Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Dançarinos de funeral são parte de uma tradição ameaçada https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/05/dancarinos-funeral-gana/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/05/dancarinos-funeral-gana/#respond Sun, 05 Apr 2020 14:44:38 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/meme.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=442 O meme do momento no Brasil e no mundo é a “dança do caixão”. Um grupo exibe seu inegável talento carregando um caixão sob um ritmo eletrônico (Astronomia 2K19 de Stephan F.) e… bom, só dá pra entender vendo:

Primeiro, o que você está vendo: o vídeo é composto por duas matérias, uma da Associated Press e outra da BBC, ambas de 2017. Falam sobre uma “nova tendência” em funerais do Gana, criada pelo agente funerário Benjamin Aidoo. À BBC, ele explica por que decidiu adicionar coreografias em uniforme a seus serviços e diz perguntar a seus clientes se “você quer que seja solene ou você quer um pouco mais de espetáculo?”. A cliente que contratou a dança diz: “Decidi dar a minha mãe uma viagem dançante para o criador”. A música que estão dançando, tocada pela fanfarra que também é parte do serviço, é jazz africano. Pode ser conferida no original:

Segundo, por que você está vendo. A África tem tantas tradições funerárias quanto povos. Entre elas, há os enterros festivos, celebrando a vida, não a morte. Particularmente notórios na África Ocidental, entre populações cristãs e politeístas de Gana e Nigéria – muçulmanos fazem funerais discretos. A despedida vem na forma de grande evento social. Um funeral nesses países, envolvendo música, dança, banquetes, bebida, pode ser mais caro que um casamento, com ricos exibindo sua opulência e pobres, acabando com suas economias. É marcado para o sábado, de forma que os convidados possam chegar e as preparações serem feitas. Durante a semana, o corpo espera no necrotério.

Funerais felizes geralmente se reservam a pessoas mais velhas, que tiveram uma vida realizada e uma “boa morte”. Mortes trágicas e antes do tempo contam com eventos discretos, indicados por uma cruz no caixão e uso de vermelho e preto, as cores do luto doloroso. Funerais festivos usam branco e preto. Às vezes, é os dois ao mesmo tempo: os parentes próximos sofrem e vestem vermelho e preto, os outros festejam. Alguns no próprio país condenam o que enxergam como desperdício.

Antes da dança viralizar, Gana já tinha fama por seus caixões “fantasia”, representando alguma coisa importante ou simbólica para a pessoa falecida, como carros, celulares, garrafas de Coca-Cola.

Caixão de Leão
Leão, com uma Mercedez atrás, em fábrica de caixões em Gana (foto: Emilio Labrador/Flickr/CC)

A tradição da festa na despedida foi levada da África Ocidental pelos escravos. Pode ser vista nos funerais jazz de Nova Orleãs e as cerimônias do vodu haitiano.

Mas hoje, é só tristeza: Gana está sofrendo por sua ausência. Durante a crise do Covid-19, eles foram banidos e a colorida indústria funerária do país está parada.

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Para o bolsolavismo, hoje é o dia do Ki-Suco https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/15/bolsolavismo-protesto-jim-jones/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/15/bolsolavismo-protesto-jim-jones/#respond Sun, 15 Mar 2020 18:55:31 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Jones-300x215.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=404 É quase um clichê na oposição comparar o bolsolavismo fanático com uma seita. Mas hoje, quando os mais exaltados fãs vão às ruas manifestar-se contra as instituições no começo de uma epidemia, a coisa assume um sentido literal. Em nome do líder, que apareceu para apoiar o movimento, entregam-se potencialmente à própria morte —e a faixa etária dos manifestantes torna o risco bem concreto. Neste dia, os bolsolavistas estão tomando Ki-Suco.

A expressão “tomar o Ki-Suco” nasceu em 18 de novembro de 1978, quando o líder da seita Templo do Povo, Jim Jones, ordenou que fossem preparados tambores industriais de refresco de uva (a marca não era Ki-Suco, chamado de Kool Aid em inglês, mas Flavor Aid). Dentro, foram colocados diazepan, hidrato de cloral, prometazina e cianeto de potássio (só o último é um veneno propriamente dito, os três primeiros são sedativos). Os membros da seita fizeram fila para tomar o refresco, após o que se sentavam no chão e morriam em 30 minutos (5 para crianças). Ao final do dia, havia 918 mortos em Jonestown, uma chácara na Guiana rural, transformada em sede da seita, cercada e vigiada com guaritas, como um presídio.

