Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Em histórias de santos medievais, Deus fazia aborto https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/hagiografia-milagre-aborto-irlanda-medieval/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/hagiografia-milagre-aborto-irlanda-medieval/#respond Sun, 23 Aug 2020 10:00:58 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/brigida-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=594 Há uma semana, dia 16 de agosto, um grupo de manifestantes religiosos tentou invadir um hospital para impedir o aborto legal de uma menina de 10 anos, interrompendo a gravidez fruto de repetido estupro por um tio. O caso gerou repulsa profunda entre quem não compartilha a visão dos manifestantes – que vem a ser a maioria dos brasileiros. E levou a uma declaração do presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Walmor Oliveira Azedo. Disse que o aborto legal foi um “crime hediondo”.

A Igreja defende que sua posição é consistente com leis imutáveis do próprio Deus. Mas ou as leis mudaram, ou foi Deus. Porque, no passado, católicos chegaram a acreditar que Deus em pessoa provocava abortos. E não de castigo, mas como uma dádiva, um milagre.

Está em biografias (hagiografias) de quatro santos, todos da Irlanda. São eles: Santa Brígida de Kildare (451-525), São Ciarán de Saighir (?-530), Santo Áed mac Bricc (?-589) e São Cainnech de Aghaboe (515-600). A cada um deles, foi atribuído um aborto milagroso, uma intervenção divina que acabou com uma gravidez indesejada.

Aéd visitou um convento e notou que a barriga de uma freira “crescia sem comida”. A freira confessou ter caído em tentação e “Santo Aéd abençoou seu útero e subitamente o infante no útero desapareceu como se não existisse”.

Cainnech ouviu a confissão de fornicação de uma freira, que pediu para abençoar seu útero. Ele assim o fez e “de uma vez o infante no útero sumiu sem qualquer traço”.

Santa Brígida é padroeira das parteiras, dos recém-nascidos e da própria Irlanda (com São Patrício e São Columba). A ela são atribuídos vários milagres relacionados à gravidez. E um aborto. Novamente, de uma freira que havia ficado grávida num momento de fraqueza. “Brígida, exercendo a maior força de sua inefável fé, a abençoou, causando o feto a desaparecer sem nascer, e sem dor”. A freira assim abençoada termina por agradecer a Deus.

O relato mais detalhado, antigo e explícito é o de São Ciarán, escrito no século 7. Aparece na coletânea Vitae Sanctorum Hiberniae (“Vida dos Santos da Hibérnia”, isto é, Irlanda). Uma princesa virgem chamada Bruinnech decide se tornar freira, sob a proteção do santo, em seu mosteiro. Um rei, Dímma, tomado por desejo pecaminoso, rapta e estupra a jovem. Segue o relato: “Ciáran, desprezando a enormidade de tamanho crime, e desejando aplicar uma cura, foi até a casa do sacrilégio para trazer a garota de lá. O homem de Deus retornou ao monastério com a garota e ela confessou que estava grávida. Então o homem de Deus, guiado pelo zelo da justiça, não querendo que a semente da serpente crescesse, apertou sobre seu útero com o símbolo da cruz e forçou seu útero a se esvaziar”.

MILAGRES ESQUECIDOS

Estamos falando de histórias realmente esquecidas pelo tempo. Com exceção desta última, a de Ciáran, todos os abortos milagrosos foram suprimidos de hagiografias posteriores dos santos. “Eu diria que essas são histórias católicas obscuras”, afirma a historiadora da religião Maeve Callan, da Simpson College (EUA), autora do artigo Of Vanishing Fetuses and Maidens Made-Again: Abortion, Restored Virginity, and Similar Scenarios in Medieval Irish Hagiography and Penitentials (“Sobre Fetos Desaparecidos e Donzelas Refeitas: Aborto, Virgindade Restaurada, e Cenários Similares na Hagiografia e Penitências Medievais Irlandesas”; as traduções acima derivam de suas versões em inglês para o latim original). “Tão obscuras que a maioria dos católicos – provavelmente quase todos – não conhece.”

