Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Em histórias de santos medievais, Deus fazia aborto https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/hagiografia-milagre-aborto-irlanda-medieval/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/hagiografia-milagre-aborto-irlanda-medieval/#respond Sun, 23 Aug 2020 10:00:58 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/brigida-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=594 Há uma semana, dia 16 de agosto, um grupo de manifestantes religiosos tentou invadir um hospital para impedir o aborto legal de uma menina de 10 anos, interrompendo a gravidez fruto de repetido estupro por um tio. O caso gerou repulsa profunda entre quem não compartilha a visão dos manifestantes – que vem a ser a maioria dos brasileiros. E levou a uma declaração do presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Walmor Oliveira Azedo. Disse que o aborto legal foi um “crime hediondo”.

A Igreja defende que sua posição é consistente com leis imutáveis do próprio Deus. Mas ou as leis mudaram, ou foi Deus. Porque, no passado, católicos chegaram a acreditar que Deus em pessoa provocava abortos. E não de castigo, mas como uma dádiva, um milagre.

Está em biografias (hagiografias) de quatro santos, todos da Irlanda. São eles: Santa Brígida de Kildare (451-525), São Ciarán de Saighir (?-530), Santo Áed mac Bricc (?-589) e São Cainnech de Aghaboe (515-600). A cada um deles, foi atribuído um aborto milagroso, uma intervenção divina que acabou com uma gravidez indesejada.

Aéd visitou um convento e notou que a barriga de uma freira “crescia sem comida”. A freira confessou ter caído em tentação e “Santo Aéd abençoou seu útero e subitamente o infante no útero desapareceu como se não existisse”.

Cainnech ouviu a confissão de fornicação de uma freira, que pediu para abençoar seu útero. Ele assim o fez e “de uma vez o infante no útero sumiu sem qualquer traço”.

Santa Brígida é padroeira das parteiras, dos recém-nascidos e da própria Irlanda (com São Patrício e São Columba). A ela são atribuídos vários milagres relacionados à gravidez. E um aborto. Novamente, de uma freira que havia ficado grávida num momento de fraqueza. “Brígida, exercendo a maior força de sua inefável fé, a abençoou, causando o feto a desaparecer sem nascer, e sem dor”. A freira assim abençoada termina por agradecer a Deus.

O relato mais detalhado, antigo e explícito é o de São Ciarán, escrito no século 7. Aparece na coletânea Vitae Sanctorum Hiberniae (“Vida dos Santos da Hibérnia”, isto é, Irlanda). Uma princesa virgem chamada Bruinnech decide se tornar freira, sob a proteção do santo, em seu mosteiro. Um rei, Dímma, tomado por desejo pecaminoso, rapta e estupra a jovem. Segue o relato: “Ciáran, desprezando a enormidade de tamanho crime, e desejando aplicar uma cura, foi até a casa do sacrilégio para trazer a garota de lá. O homem de Deus retornou ao monastério com a garota e ela confessou que estava grávida. Então o homem de Deus, guiado pelo zelo da justiça, não querendo que a semente da serpente crescesse, apertou sobre seu útero com o símbolo da cruz e forçou seu útero a se esvaziar”.

MILAGRES ESQUECIDOS

Estamos falando de histórias realmente esquecidas pelo tempo. Com exceção desta última, a de Ciáran, todos os abortos milagrosos foram suprimidos de hagiografias posteriores dos santos. “Eu diria que essas são histórias católicas obscuras”, afirma a historiadora da religião Maeve Callan, da Simpson College (EUA), autora do artigo Of Vanishing Fetuses and Maidens Made-Again: Abortion, Restored Virginity, and Similar Scenarios in Medieval Irish Hagiography and Penitentials (“Sobre Fetos Desaparecidos e Donzelas Refeitas: Aborto, Virgindade Restaurada, e Cenários Similares na Hagiografia e Penitências Medievais Irlandesas”; as traduções acima derivam de suas versões em inglês para o latim original). “Tão obscuras que a maioria dos católicos – provavelmente quase todos – não conhece.”