O que as pessoas não costumam saber sobre Jonestown é que não foi simplesmente todo mundo andando para a morte calmamente. Os primeiros não tinham certeza se era mesmo veneno —muitas vezes antes, nos últimos meses, Jones havia ordenado o mesmo ritual, como um teste de fidelidade, sem usar veneno. Havia seguranças armados garantindo que todos tomassem sua parte —e, de fato, os seis sobreviventes que conseguiram escapar afirmaram ter ouvido tiros. Jones em si se matou com um tiro de revólver na cabeça.

A seita gerou uma cena dantesca, num século repleto de cenas assim, de quase mil cadáveres espalhados no chão, se decompondo visivelmente no calor equatorial. Mas as mortes pararam ali. O bando de fanáticos irresponsáveis comandados por um presidente irresponsável não está só tomando o Ki-Suco, mas forçando, como os seguranças de Jonestown, os outros a tomar.

Possivelmente dando um baita empurrão na epidemia de Covid-19 que não fazemos ideia de qual tamanho já tem —como leva até duas semanas para se manifestar, milhares podem já estar contaminados. Não vai terminar bem.

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Tulipamania: a primeira bolha financeira, estourada por uma epidemia https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/09/tulipamania/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/09/tulipamania/#respond Mon, 09 Mar 2020 22:25:43 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/tulipamania-300x215.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=389 Era a flor do inimigo: a tulipa foi trazida à Europa do Império Otomano, pelo trabalho do embaixador Ogier Ghiselin de Busbecq (1522-1592), do Sacro-Império Romano-Germânico. Era a época do sultão Solimão, o Magnífico (1494-1566), que conquistou múltiplos territórios cristãos, quando os dois impérios se enfrentavam nas chamadas Guerras Italianas. Busbecq ficou encantado pelas cores extremamente vívidas da flor, e mais ainda por tê-la visto florescendo quase na metade do inverno, quando nenhuma outra flor se abria.

A tulipa se espalharia pelo continente e se tornaria um símbolo de status por toda a Europa. Adaptou-se bem às terras baixas da Holanda e se tornaria um grande negócio no país. Ao longo da década de 1630, a moda pegou. A demanda e o valor da planta começaram a subir vertiginosamente.

Isso é possível porque a tulipa é um “bem durável”: ela se propaga por bulbos, que parecem com cebolas. Esses bulbos podem ser preservados entre uma florada e outra, e as plantas vivem por muitos anos, levando cinco até começarem a dar flor. As mais raras e valiosas variedades de tulipa, que ganhavam nomes portentosos como Alexandre Magno e Almirante van der Eijck, eram as atingidas pelo vírus mosaico, benigno, mas que faz com que tenham mais de uma cor. Isso não pode ser reproduzido por sementes – o vírus só passa entre bulbos. Assim, uma tulipa rara não era algo fácil de copiar.

Em 1635, um lote de 40 bulbos de tulipa foi vendido por 100 mil florins – equivalente, pelo cálculo do Instituto Internacional de História Social, de Amsterdã, a € 1.115.000,00 (onze milhões e cento e quinze mil euros, equivalentes a R$ 6.032.150,00). Uma única Tulipa da variedade Vice-Rei podia comprar 5 casas em Amsterdam.

O auge da tulipamania, como seria conhecida a primeira bolha especulativa da história, foi entre 1636 e 1637. Pessoas que não tinham nada que ver com o negócio, como agricultores comuns, fabricantes de tecidos, chegando até a limpadores de chaminé, começaram a comprar tulipas para vender mais caro depois, confiando que os preços iriam continuar a subir indefinidamente. A Holanda até mesmo acabou inventando o mercado de futuros: as pessoas compravam as plantas no meio da estação, antes delas darem flor, apostando que valeriam muito mais ao desabrochar.