Não é porque algo está numa hagiografia que aconteceu, é óbvio. Pouca gente acredita que São Jorge enfrentou um literal dragão. Mas isso torna essas histórias ainda mais importantes, na verdade. “Hagiografia, falando estritamente, não é história”, afirma Maeve. “Seu objetivo não é registrar uma biografia objetiva do santo, mas apresentá-lo numa forma idealizada, um ser humano tão transformado pela graça de Deus que ele ou ela pode atingir façanhas nunca vistas.”

O que os santos aborteiros da Irlanda demonstram, que não é regional nem limitado ao começo da Idade Média, é que a Igreja já acolheu um pensamento muito diferente a respeito do aborto. “Se procurarmos ver o que diz a tradição católica sobre este tema, também encontraremos muitas contradições”, afirma a assistente social e mestra e doutora em ciências da religião Regina S. Jurkewicz, do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, em seu artigo A Defesa da Vida no Pensamento Católico. “Por exemplo, São Tomás de Aquino (1225-1274) admitia um desenvolvimento progressivo do embrião, através de etapas sucessivas. Para ele, a alma só pode estar presente em uma matéria capaz de recebê-la, e o óvulo fertilizado ou o embrião não podem ter uma alma humana porque não estão prontos para isso.”

Aquino e outros pesos-pesados da Igreja como Santo Agostinho (354-340) consideravam o aborto um pecado muito sério, mas defendiam que o embrião só se tornava humano bem depois da concepção. Portanto, aborto nesse estágio não era equivalente a assassinato. Aquino datava o momento em que isso mudava de figura, a hora da entrada da alma, ou “hominização”, em 40 dias para meninos, 90 para meninas.

Isso não era um consenso universal: outros teólogos, como João Crisótomo (347-407), não faziam distinção de tempo. A discussão se estendeu pelos séculos, mas o lado de Aquino predominou. A outra ala venceu em 1588, quando o papa Sisto 5emitiu uma bula excomungando todos os que se envolveram em aborto, independente do tempo de gravidez. Mas a ordem seria revertida três anos depois, por Gregório 14, que determinou que a hominização acontecia na 16a semana desde a concepção, período em que a maioria das grávidas percebe o feto se movendo, “chutando”. Isso restabeleceu a distinção entre dois tipos de aborto, que duraria até 1869.

A Igreja sempre condenou o aborto, não há dúvida. Mas de duas formas diferentes. Uma é a de um pecado de fornicação: um ato sexual que, prega o catolicismo, só devia acontecer por razões reprodutivas. O pecado aqui é tentar se escapar das consequências naturais – um “ato contra a natureza”, como sexo oral, com camisinha, pílula etc. Algo muito diferente é um pecado de homicídio. Para esse crime, é preciso acreditar que um óvulo fecundado é equivalente a uma pessoa adulta, como a Igreja defende hoje.

Essa distinção perdida ajuda a entender os milagres de aborto medievais. Nessas histórias, Deus não estava matando inocentes, mas livrando das consequências do pecado, num gesto de misericórdia que restaurava a honra das freiras. “Acredito que há uma forte conexão com essa distinção”, afirma Maeve. “Algumas penitências medievais indicam uma consciência similar de graus de severidade – no começo da gravidez sendo mais permissível, exigindo menos penitência.”

E relato de São Ciáran é particularmente significativo. “O estupro que causou a gravidez foi reconhecido como violência, mas o aborto foi mais como fazer sumir com o feto e os efeitos da gravidez, e restaurar o corpo a seu estado pré-gravidez – desfazer uma violência no lugar de perpetrá-la”, afirma a historiadora.