Não é porque algo está numa hagiografia que aconteceu, é óbvio. Pouca gente acredita que São Jorge enfrentou um literal dragão. Mas isso torna essas histórias ainda mais importantes, na verdade. “Hagiografia, falando estritamente, não é história”, afirma Maeve. “Seu objetivo não é registrar uma biografia objetiva do santo, mas apresentá-lo numa forma idealizada, um ser humano tão transformado pela graça de Deus que ele ou ela pode atingir façanhas nunca vistas.”

O que os santos aborteiros da Irlanda demonstram, que não é regional nem limitado ao começo da Idade Média, é que a Igreja já acolheu um pensamento muito diferente a respeito do aborto. “Se procurarmos ver o que diz a tradição católica sobre este tema, também encontraremos muitas contradições”, afirma a assistente social e mestra e doutora em ciências da religião Regina S. Jurkewicz, do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, em seu artigo A Defesa da Vida no Pensamento Católico. “Por exemplo, São Tomás de Aquino (1225-1274) admitia um desenvolvimento progressivo do embrião, através de etapas sucessivas. Para ele, a alma só pode estar presente em uma matéria capaz de recebê-la, e o óvulo fertilizado ou o embrião não podem ter uma alma humana porque não estão prontos para isso.”

Aquino e outros pesos-pesados da Igreja como Santo Agostinho (354-340) consideravam o aborto um pecado muito sério, mas defendiam que o embrião só se tornava humano bem depois da concepção. Portanto, aborto nesse estágio não era equivalente a assassinato. Aquino datava o momento em que isso mudava de figura, a hora da entrada da alma, ou “hominização”, em 40 dias para meninos, 90 para meninas.

Isso não era um consenso universal: outros teólogos, como João Crisótomo (347-407), não faziam distinção de tempo. A discussão se estendeu pelos séculos, mas o lado de Aquino predominou. A outra ala venceu em 1588, quando o papa Sisto 5emitiu uma bula excomungando todos os que se envolveram em aborto, independente do tempo de gravidez. Mas a ordem seria revertida três anos depois, por Gregório 14, que determinou que a hominização acontecia na 16a semana desde a concepção, período em que a maioria das grávidas percebe o feto se movendo, “chutando”. Isso restabeleceu a distinção entre dois tipos de aborto, que duraria até 1869.

A Igreja sempre condenou o aborto, não há dúvida. Mas de duas formas diferentes. Uma é a de um pecado de fornicação: um ato sexual que, prega o catolicismo, só devia acontecer por razões reprodutivas. O pecado aqui é tentar se escapar das consequências naturais – um “ato contra a natureza”, como sexo oral, com camisinha, pílula etc. Algo muito diferente é um pecado de homicídio. Para esse crime, é preciso acreditar que um óvulo fecundado é equivalente a uma pessoa adulta, como a Igreja defende hoje.

Essa distinção perdida ajuda a entender os milagres de aborto medievais. Nessas histórias, Deus não estava matando inocentes, mas livrando das consequências do pecado, num gesto de misericórdia que restaurava a honra das freiras. “Acredito que há uma forte conexão com essa distinção”, afirma Maeve. “Algumas penitências medievais indicam uma consciência similar de graus de severidade – no começo da gravidez sendo mais permissível, exigindo menos penitência.”

E relato de São Ciáran é particularmente significativo. “O estupro que causou a gravidez foi reconhecido como violência, mas o aborto foi mais como fazer sumir com o feto e os efeitos da gravidez, e restaurar o corpo a seu estado pré-gravidez – desfazer uma violência no lugar de perpetrá-la”, afirma a historiadora.

Por que essa postura mudou? Não sem alguma ironia ao olhar contemporâneo, pela ciência. Com a compreensão da fecundação humana e o desenvolvimento embriônico, a partir da década de 1830, foi posta em dúvida a ideia de que a alma entrava apenas quando o feto começa a chutar. Em 1869, o papa Pio 9o excomungou novamente todos os envolvidos em aborto, mudando o entendimento para o atual, de que todo aborto é o assassinato de um inocente. Está no cânon 1.398, no Código de Direito Canônico, que afirma:

Quem provoca aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae [i.e., automática].