Até fevereiro de 1637. Em um dia, o mercado de tulipas em Haarlem simplesmente ficou vazio. Ninguém apareceu. Não havia nenhuma flor para vender tampouco: estavam então todas em forma de bulbo, esperando para florescer em maio ou junho. A cidade passava por um surto de peste bubônica, e não era uma atividade segura. Mas a falta de pregão foi o bastante para estourar a bolha: o mercado da tulipa entrou em colapso.  Ninguém mais queria pagar o que havia sido acordado, e juízes determinaram aos produtores aceitarem receber 1/10 dos valores, porque era tudo dinheiro de “apostas”. Do dia para a noite, as tulipas passaram a valer tanto quanto… flores.

Para saber mais: o mais clássico relato da Tulipamania foi composto pelo jornalista escocês Charles Mackey em 1841. Historiadores modernos tendem a duvidar de suas afirmações mais extravagantes, como pessoas se suicidando em massa nos canais de Amsterdã. O valor máximo atestado em documentos foi de “apenas” uma casa. E a Holanda não parece ter sido arruinada: o tema foi tratado jocosamente no país, em canções e pinturas na época (como a que ilustra a matéria), o que não é uma atitude muito adequada quando seu vizinho se matou. Também lembram que a tulipa, um item de luxo difícil de copiar, não era realmente um investimento tolo.

 

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São Valentim: por que, no resto do mundo, hoje é Dia dos Namorados https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/02/14/sao-valentim-dia-namorados/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/02/14/sao-valentim-dia-namorados/#respond Fri, 14 Feb 2020 21:44:16 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/valentino-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=380 Talvez você tenha visto num site do exterior, talvez alguma promoção por aqui: hoje, não 12 de junho, é o Dia dos Namorados do resto do mundo. Ou melhor: não é Dia dos Namorados; é dia de São Valentim. Dia celebrado não só nos States, mas em Cuba, Colômbia, Argentina, Portugal e Angola, para ficar em exemplos mais próximos.

São Valentim, enquanto santo, é um caso complicado. São na verdade dois santos em 14 de fevereiro: São Valentino de Roma, morto em 269, e São Valentino de Terni, em 273. Ambos são mártires cristãos da perseguição romana e, apesar de muitas lendas criadas posteriormente, depois da associação da data com namorados, não tem realmente nada que ver. A Igreja Católica tirou suas celebrações do calendário oficial em 1969, deixando-a para congregações locais. A justificativa é que não sabe nada realmente consistente sobre o(s) santo(s), exceto a data de sua morte.

A associação do misterioso santo que são dois surgiu com o (ou ao menos foi registrada pela primeira vez pelo) trovador medieval inglês Geoffrey Chaucer. Seu poema Parlamento das Aves (1382), incluiu os versos: “Pois assim foi no Dia de São Valentim/Quando toda ave ali vai escolher seu par” (capenga tradução minha).

Chaucer queria dizer o Dia de São Valentim marcava uma época romântica do ano, porque é quando as aves cantam e se reproduzem, e relacionou isso a casais humanos, num exemplo do ideal do amor cortês da literatura medieval. Mas isso não tem nada a ver com o santo, mas a época do ano. As explicações baseadas na vida do santo (da qual nada se sabe), ou um antigo feriado romano, são mitos criados depois dessa associação.

São Valentim virou o dia dos namorados nos países anglo-saxônicos, que herdaram a cultura de Chaucer, e só começou a estourar mesmo no século 19, quando surgiu a indústria de cartões de São Valentim, que movem o feriado nos EUA e Inglaterra até hoje. Os outros países pegaram por contágio cultural, como o Halloween – e o Brasil também pegou, mas é uma história curiosa.

O São Valentim foi importado pelo publicitário João Doria (João Agripino da Costa Doria Neto), pai do atual governador de São Paulo, João Doria Jr. Em 1949, ele recebeu uma encomenda da Exposição Clipper, uma loja de roupas no centro de São Paulo, para agitar as vendas na metade do ano, período até então meio morto nas vendas. Foi assim que o publicitário lançou a campanha para criar o São Valentim brasileiro.

