. São Paulo é possivelmente (não conferi uma por uma) a única capital sem um logradouro central chamado Getúlio Vargas, como uma Avenida ou Praça Presidente Getúlio Vargas. No lugar disso, duas de suas maiores avenidas são a 23 de maio (dia da morte dos estudantes Mario Martins de Almeida, Euclides Miragaia, Dráusio Marcondes de Sousa e Antonio Camargo de Andrade, que deram origem à sigla M.M.D.C., movimento pela guerra) e 9 de julho (começo da guerra).

Os tempos são outros. A impressão é que acabou a era do “deixa disso”, a conciliação a qualquer custo que fazia com que o brasileiro visse a si próprio como criatura apolítica. Quem sabe seja a hora de darmos nome aos bois e chamar 1932 e outros eventos como o que foram: guerra civis. O Brasil as teve. E quem sabe essa conversa de brasileiro apolítico tenha sido mesmo um grande mito desde sempre. Não só 1932, mas as mudanças ilegais de regime em 1889, 1930, 1937 e 1964 estão aí de prova.

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Pesadelo vitoriano: o poço hiperprofundo https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/07/01/poco-woddingdean-mais-profundo/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/07/01/poco-woddingdean-mais-profundo/#respond Wed, 01 Jul 2020 18:18:18 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/poço2.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=549 Parece só um poço desativado como qualquer outro. Discretamente ao lado do hospital Nuffield, no subúrbio de Woddingdean, em Brighton and Hove, o poço hoje coberto com uma grade, foi concluído em 1862 e é a maior atração turística do local. Quem olhar para dentro, só vai ver um buraco rumo à escuridão, sem imaginar que seu fim está a mais de 390 m de profundidade, mais que a altura do Empire State Building em Nova York (que tem 381 m). É o mais profundo poço cavado sem auxílio de máquinas modernas. Mas isso é só a parte mais óbvia de sua história, que é uma janela para os valores de sua época.

Poço de Woddingdean
Poço de Woddingdean no hospital, como visto hoje (Yiorgos Stamoulis/Wikimedia Commons/CC)

O poço começou com um projeto de expansão de uma escola industrial para adolescentes pobres. Escola industria vinha a ser uma instituição cujo propósito era ensinar os “hábitos da indústria” – fazer os jovens trabalhar o mais duro possível para impedi-los de adquirir o espírito da ociosidade, a “causa da pobreza”, como se acreditava. Era parte da iniciativa dos Guardiões de Brighton, grupo de moradores responsável por “auxílio” aos pobres, que contava com instalações para adultos que não conseguiam emprego. Essas eram as casas de trabalho, que funcionavam pelo mesmo princípio: labuta o mais extenuante e desagradável possível, para evitar que alguém quisesse se inscrever “por preguiça”, “sem necessidade”.

Em 1858, quando o projeto começou, já havia água encanada, movida por bombas a vapor. Mas o custo foi considerado proibitivo, então um poço foi encomendado. Seriam usadas as mãos de casa de trabalho próxima, o que tinha a conveniência de passar uma mensagem sobre o tipo de trabalho que esperava quem quisesse entrar na instituição. E, com isso, evitar que alguém tentasse entrar para relaxar.

Sabia-se que o solo daquela parte de Brighton era pobre em água. Só não o quanto. Após a primeira pazada em março de 1858, por 24 horas por dia, sete dias por semana, os internos da casa de trabalho passaram a cavar o poço de 6 pés (1,83 m) de diâmetro. Alguns centímetros eram escavados, uma fileira de tijolos, assentada, e, camada a camada, o buraco ia afundando. O solo era removido por baldes e escadas improvisadas davam acesso os trabalhadores, na mais completa escuridão, abatida apenas por velas. A construção continuou e continuou, sem sinal de água. Mas isso não deteve os planejadores. Só reforçava a mensagem aos pobres locais.

Dois anos depois de começada, a 133 metros de profundidade e nada de água, uma outra estratégia foi tentada: túneis laterais, tentando encontrar um aquífero. Sem resultado, um segundo poço vertical, ao final de um corredor de 10 metros, foi ordenado. Esse só tinha 4 pés de largura (122 cm). Em condições ainda mais lúgubres, a construção continuou. Um funcionário despencou para o fundo fim e foi removido. Misericordiosamente (ou talvez não) seria a única vítima fatal.

