Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Bolsonaro disse ‘Eu sou a Constituição’, mas Luís 14 nunca disse ‘O Estado sou eu’ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/20/bolsonaro-disse-eu-sou-a-constituicao-mas-luis-xiv-nunca-disse-eu-sou-o-estado/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/20/bolsonaro-disse-eu-sou-a-constituicao-mas-luis-xiv-nunca-disse-eu-sou-o-estado/#respond Mon, 20 Apr 2020 20:41:51 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/Louis_XIV_King_of_France_after_Lefebvre_-_Les_collections_du_château_de_Versailles.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=457 Luís 14 é considerado uma espécie de encarnação do Absolutismo. Seu reinado de 72 anos e 110 dias é o maior de qualquer monarca Europeu (Elizabeth 2ª  precisa de mais quatro anos para alcançá-lo). Ganhou o megalômano apelido de Rei Sol por escolher o Sol como seu símbolo, e gostar de ser comparado ao deus grego do Sol, Apolo. Também mencionavam a regularidade de seus horários.

Mas não porque, como se imagina hoje, o mundo girava em torno dele. O heliocentrismo, em 1643, quando ascendeu ao trono, ainda era polêmico entre católicos. Mas não seria mais na era do Iluminismo, quando Luís passou a simbolizar o que havia de errado com o Antigo Regime absolutista: centralizador, mercantilista, personalista, teocrático. Lembrado por episódios como quando expulsou os protestantes da França.

Foi nessa época que acabou registrada a frase que supostamente representava sua concepção de governo: L‘état, c’est moi, “O Estado Sou Eu”. Ninguém sabe quem escreveu isso primeiro, mas não há qualquer menção até o final do século 18, muitas décadas após o fim de seu reino, em 1715. Já denunciada como apócrifa no século 19, a frase continua a ser repetida como uma verdade de conhecimento comum até hoje. No rol de frases como: “Se eles não têm pão, que comam brioches!” (Maria Antonieta quase certamente jamais disse isso) e “Os fins justificam os meios” (Maquiavel escreveu um bem mais inofensivo: “É preciso considerar o resultado final”).

O CONSTITUCIONALÍSSIMO

A frase falsa leva a uma frase real de Jair Messias Bolsonaro. O presidente apareceu de manhã (dia 20/04/2020) dizendo: “A constituição sou eu”. Ou, mais exatamente: “Eu sou, realmente, a Constituição”. Isso foi comparado ao que Luis 14 não disse. Bolsonaro se pondo no lugar de um líder autocrático dizendo que ele determina o que é Constituição.

Mas o contexto era uma negação de ser alguém assim. Na mesma entrevista, afirmou: “Peguem o meu discurso. Não falei nada contra qualquer outro Poder. Muito pelo contrário. Queremos voltar ao trabalho, o povo quer isso. Estavam lá saudando o Exército brasileiro. É isso, mais nada. Fora isso é invencionice, tentativa de incendiar a nação que ainda está dentro da normalidade”. Chegou a repreender um fã que falou em fechar os outros poderes.

Enfim, o que ele quis dizer, provavelmente, é que é ultra-constitucional. O mais constitucional de todos. Constitucionalíssimo.

Mas a gente sabe o que Jair fez domingo passado. Liderou uma manifestação pedindo precisamente por rasgar a Constituição e realizar uma intervenção militar contra os outros poderes, em frente à sede do Exército, não menos. Gritou palavras de ordem como: “Nós não queremos negociar nada! Nós queremos ação pelo Brasil!” e “Chega da velha política! Agora é Brasil acima de tudo e Deus acima de todos!” Se não falou abertamente em golpe, não deve nem ser por medo das instituições, que continuam a deixar claro que absolutamente nada que fizer terá consequências além de protestos impotentes. Mas porque os golpes preferem chamar a si de “revolução”.

REI TREVAS

Se me permitem, vamos concluir com um desvio para a opinião. A fala de hoje se insere numa estratégia de negação plausível, escapar da responsabilidade, poder formalmente “provar” sua inocência.

A mensagem não é endereçada ao bolsonarista profundo, que o considera um enviado pelo Divino, e possivelmente não entende a fala “democrática” como razão para frustração. Ao contrário, é uma prova dele ser um homem bom demais para este mundo, que mantém a democracia como generosa concessão – até onde durar sua paciência.