Por que essa postura mudou? Não sem alguma ironia ao olhar contemporâneo, pela ciência. Com a compreensão da fecundação humana e o desenvolvimento embriônico, a partir da década de 1830, foi posta em dúvida a ideia de que a alma entrava apenas quando o feto começa a chutar. Em 1869, o papa Pio 9o excomungou novamente todos os envolvidos em aborto, mudando o entendimento para o atual, de que todo aborto é o assassinato de um inocente. Está no cânon 1.398, no Código de Direito Canônico, que afirma:

Quem provoca aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae [i.e., automática].

Seguindo essa regra, em 2009, num caso semelhante ao atual, envolvendo uma menina de 9 anos grávida de gêmeos, levou o então arcebispo (hoje emérito) de Olinda e Recife, José Cardoso Sobrinho, a declarar que a mãe e os médicos estavam automaticamente excomungados, gerando um escândalo que mobilizou até o então presidente Lula. Diante da reação negativa, a CNBB se moveu para afirmar que a mãe, por ter atendido à pressão e ao medo de perder a própria filha, não estaria excomungada, baseando-se em outra lei, o cânon 1.324, que prevê exceções para a excomunhão.

Nessa explicação, porém, não entrava nem o fato de ser estupro nem de ser contra criança. Não existe essa exceção. Aborto, para a Igreja Católica, não pode ser feito nem para salvar a mãe. A única possibilidade em que é permitido é se o bebê ser perdido faz parte de outro procedimento, como a remoção de um câncer, no qual a intenção não é tirar o feto. A absolvição que o papa Francisco deu, em 2015, para todas as pessoas envolvidas em aborto, foi o indulto por um crime. Que, para a Igreja, continua a ser crime.

OS DISSIDENTES

Mas o que pensam os católicos contemporâneos que discordam? Conversei com a teóloga Isabel Aparecida Felix, integrante do grupo Católicas pelo Direito de Decidir e doutora em ciências da religião. “Para nós, mais do que olhar para essa questão do aborto como uma questão religiosa, é olhar como uma questão de saúde pública, que a igreja não olha, como uma questão da dignidade das mulheres, e como uma questão do direito da autonomia, a autodeterminação das mulheres”, afirma.

As Católicas Pelo Direito de Decidir defendem que a mesma ciência usada pela hierarquia católica para justificar sua postura inflexível na verdade está de seu lado, com estava do lado dos teólogos medievais e dos hagiógrafos irlandeses. “Não há possibilidade de consciência sem vida cerebral”, afirma Dra. Regina Jurkewicz. “A célula geradora do córtex cerebral inicia seu desenvolvimento no 15º dia após a concepção e somente em torno da 8ª semana está suficientemente desenvolvido para que se possa detectar a atividade cerebral. O córtex cerebral é uma condição indispensável para que haja consciência humana, portanto para que haja uma pessoa.”

Segundo Isabel Felix, há uma falta de foco em outra parte da teologia católica. Ela cita a própria Declaração Sobre o Aborto Provocado, da Congregação Pela Doutrina da Fé (a versão atual da Inquisição). No artigo 9, afirma-se:

“Nunca se pode tratar um homem como simples meio de que porventura se dispusesse para alcançar um fim mais elevado”.

“O código é bem machista e patriarcal, e fala do ‘homem’, mas a gente interpreta como o direito à autonomia do ser humano”, comenta. “Ao mesmo tempo em que a igreja diz não olhar para as pessoas como objeto, mas como sujeitos de decisão, há uma incoerência: a questão das autonomia das mulheres para com o próprio corpo, com a sexualidade, não conta para a Igreja.” A teóloga diz que, ainda que haja uma vasta teologia feminista, que favorece essa autonomia, ela não tem penetração numa Igreja exclusivamente masculina em suas estruturas de decisão.