Seguindo essa regra, em 2009, num caso semelhante ao atual, envolvendo uma menina de 9 anos grávida de gêmeos, levou o então arcebispo (hoje emérito) de Olinda e Recife, José Cardoso Sobrinho, a declarar que a mãe e os médicos estavam automaticamente excomungados, gerando um escândalo que mobilizou até o então presidente Lula. Diante da reação negativa, a CNBB se moveu para afirmar que a mãe, por ter atendido à pressão e ao medo de perder a própria filha, não estaria excomungada, baseando-se em outra lei, o cânon 1.324, que prevê exceções para a excomunhão.

Nessa explicação, porém, não entrava nem o fato de ser estupro nem de ser contra criança. Não existe essa exceção. Aborto, para a Igreja Católica, não pode ser feito nem para salvar a mãe. A única possibilidade em que é permitido é se o bebê ser perdido faz parte de outro procedimento, como a remoção de um câncer, no qual a intenção não é tirar o feto. A absolvição que o papa Francisco deu, em 2015, para todas as pessoas envolvidas em aborto, foi o indulto por um crime. Que, para a Igreja, continua a ser crime.

OS DISSIDENTES

Mas o que pensam os católicos contemporâneos que discordam? Conversei com a teóloga Isabel Aparecida Felix, integrante do grupo Católicas pelo Direito de Decidir e doutora em ciências da religião. “Para nós, mais do que olhar para essa questão do aborto como uma questão religiosa, é olhar como uma questão de saúde pública, que a igreja não olha, como uma questão da dignidade das mulheres, e como uma questão do direito da autonomia, a autodeterminação das mulheres”, afirma.

As Católicas Pelo Direito de Decidir defendem que a mesma ciência usada pela hierarquia católica para justificar sua postura inflexível na verdade está de seu lado, com estava do lado dos teólogos medievais e dos hagiógrafos irlandeses. “Não há possibilidade de consciência sem vida cerebral”, afirma Dra. Regina Jurkewicz. “A célula geradora do córtex cerebral inicia seu desenvolvimento no 15º dia após a concepção e somente em torno da 8ª semana está suficientemente desenvolvido para que se possa detectar a atividade cerebral. O córtex cerebral é uma condição indispensável para que haja consciência humana, portanto para que haja uma pessoa.”

Segundo Isabel Felix, há uma falta de foco em outra parte da teologia católica. Ela cita a própria Declaração Sobre o Aborto Provocado, da Congregação Pela Doutrina da Fé (a versão atual da Inquisição). No artigo 9, afirma-se:

“Nunca se pode tratar um homem como simples meio de que porventura se dispusesse para alcançar um fim mais elevado”.

“O código é bem machista e patriarcal, e fala do ‘homem’, mas a gente interpreta como o direito à autonomia do ser humano”, comenta. “Ao mesmo tempo em que a igreja diz não olhar para as pessoas como objeto, mas como sujeitos de decisão, há uma incoerência: a questão das autonomia das mulheres para com o próprio corpo, com a sexualidade, não conta para a Igreja.” A teóloga diz que, ainda que haja uma vasta teologia feminista, que favorece essa autonomia, ela não tem penetração numa Igreja exclusivamente masculina em suas estruturas de decisão.

Se alguém discorda frontalmente dessa organização impenetrável, por que continuar a ser católico? Perguntei isso a Isabel, que respondeu: “Dentro da tradição católica, existem valores que nós acreditamos, da justiça da compaixão da dignidade. Por que continuamos? Por que não permitimos que eles, que a Igreja como instituição, defina o que é catolicismo para nós. Para eles, a igreja é a hierarquia. Para nós, é a comunidade.”

Tentei falar com a hierarquia, aliás. Levei a questão das mudanças no pensamento católico e a história dos santos irlandeses à CNBB. A assessoria de imprensa recebeu minhas perguntas e afirmou tê-las encaminhado a um bispo especialista em bioética. A reposta, infelizmente, não chegou no prazo combinado, a tempo da publicação. 