A mensagem é para direitistas de outras estirpes na base, como guedistas, moristas e, mais que tudo, militares. A função dessa defesa formal é dar “provas” de que a oposição está sendo histérica, injusta, golpista, que só discorda dele por ter perdido as eleições. Que não há nada de anormal acontecendo. É o mesmo método usado quando uma fonte no governo solta alguma informação para, logo após a imprensa publicar, Bolsonaro aparecer negando ruidosamente, descreditando a “mídia lixo”. Para confirmar a notícia um tempo depois.

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Eyam: a vila que se sacrificou pela quarentena, e salvou milhares https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/28/eyam-a-cidade-que-se-sacrificou-pela-quarentena-e-salvou-milhares/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/28/eyam-a-cidade-que-se-sacrificou-pela-quarentena-e-salvou-milhares/#respond Sat, 28 Mar 2020 18:24:57 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/eyam.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=417 O conceito de quarentena surgiu durante a Grande Peste de 1348. Em Veneza, navios que chegavam à cidade eram obrigados a parar numa ilha próxima à cidade, hoje chamada Lazaretto Vecchio, por 40 dias antes de poder descarregar. Lá, ainda hoje arqueólogos topam com valas coletivas.

A peste bubônica continuaria a castigar a humanidade muito depois da pandemia medieval que removeu até um terço da população da Europa. Surtos continuaram a ocorrer até a criação da medicina científica no final do século 19.

Um deles seria o de Londres em 1665, que mataria até 100 mil pessoas, ou um quarto da população do lugar que disputava com Paris o título de maior cidade do mundo cristão. Foi em setembro desse ano que o alfaiate da pequena vila de Eyam – então com, estima-se, 800 habitantes e ainda hoje com menos de 1000 – recebeu um carregamento de tecidos da capital. Neles, pulgas contaminadas. Em seis semanas, as 29 primeiras vítimas haviam perecido.

O surto pareceu arrefecer ao fim do ano, com a chegada do inverno e, em maio de 1666, não havia mais nenhum caso. Foi quando a doença renasceu na forma pneumônica, mais fácil de passar. E, diante disso, houve uma troca de liderança. O reitor – o equivalente a padre na Igreja Anglicana, que não usa o título protestante de “pastor” – William Mompesson tomou o lugar do puritano Thomas Stanley como líder da cidade, com a promessa de tomar medidas enérgicas. E tomou. O religioso devisou um plano tanto radical quanto altruísta: Eyam entraria em quarentena voluntária e absoluta. A cidade ficava numa rota comercial importante entre Sheffield e Manchester, e poderia arrasar os dois centros urbanos.

Um círculo de pedras foi estabelecido a uma milha (1.609 m) do centro da cidade. Ninguém entrava nem saía. Os habitantes sobreviviam de comprar alimentos na borda do círculo, pagando com moedas embebidas em vinagre, o que acreditavam poder desinfetá-las.

Rapidamente, a pequena vila se tornou um cenário desolador. As pessoas tiveram que enterrar seus próprios entes queridos. Elizabeth Hancock, uma das moradoras da cidade, teve que, em oito dias, enterrar seus seis filhos e o marido. O reverendo Mompesson determinou que os cultos passassem a ser celebrados ao ar livre, e muitos dos sobreviventes foram os que se isolaram em choças longe do centro da vila. Em uma carta, o líder descreveu a situação: “Meus ouvidos nunca escutaram tamanha e tão dolorosa lamentação. Meu nariz nunca percebeu cheiros tão horrendos, e meus olhos nunca contemplaram espetáculos tão tétricos. Era o Gólgota, um lugar de caveiras”.

Sob a enérgica liderança de Mompesson, que sobreviveria, mas perderia a esposa, a quarentena iria até o fim. Os números são discutidos ainda hoje entre historiadores: Eyam pode ter perdido 260 mortos de uma população de 350, ou 370 de 800, ou 273 (o número oficial registrado na paróquia) de 800. Seja como for, em seu sacrifício abnegado, correto e visto como muito cristão, a vila evitou que qualquer cidade próxima fosse contaminada, e que o surto no país fosse pior, talvez salvando centenas de milhares. Ainda hoje, todo primeiro domingo de agosto, o sacrifício é relembrado na paróquia da vila. Na cultura britânica, o martírio de Eyam foi celebrado em verso, prosa, teatro, música e até óperas.