Em 16 de março de 1862, quatro anos após o início da construção, o poço havia atingido 1.285 pés (391,67 metros) de profundidade. Foi quando um trabalhador sentiu a terra se mover para cima, no que ele comparou com um grande pistão, levantando-o. Era, enfim água, mas ninguém teve tempo de celebrar. Ruidosamente, o fundo se desintegrou e ferramentas foram engolidas pela água, que começou a jorrar. Em quase pânico, os homens subiram o mais rápido que podiam, com a água atingindo 122 metros em uma hora.

Ninguém morreu dessa vez, e um recorde que dura até hoje foi estabelecido. Poços cavados por brocas modernas podem atingir mais de 1 km de profundidade, mas geralmente são mais rasos que o poço de Woodingdean (aqui no Brasil, poços para atingir o Aquífero Guarani tem por volta de 300 metros). São bem mais estreitos, consistindo em longos canos. O buraco mais fundo cavado pela humanidade é o Poço Superprofundo de Kola, na Rússia, uma perfuração científica atingindo 12.262 metros, com 23 cm de diâmetro.

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A primeira vítima da ditadura militar: os militares https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/28/a-primeira-vitima-da-ditadura-militar-os-militares/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/28/a-primeira-vitima-da-ditadura-militar-os-militares/#respond Mon, 29 Jun 2020 01:04:39 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/marinheiros.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=542 O primeiro sangue derramado pela ditadura foi o do tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, morto em 4 de abril de 1964 por uma rajada de metralhadora pelas costas. Os tiros partiram de seus companheiros militares, por se recusar a apoiar o golpe. Sua posição de paciente zero foi reconhecida pela Justiça do Brasil em março de 2019.

Alfeu era parte de um grupo de vítimas da ditadura menos lembrado: o dos próprios militares. Quando a ditadura assumiu, imediatamente passou a um expurgo em suas forças, com o Ato Complementar nº 3, de 11 de abril, expulsando 122 oficiais de diversas patentes. Na alta cúpula, até 1966, seriam expulsos 24 dos 91 oficiais com patente de general ou equivalente. A perseguição atingiria, segundo a Comissão Nacional da Verdade, até 7.500 militares, entre expulsos, presos, torturados e assassinados.

E isso é outra parte menos lembrada do surgimento da ditadura: não era só uma disputa envolvendo João Goulart e a esquerda civil, de um lado, e os militares a direita civil, do outro. Era uma disputa também entre militares e militares. Havia uma ala pró-Goulart juntando nacionalistas e esquerdistas, que era forte na baixa patente, bastante ruidosa e teve suas vitórias. A própria posse de Goulart, em 1961, aconteceu em grande parte pelo apoio de militares dessa ala, que aderiram à Campanha da Legalidade de Leonel Brizola, contra a outra ala ameaçando fechar o congresso, segundo a denúncia do jornalista Carlos Lacerda, liderança conservadora que acabaria por apoiar o golpe em 64, para se arrepender. (A bem da verdade, a posse de Jango foi mais um “empate”: assumiu como presidente num regime parlamentarista aprovado às pressas, que seria revogado em janeiro de 1963 após um plebiscito.)

Nos anos que seguiram, os militares se polarizaram entre contra e a favor de Jango, culminando na Revolta dos Sargentos, em 12 de setembro de 1963, quando cerca de 600 militares de baixa patente se rebelaram em Brasília, prenderam adversários, inclusive um ministro do Supremo Tribunal Federal, cortaram as comunicações da cidade e tomaram o Departamento Federal de Segurança Pública e o Ministério da Marinha. A razão da revolta havia sido uma decisão do STF de considerar ilegal a eleição de militares a cargos legislativos em 1962. Esses militares representavam principalmente o movimento pró-Goulart.

Sem conquistar adesão em massa e por erros de comunicação, a revolta foi aniquilada. Seus líderes foram enviados a um navio-prisão na Baía de Guanabara.