Anúncio original do Dia dos Namorados
Anúncio original do Dia dos Namorados, 1949 (Reprodução)

Escolheu 12 de junho, um dia antes do dia de Santo Antônio, tido por casamenteiro, mas não o dia do santo em si, que é uma nada romântica festa junina. Sem cartões, mas presentes em geral. Apesar de a campanha dizer que “no mundo inteiro as criaturas se amam “, estamos sozinhos nessa: 12 de junho só tem a ver com namorados por aqui.

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Sedução dos Inocentes: a cruzada contra os quadrinhos dos anos 1950 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/09/07/frederick-wertham-cruzada-quadrinhos/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/09/07/frederick-wertham-cruzada-quadrinhos/#respond Sat, 07 Sep 2019 21:20:04 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/rainbowbatman-300x215.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=235 Mesmo quem não é muito ligado em quadrinhos talvez tenha ouvido falar na Era de Ouro (1938-1956) e na Era de Prata (1956-1970). A primeira é quando surgiram os grandes clássicos como Superman, Batman, Capitão Marvel (Shazam), Capitão América e Mulher Maravilha, e uma vasta produção em gêneros fora super-heróis, como crime, terror e ficção científica.A segunda, ainda que tenha rendido o Homem-Aranha, o Homem de Ferro e basicamente toda a gansa dos ovos de ouro da Marvel, é, vamos dizer assim… a era do quadrinho bobinho. Ingênuo, pra ser mais generoso. As histórias são extremamente infantilizadas e os vilões, inofensivos e caricatos ao ponto do ridículo. A (intencionalmente hilária) série de TV do Batman de 1966 retrata bem esse espírito (e demonstra que há o que se gostar nessa era).

O que nem todo mundo sabe é que há um nome por trás disso: Frederic Wertham, o psiquiatra que moveu, em nome das crianças, uma cruzada contra os quadrinhos. E venceu.

Frederic Wertham
Frederic Wertham e seu arquirrival (foto: US Library of Congress)

Wertham não era religioso nem particularmente conservador para sua época: até comprar essa briga, era famoso por atender de graça pacientes negros pobres em sua Clínica Lafargue, no Harlem, Nova York, que operou entre 1946 e 1958. Era uma época em que a maioria dos psiquiatras brancos sequer recebiam os negros e Wertham também se tornaria uma voz importante na era dos Direitos Civis, como autoridade científica contra a psiquiatria racista.

HERÓIS SÃO OS VILÕES

Mas ele tinha outras preocupações, e uma delas era a delinquência juvenil no pós-guerra – uma percepção comum, a “Juventude Transviada” encarnada por James Dean. E, nisso, acreditou achar seus culpados: Batman e Mulher Maravilha.

Em 1954, ele lançou o livro Seduction of the Innocent (“A Sedução dos Inocentes”, nunca chegou ao Brasil), um guia ilustrado de como quadrinhos eram brutais e pervertidos, e estavam destruindo a juventude. Incluía também testemunhos de delinquentes juvenis que (eureca!) gostavam de quadrinhos.

Foi uma sensação imediata e deu início a um movimento nacional contra os quadrinhos. No mesmo ano, Wertham seria convidado a falar ao Congresso americano, participando do Subcomitê Sobre a Delinquência Juvenil. Lá explicou sua teoria, mostrando imagens gráficas de violência – particularmente incomodado por um quadrinho mostrando alguém prestes ter seu olho furado – e também “demonstrando”, entre outras coisas, que Batman e Robin eram um casal gay e a Mulher Maravilha, por sua independência e força, só podia ser lésbica.

Batman 1952
Batman e Robin em quadrinho pré-código, de 1952 (Reprodução)

Estava em jogo mais que preconceito. Wertham falava enquanto um psiquiatra, no tempo em que a homossexualidade era classificada como doença mental. Estava dizendo aos pais que quadrinhos deixavam seus filhos “doentes”.