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Tulipamania: a primeira bolha financeira, estourada por uma epidemia https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/09/tulipamania/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/09/tulipamania/#respond Mon, 09 Mar 2020 22:25:43 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/tulipamania-300x215.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=389 Era a flor do inimigo: a tulipa foi trazida à Europa do Império Otomano, pelo trabalho do embaixador Ogier Ghiselin de Busbecq (1522-1592), do Sacro-Império Romano-Germânico. Era a época do sultão Solimão, o Magnífico (1494-1566), que conquistou múltiplos territórios cristãos, quando os dois impérios se enfrentavam nas chamadas Guerras Italianas. Busbecq ficou encantado pelas cores extremamente vívidas da flor, e mais ainda por tê-la visto florescendo quase na metade do inverno, quando nenhuma outra flor se abria.

A tulipa se espalharia pelo continente e se tornaria um símbolo de status por toda a Europa. Adaptou-se bem às terras baixas da Holanda e se tornaria um grande negócio no país. Ao longo da década de 1630, a moda pegou. A demanda e o valor da planta começaram a subir vertiginosamente.

Isso é possível porque a tulipa é um “bem durável”: ela se propaga por bulbos, que parecem com cebolas. Esses bulbos podem ser preservados entre uma florada e outra, e as plantas vivem por muitos anos, levando cinco até começarem a dar flor. As mais raras e valiosas variedades de tulipa, que ganhavam nomes portentosos como Alexandre Magno e Almirante van der Eijck, eram as atingidas pelo vírus mosaico, benigno, mas que faz com que tenham mais de uma cor. Isso não pode ser reproduzido por sementes – o vírus só passa entre bulbos. Assim, uma tulipa rara não era algo fácil de copiar.

Em 1635, um lote de 40 bulbos de tulipa foi vendido por 100 mil florins – equivalente, pelo cálculo do Instituto Internacional de História Social, de Amsterdã, a € 1.115.000,00 (onze milhões e cento e quinze mil euros, equivalentes a R$ 6.032.150,00). Uma única Tulipa da variedade Vice-Rei podia comprar 5 casas em Amsterdam.

O auge da tulipamania, como seria conhecida a primeira bolha especulativa da história, foi entre 1636 e 1637. Pessoas que não tinham nada que ver com o negócio, como agricultores comuns, fabricantes de tecidos, chegando até a limpadores de chaminé, começaram a comprar tulipas para vender mais caro depois, confiando que os preços iriam continuar a subir indefinidamente. A Holanda até mesmo acabou inventando o mercado de futuros: as pessoas compravam as plantas no meio da estação, antes delas darem flor, apostando que valeriam muito mais ao desabrochar.

Até fevereiro de 1637. Em um dia, o mercado de tulipas em Haarlem simplesmente ficou vazio. Ninguém apareceu. Não havia nenhuma flor para vender tampouco: estavam então todas em forma de bulbo, esperando para florescer em maio ou junho. A cidade passava por um surto de peste bubônica, e não era uma atividade segura. Mas a falta de pregão foi o bastante para estourar a bolha: o mercado da tulipa entrou em colapso.  Ninguém mais queria pagar o que havia sido acordado, e juízes determinaram aos produtores aceitarem receber 1/10 dos valores, porque era tudo dinheiro de “apostas”. Do dia para a noite, as tulipas passaram a valer tanto quanto… flores.

Para saber mais: o mais clássico relato da Tulipamania foi composto pelo jornalista escocês Charles Mackey em 1841. Historiadores modernos tendem a duvidar de suas afirmações mais extravagantes, como pessoas se suicidando em massa nos canais de Amsterdã. O valor máximo atestado em documentos foi de “apenas” uma casa. E a Holanda não parece ter sido arruinada: o tema foi tratado jocosamente no país, em canções e pinturas na época (como a que ilustra a matéria), o que não é uma atitude muito adequada quando seu vizinho se matou. Também lembram que a tulipa, um item de luxo difícil de copiar, não era realmente um investimento tolo.

 

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Um asiático chegou primeiro? 500 anos da viagem de Magalhães, em 5 fatos https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/09/20/500-anos-viagem-fernao-magalhaes-5-fatos-em-5-fatos/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/09/20/500-anos-viagem-fernao-magalhaes-5-fatos-em-5-fatos/#respond Fri, 20 Sep 2019 10:00:10 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/magalha-300x215.jpg true https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=258 Há 500 anos, 20 de setembro de 1519, o navegador português Fernão de Magalhães partia de Salúncar de Barrameda, Espanha, para a expedição que, em seu valor simbólico, só tem rival na (dá para argumentar) Apollo 11. A primeira volta ao mundo foi uma façanha para eternamente habitar o imaginário popular. Na vida real, a coisa foi bem menos heroica que o lembrado. Magalhães certamente não deu a volta ao mundo e, talvez, o verdeiro merecedor do título seja um intérprete asiático. Vejamos.