Ficamos, assim, com as palavras de seu presidente. Estupro de criança e interrupção legal da gravidez, numa menina estuprada de 10 anos: “Dois crimes hediondos”.

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Dançarinos de funeral são parte de uma tradição ameaçada https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/05/dancarinos-funeral-gana/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/05/dancarinos-funeral-gana/#respond Sun, 05 Apr 2020 14:44:38 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/meme.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=442 O meme do momento no Brasil e no mundo é a “dança do caixão”. Um grupo exibe seu inegável talento carregando um caixão sob um ritmo eletrônico (Astronomia 2K19 de Stephan F.) e… bom, só dá pra entender vendo:

Primeiro, o que você está vendo: o vídeo é composto por duas matérias, uma da Associated Press e outra da BBC, ambas de 2017. Falam sobre uma “nova tendência” em funerais do Gana, criada pelo agente funerário Benjamin Aidoo. À BBC, ele explica por que decidiu adicionar coreografias em uniforme a seus serviços e diz perguntar a seus clientes se “você quer que seja solene ou você quer um pouco mais de espetáculo?”. A cliente que contratou a dança diz: “Decidi dar a minha mãe uma viagem dançante para o criador”. A música que estão dançando, tocada pela fanfarra que também é parte do serviço, é jazz africano. Pode ser conferida no original:

Segundo, por que você está vendo. A África tem tantas tradições funerárias quanto povos. Entre elas, há os enterros festivos, celebrando a vida, não a morte. Particularmente notórios na África Ocidental, entre populações cristãs e politeístas de Gana e Nigéria – muçulmanos fazem funerais discretos. A despedida vem na forma de grande evento social. Um funeral nesses países, envolvendo música, dança, banquetes, bebida, pode ser mais caro que um casamento, com ricos exibindo sua opulência e pobres, acabando com suas economias. É marcado para o sábado, de forma que os convidados possam chegar e as preparações serem feitas. Durante a semana, o corpo espera no necrotério.

Funerais felizes geralmente se reservam a pessoas mais velhas, que tiveram uma vida realizada e uma “boa morte”. Mortes trágicas e antes do tempo contam com eventos discretos, indicados por uma cruz no caixão e uso de vermelho e preto, as cores do luto doloroso. Funerais festivos usam branco e preto. Às vezes, é os dois ao mesmo tempo: os parentes próximos sofrem e vestem vermelho e preto, os outros festejam. Alguns no próprio país condenam o que enxergam como desperdício.

Antes da dança viralizar, Gana já tinha fama por seus caixões “fantasia”, representando alguma coisa importante ou simbólica para a pessoa falecida, como carros, celulares, garrafas de Coca-Cola.

Caixão de Leão
Leão, com uma Mercedez atrás, em fábrica de caixões em Gana (foto: Emilio Labrador/Flickr/CC)

A tradição da festa na despedida foi levada da África Ocidental pelos escravos. Pode ser vista nos funerais jazz de Nova Orleãs e as cerimônias do vodu haitiano.

Mas hoje, é só tristeza: Gana está sofrendo por sua ausência. Durante a crise do Covid-19, eles foram banidos e a colorida indústria funerária do país está parada.

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Eyam: a vila que se sacrificou pela quarentena, e salvou milhares https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/28/eyam-a-cidade-que-se-sacrificou-pela-quarentena-e-salvou-milhares/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/28/eyam-a-cidade-que-se-sacrificou-pela-quarentena-e-salvou-milhares/#respond Sat, 28 Mar 2020 18:24:57 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/eyam.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=417 O conceito de quarentena surgiu durante a Grande Peste de 1348. Em Veneza, navios que chegavam à cidade eram obrigados a parar numa ilha próxima à cidade, hoje chamada Lazaretto Vecchio, por 40 dias antes de poder descarregar. Lá, ainda hoje arqueólogos topam com valas coletivas.

A peste bubônica continuaria a castigar a humanidade muito depois da pandemia medieval que removeu até um terço da população da Europa. Surtos continuaram a ocorrer até a criação da medicina científica no final do século 19.