O Congresso e os pais compraram a versão de Wertham e, sob ameaça não muito velada de leis de censura, as próprias editoras se moveram para criar a autocensura: o Comics Code. Um selinho dado pela Comics Code Authority, um comitê de censores que determinava se uma revista estava de acordo com as regras. Dizia, entre outras coisas:

  1. Não se pode demonstrar simpatia pelo criminoso nem promover desconfiança das autoridades;
  2. Policiais, juízes e oficiais do governo não podem ser retratados de forma negativa;
  3. O bem sempre deve triunfar sobre o mal
  4. Violência deve ser limitada;
  5. Nenhum título pode usar as palavras “horror” e “terror”;
  6. Zumbis, tortura, vampiros e lobisomens são proibidos;
  7. Nudez de qualquer forma é proibida;
  8. Relações sexuais ilícitas não podem ser mostradas ou sugeridas;
  9. Perversões e “anomalias sexuais” são proibidas;
  10. Profanidade, obscenidade, vulgaridade e linguajar chulo é inaceitável;
  11. Figuras não podem ser vestidas de forma ofensiva ou contrária ao bom gosto e à moral.

Na prática, os censores da CCA faziam o que queriam. Num caso que terminou na justiça, exigiram dos autores da ficção científica Judgment Day (1956) mudarem seu protagonista, um astronauta negro, para branco, como condição para a aprovação.

Não havia nenhuma lei exigindo o selo da CCA, mas a maioria dos distribuidores só aceitava vender quadrinhos com ele. Servindo, assim, como a “polícia” a impor o código. Várias editoras, especializadas em estilos impossíveis de adaptar, como terror ou crime, fecharam. Das grandes, só as que distribuíam quadrinhos da Disney – uma “autoridade” maior ainda – não se importaram com o selo.

Mas a cultura deu suas voltas. No anos 1960, não usar o selinho se tornou motivo de orgulho para os produtores das underground comix (“kuadrinhos underground”), cena da qual emergiriam, entre outros, Robert Crumb e Trina Robins, que seria a primeira mulher a desenhar a Mulher Maravilha. A produção underground era baseada em editoras nanicas ou paga do próprio bolso.

Diante do claro mercado para quadrinhos adultos, as editoras pressionaram e, em 1971, o código foi bastante relaxado, permitindo, entre outras coisas, retratar policiais corruptos (desde que não fosse a regra), mostrar bandidos de forma simpática, e retratar monstros de terror. A partir daí, as brigas da CCA se focaram na ilustração do consumo de drogas.

Aos poucos, o selo foi caducando, perdendo sua importância. Com um público adulto crescente, os distribuidores deixaram de exigi-lo. A Marvel abandonou em 2001 e a DC, em 2011, quando a CCA foi fechada de vez.

Quanto a Wertham, tentou uma cruzada contra a TV, mas essa não colou. Algo ironicamente, em 1973, se encantou pelas fanzines – que podem ser a casa de quadrinhos bem extremos. Escreveu The World of Fanzines: A Special Form of Communication (“O Mundo das Fanzines: Uma Forma Especial de Comunicação”) . Chegou a ser convocado para convenções de quadrinhos, mas, por motivos óbvios, não foi recebido de forma exatamente calorosa. Morreria em 1981, aos 86 anos.

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Corda bamba a 410 metros: há 45 anos, artista invadia o WTC e dava um espetáculo entre as torres gêmeas https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/07/wtc-corda-bamba-philippe-petit/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/07/wtc-corda-bamba-philippe-petit/#respond Wed, 07 Aug 2019 08:00:15 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/maxresdefault-1-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=134 Aos seus 18 anos, o francês Philippe Petit sentiu algo que mudaria sua vida. Dor de dente. Sentado na sala de espera do dentista, pegou uma revista e leu uma matéria ilustrada sobre a construção do World Trade Center, em Nova York, conjunto que finalmente superaria o recorde de altura do Empire States, de 1931, como o então maior prédio do mundo. Prédios, aliás: não seriam uma, mas duas torres. E nisso estava uma oportunidade.

Petit é filho de um aviador e escritor, nascido na pequena Nemours, vila a 83 km de Paris, famosa por seu castelo medieval. Ainda criança, se interessou por artes circenses e começou a aprender sozinho. Aos 16 anos, depois de aprender mágica e malabarismo, passou a estudar a corda bamba. Segundo ele mesmo, em um ano havia aprendido tudo – mortal para frente e para trás, subir com bicicleta e monociclo, se equilibrar numa cadeira na corda. E ficou entendiado. “[Pensei:]’O que tem de mais nisso? Parece quase feio'”, falaria depois à revista The New Yorker. “Então passei a descartar esses truques e reinventar minha arte.”