1. NINGUÉM ACHAVA QUE ELE IA CAIR DA BORDA DO MUNDO

Mapa Múndi estilo T-O, 1459
Mapa Múndi estilo T-O, 1459 (Foto: Wikimedia Commons)

Pode olhar em qualquer mapa medieval: a terra é esférica. O desenho altamente impreciso, que lembra um T dentro de um O, representava os três continentes conhecidos – Europa, Ásia e África – em um dos hemisférios do planeta. O outro, se imaginava então, era impossível de explorar, pois as pessoas morreriam de calor ao tentar atravessar a “zona tórrida”. Em 1519, essa última parte já havia sido desmentida muitas décadas antes pelas navegações portuguesas pela costa da África.

Já havia mais de um milênio e meio que ninguém com o mínimo de educação levava a sério a hipótese da Terra plana – incluindo os padres que pregavam ao povo, e até os Vikings que chegaram à América 500 anos antes de Colombo e acharam que era uma península da África. Em cerca de 240 a.C. o grego Erastótenes de Cirene já havia calculado a circunferência da Terra com um erro de 10%. A dúvida não era se era possível dar a volta ao mundo, mas por onde: a ponta sul da América, ligando Atlântico e Pacífico, era inexplorada, e podia terminar num mar de gelo intransponível, como ao norte do Canadá. A passagem, bastante difícil, seria descoberta na viagem e ganharia o nome de Estreito de Magalhães.

2. ERA UMA QUESTÃO DE DINHEIRO

Magalhães era um veterano português da conquista de Malaca (na Malásia) de 1511, a primeira vitória decisiva do colonialismo europeu na Ásia. Havia proposto sua aventura ao rei de Portugal, que recusou, mas permitiu oferecê-la a outro interessado. Os portugueses, com sua base na Malásia, não viam razão para achar outro caminho para as especiarias. Já os espanhóis estavam desesperados: Colombo os havia levado a acreditar que haviam encontrado as “Índias” no final do século 15. Com isso, assinaram o Tratado de Tordesilhas, em 1494, pegando quase toda a América, mas cedendo a Portugal a rota para a Índia pelo sul da África, completada na viagem de Vasco da Gama, em 1498 e a única viável até então. O que pareceu um grande negócio para a Espanha significou que, por décadas, Portugal deteria o monopólio das especiarias pela via marinha – a razão central das Grandes Navegações. Depois de Magalhães, o comércio de especiarias seria dividido entre a rota portuguesa, pelo Leste, e a rota espanhola, pelo Oeste.

3. MAGALHÃES FOI CONSIDERADO UM VILÃO

Fernão de Magalhães
Fernão de Magalhães como imaginado no século 19; ele tinha 41 anos quando morreu (Foto: Wikimedia Commons)

Se ninguém realmente acreditava que cairia da borda do mundo, em vários momentos, deve ter preferido cair. Quando os marinheiros chegaram na Espanha, em 6 de setembro de 1522, todo mundo já dava a expedição por perdida. Ao longo do caminho, os marinheiros foram morrendo por fome, escorbuto, tempestades, motins e batalhas com os nativos. Dos 270 que partiram com ele, em 5 navios, 18 retornaram, em um só. Magalhães não estava entre eles (mais adiante).

E, se estivesse, teria uma péssima recepção: desertores, que haviam dado meia-volta na travessia o Estreito de Magalhães e retornado à Espanha no navio San Antonio, em maio de 1521, escaparam de ser executados pelo crime dizendo que o capitão português era um tirano que estava traindo o rei da Espanha. Em 1522, os sobreviventes tiveram que fazer sua caveira ainda mais para serem aceitos. De forma que, pelos anos que se seguiram, o navegador foi visto como um traidor tanto na Espanha quanto em sua Portugal natal – onde já era visto, por ter vendido seus serviços à arquirrival. Foi só com a publicação do relato do italiano Antonio Pigafetta, o escrivão de bordo, que sua reputação começou a ser recuperada, primeiro em outros países da Europa.