Mas o clima de rebelião continuou. No que Elio Gaspari e diversos historiadores consideraram o principal estopim da ditadura, em 25 de março de 1964, foi a vez da Marinha. Em 24 de março, o almirante Sílvio Mota, ministro da marinha de João Goulart, decretou a prisão dos líderes da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, um sindicato considerado ilegal, que apoiava ferrenhamente o presidente. Em desafio, a associação celebrou seu aniversário no dia seguinte, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, com os líderes condenados. Os membros do Corpo de Fuzileiros Navais enviados para prendê-los aderiram ao movimento, como apoio de seu comandante, o vice-almirante vice-almirante Cândido Aragão. Humilhado, Mota pediu demissão, assumindo no lugar o almirante pró-rebeldes, pró-Jango, Paulo Mário da Cunha Rodrigues, que daria anistia a todos os rebelados no dia 27, para no dia 28 desfilarem pelas ruas do Rio. Mota, Aragão e Rodrigues seriam exonerados após o golpe. O vice-almirante dos fuzileiros, Aragão, aos seus 56 anos, chegaria a perder um olho sob torturas.

Assim foram os últimos dias da democracia. Os líderes do golpe deram também um golpe nas Forças Armadas. A guerra civil que nunca aconteceu foi ainda assim vencida e os militares à esquerda, destruídos. Sem o expurgo feito pela da direita militar, física e ideologicamente, das figuras militares que se opuseram ao golpe, seria difícil de imaginar quarteis ensinando ainda hoje que 1964 foi um “marco para a democracia“. Assim como o apoio com que um presidente como Bolsonaro ainda conta nas forças. Apologistas da ditadura raramente incluem em sua narrativa que os “comunistas” dos quais, a seu ver, salvaram a democracia, eram, em grande parte, outros militares.

A atual cultura militar do Brasil não é natural da profissão. É um legado da ditadura.

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Corrupção nazista: como Hitler comprou os generais https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/25/corrupcao-nazista-como-hitler-comprou-os-generais/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/25/corrupcao-nazista-como-hitler-comprou-os-generais/#respond Thu, 25 Jun 2020 14:39:25 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/konto.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=537 A falta de transparência das ditaduras anda de mãos dadas com a corrupção. Para se manter no poder, Hitler corrompeu oficiais graduados das forças armadas.

Aparentemente, nazistas e militares eram um casamento perfeito. Ambos queriam uma vingança contra a humilhação do Tratado de Versalhes, que desarmou a Alemanha após a Primeira Guerra. Com isso, acertar as contas com a inimiga dessa guerra, a França, e expandir o domínio da Alemanha pela Europa e pelo mundo. Ambos queriam uma ditadura militarista. E antissemitismo, se não exatamente um valor central à vida militar alemã, certamente não era impedimento.

Mas as forças armadas alemãs eram conhecidas por ser “um Estado dentro do Estado”. Ninguém menos que Otto von Bismarck, o chanceler considerado fundador da Alemanha Unificada, foi proibido de atender a reuniões do Supremo Conselho de guerra, por ser considerado civil. Os dois últimos anos da Primeira Guerra foram basicamente uma ditadura militar, num golpe silencioso por conta da incompetência que os militares viam no imperador Guilherme II e seu chanceler, Theobald von Bethmann-Hollweg. Era o “duumvirato” do marechal Hindenburg e ggeneral Ludendorff. Hinderbug acabaria por ser o homem a dar o cargo de chanceler a Hitler, em 30 de janeiro de 1933, selando o destino da Alemanha.

Mas, ao final do dia, Hitler continuava a ser um mero cabo plebeu, quando os oficiais graduados vinham da nobreza alemã – classe extinta com o fim da monarquia, mas obviamente na memória de seus membros. Diante de suas atrocidades – em vários casos, mais pelo desperdício de recursos que questão humana – e de sua condução desastrada e intempestiva da guerra, Hitler não pôde contar com a fidelidade incondicional de todos os militares. Antes mesmo de começar a guerra, já havia uma conspiração marcada para dar um golpe militar, a Conspiração Oster, liderada pelo general Hans Oster, que pretendia mater Hitler e restaurar o imperador Guilherme II para impedir que a Alemanha causasse outra guerra mundial. Estava para começar após a invasão da Checoslováquia, que podia precipitar a guerra – e fracassou porque o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain, deixou de graça, com Hitler ganhando as notícias como “exímio estadista”.