Um deles seria o de Londres em 1665, que mataria até 100 mil pessoas, ou um quarto da população do lugar que disputava com Paris o título de maior cidade do mundo cristão. Foi em setembro desse ano que o alfaiate da pequena vila de Eyam – então com, estima-se, 800 habitantes e ainda hoje com menos de 1000 – recebeu um carregamento de tecidos da capital. Neles, pulgas contaminadas. Em seis semanas, as 29 primeiras vítimas haviam perecido.

O surto pareceu arrefecer ao fim do ano, com a chegada do inverno e, em maio de 1666, não havia mais nenhum caso. Foi quando a doença renasceu na forma pneumônica, mais fácil de passar. E, diante disso, houve uma troca de liderança. O reitor – o equivalente a padre na Igreja Anglicana, que não usa o título protestante de “pastor” – William Mompesson tomou o lugar do puritano Thomas Stanley como líder da cidade, com a promessa de tomar medidas enérgicas. E tomou. O religioso devisou um plano tanto radical quanto altruísta: Eyam entraria em quarentena voluntária e absoluta. A cidade ficava numa rota comercial importante entre Sheffield e Manchester, e poderia arrasar os dois centros urbanos.

Um círculo de pedras foi estabelecido a uma milha (1.609 m) do centro da cidade. Ninguém entrava nem saía. Os habitantes sobreviviam de comprar alimentos na borda do círculo, pagando com moedas embebidas em vinagre, o que acreditavam poder desinfetá-las.

Rapidamente, a pequena vila se tornou um cenário desolador. As pessoas tiveram que enterrar seus próprios entes queridos. Elizabeth Hancock, uma das moradoras da cidade, teve que, em oito dias, enterrar seus seis filhos e o marido. O reverendo Mompesson determinou que os cultos passassem a ser celebrados ao ar livre, e muitos dos sobreviventes foram os que se isolaram em choças longe do centro da vila. Em uma carta, o líder descreveu a situação: “Meus ouvidos nunca escutaram tamanha e tão dolorosa lamentação. Meu nariz nunca percebeu cheiros tão horrendos, e meus olhos nunca contemplaram espetáculos tão tétricos. Era o Gólgota, um lugar de caveiras”.

Sob a enérgica liderança de Mompesson, que sobreviveria, mas perderia a esposa, a quarentena iria até o fim. Os números são discutidos ainda hoje entre historiadores: Eyam pode ter perdido 260 mortos de uma população de 350, ou 370 de 800, ou 273 (o número oficial registrado na paróquia) de 800. Seja como for, em seu sacrifício abnegado, correto e visto como muito cristão, a vila evitou que qualquer cidade próxima fosse contaminada, e que o surto no país fosse pior, talvez salvando centenas de milhares. Ainda hoje, todo primeiro domingo de agosto, o sacrifício é relembrado na paróquia da vila. Na cultura britânica, o martírio de Eyam foi celebrado em verso, prosa, teatro, música e até óperas.

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Irã vem dos arianos: 5 fatos pouco lembrados sobre o país https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/09/ira-arianos-5-fatos/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/09/ira-arianos-5-fatos/#respond Thu, 09 Jan 2020 20:50:30 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/azadi-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=336 Com as tensões crescentes entre EUA e Irã, é uma boa hora para desbaratar mitos e trazer um pouco mais do país. Estes são 5 fatos pouco conhecidos ou mal-interpretados sobre o Irã, que pouco tem pouco a ver com a teocracia radical instalada em 1979.

1. O IRÃ É A PÉRSIA, MAS NEM TODO IRANIANO É PERSA

O Irã era chamado de Pérsia até 1934, e fica na mesma região do centro do império que quase conquistou a Grécia na Antiguidade. Iranianos não tem nada a ver com árabes. Sua língua principal, o persa, é uma língua da família indo-européia, mais próxima ao português que ao árabe, escrita numa versão modificada do alfabeto árabe. Todos vivem na ex-Pérsia, mas os iranianos não são simplesmente persas. Persas são a etnia majoritária do Irã, por volta de 60% da população, e maioria em grandes centros como Teerã. Mas há azeris, curdos, turcomenos e, sim, árabes (2%), entre outros.