4. O MATADOR DE MAGALHÃES É UM HERÓI NACIONAL FILIPINO

A morte de Fernão de Magalhães
A morte de Fernão de Magalhães em ilustração do século 19 (Foto: Wikimedia Commons)

Em 16 março de 1521, Magalhães já havia perdido dois navios – um para tempestade e um por deserção, o já citado San Antonio. Foi quando finalmente encontrou seu alvo: asiáticos urbanos, do tipo que vende especiarias. Assim, 29 anos depois de Colombo, os espanhóis finalmente achavam a rota para as “Índias”. Os marinheiros eram do Rajanato de Cebu, um Estado hindu na ilha de mesmo nome, nas Filipinas. Em 7 de abril, foram levados à sua capital, Singhapala, e foram recebidos pelo rajá Humabon. Em uma semana, o líder aceitou se batizar no cristianismo, adotando o nome Carlos, em homenagem ao rei da Espanha, Carlos I.  Também ordenou a conversão de todos seus súditos. Mas um se recusou: o chefe Lapu Lapu, da ilha de Mactan.

Magalhães foi então enviado para convencê-lo e, ao receber a negativa, tentou usar de força. Mas a batalha foi assimétrica – para o lado dos filipinos. Eram 1500 nativos contra um destacamento minúsculo de 49 europeus. Os invasores não conseguiram aproximar seus navios da praia para dar suporte com seus canhões, nem mesmo trazer besteiros ou arcabuzeiros em botes, a uma distância segura. Vestindo armaduras, o pequeno destacamento foi atingido por uma tempestade de flechas, lanças, até pedras, sendo forçado a bater em retirada. Retornaram fogo, e até 150 nativos morreram. Mas Magalhães, e mais 13 outros, não conseguiram escapar. O navegador foi finalizado com uma espada, literalmente morrendo na praia. Seu corpo não seria recuperado.

Hoje, Lapu Lapu é celebrado como o primeiro herói nacional das Filipinas, um ícone da luta contra o imperialismo europeu.

Estátua de Lapu Lapu
Estátua de Lapu Lapu em Mactan, atual Cidade de Cebu, Filipinas (Foto: Wikimedia Commons)

Quanto ao rajá Humabon, pareceu aceitar bem a situação, convidando os europeus para um banquete, no dia 1o de maio. No qual tratou de exterminá-los com veneno. Morreram os dois sucessores portugueses de Magalhães, Duarte Barbosa e João Serrão, mais 25 marinheiros. Serrão conseguiu escapar brevemente para a praia e gritou para a tripulação que todos estavam mortos, menos um. Os espanhóis bateram em retirada. Perderiam ainda dois navios e mais comandantes na volta. Ao final, o espanhol Sebastian Elcano seria quem acabaria com o crédito de primeiro capitão a circunavegar o mundo, com seus 17 maltrapilhos sobreviventes.

5. UM ESCRAVO MALAIO PODE TER SIDO O PRIMEIRO A DAR A VOLTA AO MUNDO

O que fez o rajá mudar de ideia? Segundo a teoria da própria tripulação, Henrique, o escravo de Magalhães, o sobrevivente a que Serrão havia se referido. Fora capturado por Magalhães na conquista de Malaca de 1511 e servia como intérprete. Quando seu senhor morreu, ele exigiu sua soltura, conforme era o desejo expresso do falecido. Mas a equipe não queria perder seu língua e, com isso, foi mantido contra sua vontade. Como intérprete, Henrique estava no banquete letal do rajá e falou a ele coisas que os espanhóis não entenderam. O fato de ter sido poupado levou os marinheiros a concluir que ele havia provavelmente convencido o rajá de que a Espanha conquistaria seu país – como faria, em 1565.

Os europeus também supuseram que Henrique cumprira sua vontade expressa nos dias anteriores, a de voltar para sua terra natal. Se ele fez isso, se atingiu novamente a Malásia – numa rota que não seria tão difícil, pois era bastante frequentada pelos mercadores asiáticos – isso torna ele o primeiro humano a dar a volta ao mundo, mais de um ano antes de seus colegas na sofrida expedição terminarem a sua circunavegação.

Os historiadores param por aí, no “não há prova”. Mas a tese foi defendida pelo escritor judeu alemão Stefan Zweig (aquele do “Brasil é o país do futuro”) e é, naturalmente, bastante popular na Malásia, onde Henrique é conhecido como Panglima Awang (“Capitão Awang”), nome inventado pelo escritor Harun Aminurrashid no romance sobre a vida do escravo, em 1958. Como Lapu Lapu nas Filipinas, ele é visto como o real herói da jornada.

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