ENTRA O SUBORNO

Antes da guerra, e mais ainda durante, Hitler passou a molhar a mão dos oficiais com presentinhos como propriedades, carros, vultosos cheques e a liberação de impostos. Havia um fundo secreto para isso, chamado Konto 5 (“Conta 5”), que começou em 150 mil reichsmarks (RM) em 1933 (US$ 901.815,32 em dinheiro de hoje), e terminou em RM 40 milhões em 1945.  Oficiais ganhavam de RM 2 mil a RM 4 mil “por fora”, mais RM 250 mil no aniversário, para um salário de RM 24 mil de um general.

Hitler fazia questão de deixar claro que aquilo não era uma coisa oficial, mas um presente pessoal dele, mais ou menos ilegal, e que podia ser tirada a qualquer instante. Era uma forma de tornar a pessoa cúmplice num acordo desonroso, e dever fidelidade direto ao Fuhrer, não ao Estado. E funcionava: em julho de 1942, quando o marechal de campo Fedor von Bock, comandante de grupos importantes de exército nas invasões da Polônia, França e URSS, foi sacado de sua posição, a primeira coisa que perguntou é se continuaria a receber os cheques. Ao final, Hitler conseguiu prosseguir em sua campanha militar cada dia mais suicida. A tentativa de assassinato que sofreu em 20 de junho de 1942 partiu de uma minoria, e a razão maior era justamente que o país estava perdendo a guerra. Nenhum oficial ativo importante estava envolvido – Erwin Rommel, que seria eventualmente forçado a se suicidar em outubro de 1944, até onde se levantou, sabia do plano e fez vistas grossas, mas sua participação ficou no “apoio moral”.

Militares alemães, como os do resto do mundo, gostavam de se apresentar como uma reserva moral da nação. Mas, com uma generosa dose de suborno, foram dobrados a participar das atrocidades (e participaram, principalmente durante a invasão da URSS) e levar seu país à ruína. As forças armadas alemãs limpinhas, sem envolvimento nos crimes nazistas, é um mito do pós-guerra, de quando oficiais veteranos foram re-recrutados para as Bundeswehr, forças da Alemanha democrática,  em 1955, e os EUA olharam para o outro lado porque os ex (ou “ex”) nazistas eram adversários dos soviéticos.

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Caso Evandro: caça às bruxas nos anos 1990? https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/18/caso-evandro-caca-as-bruxas-nos-anos-1990/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/18/caso-evandro-caca-as-bruxas-nos-anos-1990/#respond Thu, 18 Jun 2020 18:37:35 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/Bruxas.jpg true https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=526 O assunto veio à tona hoje por conta do suposto envolvimento de Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro na casa de quem Fabrício Queiroz foi preso esta manhã. Em 1992, ele próprio chegou a ter sua prisão requerida, acusado de participar de uma seita que teria feito dois “rituais satânicos” homicidas.

Foi o caso chamado de Bruxas de Guaratuba. Um caso que parece ter tido todas características, o rigor (sua ausência) e a fantasia dos julgamentos de bruxaria da Idade Média.

Poderia ser só uma história medonha de serial killer. Em 6 de abril de 1992, o menino Evandro Ramos Caetano desapareceu em Guaratuba, Paraná. Cinco dias depois, seu corpo foi encontrado em com indícios de uma morte brutal: peito aberto, sem vísceras, olhos perfurados, mãos amputadas, escalpo tirado. Dias depois, o pai de santo Osvaldo Marcineiro confessou ter matado a criança num ritual satânico, por encomenda da esposa e filha do prefeito da cidade, Celina e Beatriz Abagge – as “bruxas”, que afirmaram estar esperando ganhar prosperidade com isso. Eles e outros faziam parte do Centro Espírita Beneficiente Abassá Deoe. As “bruxas”  confirmaram o depoimento do pai de santo. Outro caso que havia acontecido dois meses antes, o desaparecimento de outro menino, Leandro Bossi, cujo corpo não fora encontrado, entrou na investigação – foi então que Wassef, que era parte do grupo religioso, e esteve no hotel onde trabalhava a mãe de Leandro, teve sua prisão requerida pelo delegado responsável pelo caso. Wassef não chegou a ser preso, mas sua casa em Atibaia, São Paulo, foi revistada.