Se alguém discorda frontalmente dessa organização impenetrável, por que continuar a ser católico? Perguntei isso a Isabel, que respondeu: “Dentro da tradição católica, existem valores que nós acreditamos, da justiça da compaixão da dignidade. Por que continuamos? Por que não permitimos que eles, que a Igreja como instituição, defina o que é catolicismo para nós. Para eles, a igreja é a hierarquia. Para nós, é a comunidade.”

Tentei falar com a hierarquia, aliás. Levei a questão das mudanças no pensamento católico e a história dos santos irlandeses à CNBB. A assessoria de imprensa recebeu minhas perguntas e afirmou tê-las encaminhado a um bispo especialista em bioética. A reposta, infelizmente, não chegou no prazo combinado, a tempo da publicação. 

Ficamos, assim, com as palavras de seu presidente. Estupro de criança e interrupção legal da gravidez, numa menina estuprada de 10 anos: “Dois crimes hediondos”.

]]>
0
Irã vem dos arianos: 5 fatos pouco lembrados sobre o país https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/09/ira-arianos-5-fatos/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/09/ira-arianos-5-fatos/#respond Thu, 09 Jan 2020 20:50:30 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/azadi-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=336 Com as tensões crescentes entre EUA e Irã, é uma boa hora para desbaratar mitos e trazer um pouco mais do país. Estes são 5 fatos pouco conhecidos ou mal-interpretados sobre o Irã, que pouco tem pouco a ver com a teocracia radical instalada em 1979.

1. O IRÃ É A PÉRSIA, MAS NEM TODO IRANIANO É PERSA

O Irã era chamado de Pérsia até 1934, e fica na mesma região do centro do império que quase conquistou a Grécia na Antiguidade. Iranianos não tem nada a ver com árabes. Sua língua principal, o persa, é uma língua da família indo-européia, mais próxima ao português que ao árabe, escrita numa versão modificada do alfabeto árabe. Todos vivem na ex-Pérsia, mas os iranianos não são simplesmente persas. Persas são a etnia majoritária do Irã, por volta de 60% da população, e maioria em grandes centros como Teerã. Mas há azeris, curdos, turcomenos e, sim, árabes (2%), entre outros.

2. IRÃ VEM DE “ARIANO”

Irã não é um nome religioso e não tem nenhuma relação com o Islã. Quase ao contrário, parte do nacionalismo persa, que competiu com a religião até a revolução de 1979, e ainda é anima grupos no exílio. Em 1934, o monarca Reza Shah Pahlavi pediu ao mundo que parasse de usar “Pérsia” e passasse a se referir ao país da forma como os persas faziam: Iran. A palavra vem do antigo persa airya: arianos, povos que conquistaram ou colonizaram uma vasta região que incluía o Irã e o norte da Índia, por volta do 2º  milênio a.C. No sentido usado por historiadores, arianos são ancestrais dos (ou ao menos levaram sua língua aos) persas, curdos, pashtuns do Afeganistão e outros, e nada que ver com pintores austríacos.

3. EXISTIRAM NEONAZISTAS NO  IRÃ

A teoria racial nazista identificava os arianos com os indo-europeus em geral, que saíram do Cáucaso e chegaram também à Europa, dos quais os arianos eram só uma leva. Diziam que só nos países nórdicos os arianos se mantiveram “puros”, enquanto no próprio Cáucaso se misturaram e “degeneraram”, o que explica povos como armenos, georgianos e iranianos não serem loiros e de olhos azuis. Isso não tem a mínima base na realidade. Mas alguns persas de extrema direita aproveitaram a deixa: no século 20, houve no Irã um movimento neonazista, supremacista persa. A mais famosa organização neonazista do Irã foi o SUMKA, Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Iranianos, num plágio direto de Hitler, e usando uma versão modificada da suástica como símbolo.