2. IRÃ VEM DE “ARIANO”

Irã não é um nome religioso e não tem nenhuma relação com o Islã. Quase ao contrário, parte do nacionalismo persa, que competiu com a religião até a revolução de 1979, e ainda é anima grupos no exílio. Em 1934, o monarca Reza Shah Pahlavi pediu ao mundo que parasse de usar “Pérsia” e passasse a se referir ao país da forma como os persas faziam: Iran. A palavra vem do antigo persa airya: arianos, povos que conquistaram ou colonizaram uma vasta região que incluía o Irã e o norte da Índia, por volta do 2º  milênio a.C. No sentido usado por historiadores, arianos são ancestrais dos (ou ao menos levaram sua língua aos) persas, curdos, pashtuns do Afeganistão e outros, e nada que ver com pintores austríacos.

3. EXISTIRAM NEONAZISTAS NO  IRÃ

A teoria racial nazista identificava os arianos com os indo-europeus em geral, que saíram do Cáucaso e chegaram também à Europa, dos quais os arianos eram só uma leva. Diziam que só nos países nórdicos os arianos se mantiveram “puros”, enquanto no próprio Cáucaso se misturaram e “degeneraram”, o que explica povos como armenos, georgianos e iranianos não serem loiros e de olhos azuis. Isso não tem a mínima base na realidade. Mas alguns persas de extrema direita aproveitaram a deixa: no século 20, houve no Irã um movimento neonazista, supremacista persa. A mais famosa organização neonazista do Irã foi o SUMKA, Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Iranianos, num plágio direto de Hitler, e usando uma versão modificada da suástica como símbolo.

4. PERSAS DOMINAVAM NA MONARQUIA

A monarquia Pahlavi, derrubada na Revolução Iraniana de 1979, era persa e tentava impor uma identidade persa ao país inteiro. Inclusive foi acusada de financiar o SUMKA. O monarca deposto em 1979, xá Reza Pahlavi, formalmente islâmico xiita, privilegiou a religião zoroastrista, a original do Império Persa, de antes da conquista islâmica do século 7. Livros didáticos lembravam as glórias de Xerxes e Dario como uma era de ouro. Enquanto os persas urbanos iam de sunga e biquíni à praia, e, à noite, dançavam nas discotecas – o que é visível em muitas fotos pré-revolução –, as populações do interior, de minorias étnicas, eram conservadoras e religiosas. Essa foi uma das tensões menos faladas que levou ao fim da monarquia e à instalação da teocracia, que busca trocar a identidade persa pela islâmica. Ainda hoje, muitos exilados do regime e descendentes preferem ser chamados de persas.

5. RADICAIS SUNITAS DESTROEM MONUMENTOS; RADICAIS XIITAS PREZAM POR ELES

O Irã é xiita e isso é crucial em seu papel geopolítico, influenciando principalmente xiitas iraquianos, sírios, libaneses. O Islã se dividiu em xiismo e o sunismo no século 7, numa briga pela sucessão de Maomé. Desde então, desenvolveram teologias diferentes. Historicamente, sunitas consideraram imagens e estátuas de humanos e animais uma forma de idolatria. Xiitas são bem mais tolerantes nesse quesito. A arte islâmica figurativa histórica, que inclui representações de Maomé é quase toda feita por xiitas. Iranianos desfilam com reproduções de pinturas em protestos religiosos. O wahhabismo, a interpretação radical sunita vinda da Arábia Saudita e oficial no país, inspira terroristas sunitas como os da Al Qaeda e o Estado Islâmico (Daesh). Nessa versão ultraconservadora do Islã, não só imagens, como monumentos históricos podem ser considerados idolatria. O que explica o vandalismo de terroristas sunitas na Síria e Afeganistão, mas também o menos falado do regime saudita. A monarquia saudita já botou abaixo múltiplas construções históricas islâmicas, como a tumba da esposa de Maomé, Kadijah, e o cemitério Al-Baqi, em Medina, que tinha várias tumbas de amigos e parentes de Maomé. Xiitas, radicais ou não, prezam por seus monumentos – e o Irã tem muitos. Isso dá um sentido mais grave à fala de Trump ameaçando destruí-los.