O artista seria apresentado ao mundo em 1971, quando, sem autorização, suspendeu um cabo entre as duas torres da Catedral de Notre Dame, a 68 m do solo, e fez um espetáculo com malabares ao público parisiense. Em 1973, repetiria a façanha entre os pilares da Ponte da Baía de Sydney (Austrália).

Era tudo só um ensaio para o que chamaria de Le Coup (“o golpe”): desde 1968, lia tudo o que podia sobre as torres gêmeas enquanto a construção ia sendo erguida, dominando a skyline de Nova York. Chegou a contratar um helicóptero para tirar fotos de sua cobertura. Por meses, ele e seus parceiros passaram a estudar o lugar se passando por funcionários da obra, com identidades falsas e uniformes cuidadosamente recriados – apesar da inauguração oficial do WTC em abril de 1973, ainda havia obras em progresso no topo. O dinheiro para a empreita vinha do famoso malabarista Francis Brunn, do Ringling Brothers Circus, que havia se apresentado duas vezes ao presidente dos EUA.

Na noite do dia 6 de agosto de 1974, terça-feira, a equipe de Petit teve a sorte de conseguir pegar um elevador de serviço e no lugar de levar o equipamento por 110 andares de escadas, dividindo-se entre as duas torres. Com arco e flecha, passaram um cabo-guia para os parceiros na outra torre e, com ele, puxaram o cabo principal de aço, de 204 kg, além de diversos cabos secundários de estabilização.

E, assim, às 7h da manhã do dia 7, o artista pegou sua vara de equilibrista construída só para a ocasião, com 8 metros e pesando 25 kg e se lançou no vazio entre as torres. Quem levantasse a cabeça 410 metros abaixo, contra o o céu cinzento daquela manhã nublada, podia ver o homenzinho caminhando, se ajoelhando na corda, fazendo truques. Logo uma multidão se juntou olhando para cima, aplaudindo, gritando de medo e excitação – e, lá de cima, segundo relatou, ele pôde ouvir. Quando a polícia chegou, se postou nas duas pontas da corda, em cada torre – Naturalmente, subir na corda não era uma opção. Petit fez graça, indo até a ponta, como se fosse desistir, e voltando ao meio. Depois de 45 minutos, 8 travessias completas, a chuva começou a cair. E, enfim, o artista deu seu espetáculo por encerrado, se entregando aos policiais. No solo, afirmou aos jornalistas: “Se eu vejo três laranjas, faço malabares. Se vejo duas torres, eu ando”.

Sua passagem pela polícia seria breve. Philippe Petit havia se tornado uma celebridade mundial instantânea. O procurador do distrito propôs cancelar as acusações por invasão de propriedade e risco à segurança pública em troca de uma apresentação para as crianças no Central Park. E assim seria feito, um passeio bem mais modesto e seguro sobre a Turtle Pond, uma lagoinha do parque, perto do Belvedere Castle. O artista acabaria por se mudar para Nova York, onde vive até hoje.

Seria um bom negócio para o WTC. As solene e cinzenta arquitetura das torres gêmeas não agradava ao público, e ainda havia muitas unidades encalhadas. Depois disso, as torres foram aceitas como cartão-postal de Nova York, e permaneceriam assim até seu trágico fim, em 11 de setembro de 2001.

Quanto a Petit, nunca superaria a façanha de seus 25 anos, mas, prestes a fazer 70, continua na ativa. Segundo matéria do site France 24, ele está negociando repetir o passeio das torres de Notre-Dame, como parte do esforço de reconstrução depois do incêndio deste ano. “Acho que estou mais em posse de meu talento como equilibrista de corda bamba hoje aos 70 de que quando era um rapazinho”, afirma. “Não tenho mais nada a provar.”

A aventura de Petit rendeu dois filmes: o documentário O Equilibrista, de 2008, e a dramatização biográfica A Travessia, de 2015.