4. PERSAS DOMINAVAM NA MONARQUIA

A monarquia Pahlavi, derrubada na Revolução Iraniana de 1979, era persa e tentava impor uma identidade persa ao país inteiro. Inclusive foi acusada de financiar o SUMKA. O monarca deposto em 1979, xá Reza Pahlavi, formalmente islâmico xiita, privilegiou a religião zoroastrista, a original do Império Persa, de antes da conquista islâmica do século 7. Livros didáticos lembravam as glórias de Xerxes e Dario como uma era de ouro. Enquanto os persas urbanos iam de sunga e biquíni à praia, e, à noite, dançavam nas discotecas – o que é visível em muitas fotos pré-revolução –, as populações do interior, de minorias étnicas, eram conservadoras e religiosas. Essa foi uma das tensões menos faladas que levou ao fim da monarquia e à instalação da teocracia, que busca trocar a identidade persa pela islâmica. Ainda hoje, muitos exilados do regime e descendentes preferem ser chamados de persas.

5. RADICAIS SUNITAS DESTROEM MONUMENTOS; RADICAIS XIITAS PREZAM POR ELES

O Irã é xiita e isso é crucial em seu papel geopolítico, influenciando principalmente xiitas iraquianos, sírios, libaneses. O Islã se dividiu em xiismo e o sunismo no século 7, numa briga pela sucessão de Maomé. Desde então, desenvolveram teologias diferentes. Historicamente, sunitas consideraram imagens e estátuas de humanos e animais uma forma de idolatria. Xiitas são bem mais tolerantes nesse quesito. A arte islâmica figurativa histórica, que inclui representações de Maomé é quase toda feita por xiitas. Iranianos desfilam com reproduções de pinturas em protestos religiosos. O wahhabismo, a interpretação radical sunita vinda da Arábia Saudita e oficial no país, inspira terroristas sunitas como os da Al Qaeda e o Estado Islâmico (Daesh). Nessa versão ultraconservadora do Islã, não só imagens, como monumentos históricos podem ser considerados idolatria. O que explica o vandalismo de terroristas sunitas na Síria e Afeganistão, mas também o menos falado do regime saudita. A monarquia saudita já botou abaixo múltiplas construções históricas islâmicas, como a tumba da esposa de Maomé, Kadijah, e o cemitério Al-Baqi, em Medina, que tinha várias tumbas de amigos e parentes de Maomé. Xiitas, radicais ou não, prezam por seus monumentos – e o Irã tem muitos. Isso dá um sentido mais grave à fala de Trump ameaçando destruí-los.

]]>
0
Maná de São Nicolau: líquido dos ossos de Papai Noel é tido por remédio milagroso https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/12/23/mana-de-sao-nicolau/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/12/23/mana-de-sao-nicolau/#respond Mon, 23 Dec 2019 23:55:22 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/12/suco-de-noel-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=324 São Nicolau, bispo grego do século 4, ficou famoso, entre várias outras ações, por dar presentes aos pobres. Em sua história mais famosa, salvou três moças pobres da prostituição ao dar o dinheiro para o casamento, secretamente, jogando bolsas com ouro pela janela. Daí a tradição dos presentes, que chegaria a hoje na forma modificada, secularizada e comercializada do Papai Noel (nome que vem do francês Père Nôel, “Pai Natal”, como é chamado em Portugal).

Em países ortodoxos, Nicolau continua a ser um santo altamente venerado e sério. No Ocidente, muito de sua influência vem de depois de sua morte. E o que acontece é que provavelmente não teríamos Papai Noel sem um roubo.

Em 1087, com conquistadores islâmicos do Império Otomano às portas, marinheiros italianos tomaram a maioria dos ossos de São Nicolau de sua igreja em Mira, Anatólia, sob protestos dos monges. Foram levados para Bari, na Itália, onde estão ainda hoje, na Basílica de São Nicolau. Outra parte, menor, seria tomada por venezianos, igualmente sem autorização, durante a Primeira Cruzada, em 1100, e estão no Monastério de São Nicolau, Veneza. Em Mira, resta a tumba vazia e a igreja, desativada em 1923, é hoje um museu. Outras relíquias menores estão espalhadas por igrejas pelo resto do mundo.