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Maná de São Nicolau: líquido dos ossos de Papai Noel é tido por remédio milagroso https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/12/23/mana-de-sao-nicolau/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/12/23/mana-de-sao-nicolau/#respond Mon, 23 Dec 2019 23:55:22 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/12/suco-de-noel-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=324 São Nicolau, bispo grego do século 4, ficou famoso, entre várias outras ações, por dar presentes aos pobres. Em sua história mais famosa, salvou três moças pobres da prostituição ao dar o dinheiro para o casamento, secretamente, jogando bolsas com ouro pela janela. Daí a tradição dos presentes, que chegaria a hoje na forma modificada, secularizada e comercializada do Papai Noel (nome que vem do francês Père Nôel, “Pai Natal”, como é chamado em Portugal).

Em países ortodoxos, Nicolau continua a ser um santo altamente venerado e sério. No Ocidente, muito de sua influência vem de depois de sua morte. E o que acontece é que provavelmente não teríamos Papai Noel sem um roubo.

Em 1087, com conquistadores islâmicos do Império Otomano às portas, marinheiros italianos tomaram a maioria dos ossos de São Nicolau de sua igreja em Mira, Anatólia, sob protestos dos monges. Foram levados para Bari, na Itália, onde estão ainda hoje, na Basílica de São Nicolau. Outra parte, menor, seria tomada por venezianos, igualmente sem autorização, durante a Primeira Cruzada, em 1100, e estão no Monastério de São Nicolau, Veneza. Em Mira, resta a tumba vazia e a igreja, desativada em 1923, é hoje um museu. Outras relíquias menores estão espalhadas por igrejas pelo resto do mundo.

ESSÊNCIA DE PAPAI NOEL

Desde os tempos bizantinos, aos ossos de São Nicolau é atribuído um milagre peculiar: eles emitiriam um líquido milagroso. É o Maná de São Nicolau, historicamente descrito como um óleo perfumado mas que, por análises químicas autorizadas pela Igreja Católica em 1925, é basicamente água pura transparente. Cerca de 50 ml são produzidos por ano, e coletados solenemente pela Igreja no Dia da Translação, 5 de maio, quando chegaram ali em 1087. A Basílica de São Nicolau de Bari afirma não saber se o líquido sai dos ossos ou da tumba e as hipóteses mais científicas falam em mera infiltração, o que a Igreja nega.

O líquido é misturado com água benta e engarrafados em frascos, disponíveis aos fiéis. Esses fracos podem ser simplesmente guardados mas, desde sempre, várias curas são atribuídas aos que passam no corpo ou bebem a essência dos ossos de São Nicolau.

Os indícios são de que os ossos em Veneza e Bari são mesmo os da figura histórica que nasceu e morreu em Mira. Ou ao menos quem estava enterrado lá na Idade Média. Em 1957, os ossos em Bari foram exumados e amplamente estudados, enquanto os de Veneza o foram em 1992. A conclusão é que provavelmente são da mesma pessoa e que essa pessoa morreu com mais de 70 anos. Ainda não existia datação por radiocarbono.

O culto a São Nicolau se tornou firme no Centro e Norte da Europa, por influência de cruzados germânicos passando por Bari. Nesses países, os presentes eram trocados no Dia de São Nicolau: 6 de dezembro, quando ele faleceu em Mira, em 343. Em outros países, como Portugal, o santo continuou pouco celebrado.

Nicolau começou a “degenerar” em Noel por influência da Reforma Protestante, que tentou suprimi-lo com os demais santos. Foi Martinho Lutero quem sugeriu mudar a celebração para o Natal em si. Na Inglaterra, o nome do santo foi suprimido, no lugar entrando a figura de Father Christmas, o “Pai Natal”, conhecido por Santa Claus nos EUA por conta da colônia holandesa, que o chama de Sinter Klaaas – apelido de Niklaaas (Nicolau). O Brasil herdara de Portugal a ausência de tradições ligadas a São Nicolau e o conheceu já nessa forma.

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