E depois retiraram a confissão. Aqui começam as semelhanças com a Idade Média: a população revoltada foi às ruas, emulando naquele estereótipo de multidão com tochas e forcados, para atacar a prefeitura e a casa do prefeito. As pessoas acusadas afirmaram que foram torturadas para confessar sua “bruxaria” – e entregar outros “bruxos”. Também disseram que, na cadeia, onde ficaram entre 1992 e 1995, os guardas temiam que fossem se transformar em uma nuvem de fumaça e escapar, por isso fechavam a solda a janela da cela. E que, em outra ocasião, os guardas se jogaram no chão por medo da lua poder empoderar seus feitiços.

Em 1998, acabaram inocentadas do caso, em júri popular, que durou 34 dias. No ano seguinte, o julgamento foi suspenso, e retomado novamente em 2011, quando Beatriz acabou condenada a 21 anos e 4 meses (a mãe foi dispensada pela idade avançada). Em 2016, Celina perdoada pelo Tribunal de Justiça do Paraná, pelo caso ser considerado muito frágil. Em meio a isso, Osvaldo Marcineiro, mais o pintor Vicente Paulo Ferreira e o artesão Davi dos Santos Soares foram condenados.

Em março passado, o jornalista Ivan Mizanzuk, que cobriu extensivamente o caso em seu podcast Projeto Humanos – Caso Evandro, mostrou as gravações do interrogatório, que tinham evidências que ele considerou conclusivas de todas as confissões terem ocorrido sob tortura.

Certamente a criança parece ter sido assassinada em condições brutais, num crime horrendo. Mas o caso, como foi reportado e investigado, é imensamente suspeito, não só pela tortura e ideias supersticiosas, como a menção a religiões afro-brasileiras. Isso é mais uma semelhança com a Era Medieval: lembra um libelo de sangue, a acusação de sacrifício infantil que era feita contra os judeus da cidade, terminando em pogrom (massacre). O pai de santo, pelo racismo religioso brasileiro, ocupa o lugar do judeu.

PÂNICO SATÂNICO

E há ainda o contexto internacional. Em 1992, vivia-se o pânico moral de seita satanista. A onda começou nos Estados Unidos, em 1980, com o lançamento do livro Michelle Remembers, do psiquiatra canadense Lawrence Pazder. Nele, ele falava de uma paciente sua, a Michelle (Smith) do título, que, sofrendo de depressão, lembrou-se durante hipnose que sua mãe, entre 1954 e 1955, quando Michelle tinha 5 anos de idade, participava de um culto satânico, que fora abusada pelos membros, e que eram parte de um vasto grupo de satanistas. Pazder cunhou o termo “abuso ritual” para descrever a categoria dos crimes como os de Michelle, e, em setembro de 1990, afirmou em uma entrevista já ter desvendado “mais de 1000 casos”.

O livro deu um véu científico para uma outra onda do final dos anos 70, na cola do televangelismo: a de “ex-satanistas”, todos então fundamentalistas evangélicos, que diziam haver uma vasta rede de satanismo pelo país.

A história de Michelle simplesmente não batia com os fatos. Isso não impediu de, ao longo dos anos 80, mais de 12 mil casos terminassem investigados nos EUA, em acusações como prostituição forçada, tráfico de drogas, pornografia, abuso sexual, tortura, necrofilia, coprofilia, canibalismo de fetos… enfim, tudo de ruim em nome do Coisa Ruim. Nesses casos todos, jamais se provou haver uma real organização religiosa satanista, mas alguns casos reais partindo de indivíduos perturbados – psicopatas. As grande maioria das acusações partiam de crianças ou de pessoas relembrando “memórias reprimidas” sob hipnose, num contexto evangélico radical. Dezenas de pessoas foram presas sem provas definitivas, sob a acusação de participar da “rede satânica”, e várias continuam ainda hoje.

A ideia era parte da cultura popular mundial. Foi exportada para outros países e terminou sendo considerada pela grande maioria dos acadêmicos como um caso de pânico moral: um medo irracional e fantasioso da sociedade quase inteira, gerando uma teoria da conspiração socialmente aceita, que vai parar na grande imprensa. Como caça às bruxas original. E a maior prova é que quase não se ouve mais ouve falar disso hoje.

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