ESSÊNCIA DE PAPAI NOEL

Desde os tempos bizantinos, aos ossos de São Nicolau é atribuído um milagre peculiar: eles emitiriam um líquido milagroso. É o Maná de São Nicolau, historicamente descrito como um óleo perfumado mas que, por análises químicas autorizadas pela Igreja Católica em 1925, é basicamente água pura transparente. Cerca de 50 ml são produzidos por ano, e coletados solenemente pela Igreja no Dia da Translação, 5 de maio, quando chegaram ali em 1087. A Basílica de São Nicolau de Bari afirma não saber se o líquido sai dos ossos ou da tumba e as hipóteses mais científicas falam em mera infiltração, o que a Igreja nega.

O líquido é misturado com água benta e engarrafados em frascos, disponíveis aos fiéis. Esses fracos podem ser simplesmente guardados mas, desde sempre, várias curas são atribuídas aos que passam no corpo ou bebem a essência dos ossos de São Nicolau.

Os indícios são de que os ossos em Veneza e Bari são mesmo os da figura histórica que nasceu e morreu em Mira. Ou ao menos quem estava enterrado lá na Idade Média. Em 1957, os ossos em Bari foram exumados e amplamente estudados, enquanto os de Veneza o foram em 1992. A conclusão é que provavelmente são da mesma pessoa e que essa pessoa morreu com mais de 70 anos. Ainda não existia datação por radiocarbono.

O culto a São Nicolau se tornou firme no Centro e Norte da Europa, por influência de cruzados germânicos passando por Bari. Nesses países, os presentes eram trocados no Dia de São Nicolau: 6 de dezembro, quando ele faleceu em Mira, em 343. Em outros países, como Portugal, o santo continuou pouco celebrado.

Nicolau começou a “degenerar” em Noel por influência da Reforma Protestante, que tentou suprimi-lo com os demais santos. Foi Martinho Lutero quem sugeriu mudar a celebração para o Natal em si. Na Inglaterra, o nome do santo foi suprimido, no lugar entrando a figura de Father Christmas, o “Pai Natal”, conhecido por Santa Claus nos EUA por conta da colônia holandesa, que o chama de Sinter Klaaas – apelido de Niklaaas (Nicolau). O Brasil herdara de Portugal a ausência de tradições ligadas a São Nicolau e o conheceu já nessa forma.

]]>
0
Devorar para curar: uma história do canibalismo medicinal europeu https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/01/canibalismo-medicinal-europeu/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/01/canibalismo-medicinal-europeu/#respond Thu, 01 Aug 2019 16:35:35 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/skull-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=113 (Aviso: esta é uma matéria sobre canibalismo. Como é de se esperar, vem coisa pesada adiante)

Segundos após o machado do carrasco descer, o povo se aproxima. Trazem em mãos as canequinhas. Começam a colher o sangue do condenado. A maioria bebe ali mesmo, outros levam para casa. Indiferente, o carrasco volta-se a uma figura bem-vestida chamando sua atenção. É um apotecário, um farmacêutico alquímico. Segue-se uma breve barganha, acertando o preço, e terminam de acordo: o corpo tem novo dono e o carrasco já inclui no preço a taxa de entrega. Como um açougueiro, se põe a trabalhar: cabe a ele extrair do corpo a gordura e a carne, separar ossos do crânio, o umbigo e o que mais for encomendado. Ao apotecário, cabe misturar essas partes humanas a plantas e mineiras, criando unguentos, pós e pílulas diversas, para curar basicamente tudo.

Com variações regionais, a cena acima já foi corriqueira por toda a Europa. Na Alemanha, como acima, os carrascos vendiam as partes aos apotecários. Na França, eles cortavam os atravessadores e vendiam direto ao povo. Na Inglaterra, onde as leis exigiam a devolução do corpo à família, raramente tinham essa oportunidade – e os cemitérios se tornavam o lugar onde colher material para curar os vivos.