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Quando os filmes fotográficos eram racistas https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/07/14/quando-os-filmes-fotograficos-eram-racistas/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/07/14/quando-os-filmes-fotograficos-eram-racistas/#respond Sun, 14 Jul 2019 05:00:50 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/07/img_4371-150x150.jpg http://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=18 Entre 1977 e 1978, o cineasta francês Jean-Luc Godard, um dos pais da nouvelle vague, foi convidado pelo governo marxista de Samora Machel a trabalhar no Moçambique. Sua missão era ajudar na comunicação visual do novo regime, principalmente televisão. Como parte de seu trabalho, tinha que filmar curtas.

Não deu em nada. O cineasta recusou-se a usar o filme que estava disponível. Disse que era “racista”.

Godard havia notado que, ao filmar ou fotografar pessoas negras com filmes coloridos Kodak, a pele surgia escurecida ao ponto de mal dar para identificar os traços da expressão, enquanto os dentes e o branco dos olhos saltavam à vista, por contraste. Era como se o filme estivesse enxergando-as como um estereótipo do vaudeville americano, de blackface.

Foto colorida no Zambia, 1974
Foto colorida tirada no Zâmbia, 1974 (Foto: Walt Jabsco/Flickr/CC)

O problema era mais notável nos filmes da americana Kodak que nos da japonesa Fuji, com quem formava um duopólio, e tinha uma tecnologia de cores diferente.

Mas, afinal, estariam os fabricantes pregando uma peça racista? Fotografia colorida não é um processo simples. É preciso reconstruir uma imagem com todas as cores da natureza em apenas três delas: ciano, magenta, amarelo. Qualquer desequilíbrio na proporção pode levar a tons alienígenas: gente verde, púrpura, amarela. Assim, as indústrias tinham que calibrar seus próprios filmes para algo que favorecesse o (que viam como seu) consumidor – e, dentro disso, ser fiel ao seu tom de pele, retratar bem a pessoa, era mais importante que as demais cores. Para acertar essas cores na revelação, proviam aos estúdios cartões de referência – as “Shirleys”, que permitiam comparar a pele como na revelação com o que era “normal”. Literalmente podia estar escrito “normal”. E basta ver uma Shirley para entender o problema:

Imagem de uma Shirley Card da Kodak 1974
Shirley Card da Kodak de 1974 (Foto: Kodak/Reprodução/via Hermann Zschiegner)

O nome vem de Shirley Page, a primeira modelo nesses cartões, e continuou até pararem de ser produzidos. Invariavelmente, as Shirleys eram da cor que que os lápis de cor e os band-aids chamavam de “tom de pele”. E, calibradas para esse tom, os filmes podiam passar longe quando não estavam lidando com o “normal”.

Ainda nos anos 1970, os filmes da Kodak começam a melhorar. Se você olhar as fotos de pessoas negras, elas progressivamente vão se tornando mais fiéis. A pesquisadora de comunicação Lorna Roth, da Université Concordia, Montreal (Canadá), descobriu o porquê: os executivos da empresa receberam reclamações de agências de publicidade. Os filmes estavam causando problemas para retratar… chocolate e móveis.

A Kodak eventualmente lançaria uma Shirley multirracial em 1995, com uma mulher branca, uma negra e uma leste-asiática. Já era quase sem efeito: as câmeras digitais começavam a tomar o espaço dos velhos filmes físicos, e elas podem calibrar a cor antes da captura e oferecer correção digital depois.

Shirley Card Multiracial da Kodak 1994
Shirley Card multiracial da Kodak, 1994 (Kodak/Reprodução)

Mas o problema renasceu. No século 21, a tecnologia do reconhecimento facial falha em entender que nem todo mundo é branco. Em 2015, o Google teve que pedir desculpas por seu sistema de identificação de fotos ter chamado um grupo de jovens negras sorrindo de “gorilas”. Mesmo após denúncias, o problema persiste. Ano passado, um estudo da pesquisadora Joy Buolamwini, do Laboratório de Mídia do MIT mostrou que aplicativos de reconhecimento facial funcionam 99% em casos de homens brancos. E 35% em mulheres negras mais escuras –quanto mais escura a pele, maior a taxa de erro.

Isto é, assim como os filmes, estamos treinando computadores para entender o “normal” e ignorar o “anormal”. E isso é um problema sério quando programas de reconhecimento facial estão se tornando acessórios da polícia.

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