Principalmente dos séculos 16 ao 18 – justamente quando traziam relatos horrorizados de povos “selvagens” devorando seus inimigos, como os astecas e os tupinambás do Brasil –, a Europa, se não foi o lugar mais canibal da terra, era o menos aquele onde cadáveres foram mais comercializados. Isso jamais aparece nos registros da época como “canibal” – termo do século 16, corruptela dos índios Caribes encontrados por Colombo. Ou mesmo o bom latim “antropófago”.

APROVADO PELA IGREJA

Porque, em nome da medicina, era algo visto como válido, civilizado. E de prestígio: no final século 15, o advogado Stefano Infessura registrou que o médico do Papa Inocente VIII, tentando salvá-lo em julho de 1492, subornou três crianças pobres na rua com a promessa de um ducado (moeda de ouro de cerca de 4g) para cada. O plano era uma sangria, o que era um procedimento extremamente comum, inclusive para o propósito de curar os outros. Mas, nesse caso, a sangria foi até a morte. O sangue das vítimas foi dado à sua santidade, que sorveu de sua cama. E morreu do mesmo jeito, dias depois.

O Rei Carlos II (1630-1683) da Inglaterra tinha sua própria receita: crânio humano moído numa tintura com álcool, que passou a ser chamada “Gotas do Rei” e, acreditavam ele e seus súditos, servia para curar tudo.

E são só dois casos entre dezenas. Deixemos com a palavra Leonardo da Vinci, em um de seus aforismas:

Preservamos nossa vida com a morte de outras. Numa coisa morta, uma vida inconsciente continua que, quando reunida com os estômagos dos vivos, recupera a vida intelectual e das sensações.

O canibalismo medicinal não era exclusividade dos europeus. Casos similares foram encontrados na China e Índia, entre outros. Já em Roma, o sangue e fígado dos gladiadores eram consumidos como uma forma de revitalização. Mas renasceu por um possível erro de interpretação tradução: lendo em manuais árabes de medicina, os médicos medievais foram procurar por certa “mummya” – termo árabe derivado de “mum”, cera. Era um tipo de betume mineral vindo da Pérsia, considerado uma cura para vários problemas, principalmente de pele.

Mas um material parecido podia ser encontrado nos corpos embalsamados dos antigos egípcios – uma material em abundância numa época em que tumbas e pirâmides ancestrais eram desmontadas para construir mesquitas. Assim, do material inorgânico persa, passaram a consumir o que vinha das múmias (agora você sabe de onde vem o nome). Por fim, o resto do corpo. Uma indústria clandestina na fonte se estabeleceu – o consumo de corpos humanos é proibido pela sharia e a atitude das autoridades variava entre leniência conivente e aplicar a pena de morte. Por séculos, múmias milenares cruzaram o Mediterrâneo para serem trituradas e ensacadas na Europa, onde eram consumidas. Inclusive, havia um mercado de falsificações: múmias de gatos, comuns no Egito, corpos recentes mumificados no deserto, corpos europeus tratados em fornos.

Por volta do século 17, as múmias originais começaram a rarear, e o preço subiu. Por essa época, “múmia” passou a constar nos manuais médicos medievais em diversas variações. “Múmia natural” ou “múmia transmarinha” era a resina original. “Múmia verdadeira” ou “múmia árabe” era o corpo de um egípcio há muito ido. E “múmia paracélsica” foi a solução para o preço alto.

A AUTORIDADE RECOMENDA

Paracelso (1493-1541) foi um dos médicos mais influente dessa era. Uma figura de transição, que tratou a medicina como algo místico e filosófico, como antes, mas também rejeitou diversas tradições em favor da observação empírica – particularmente em relação a remédios químicos (“a dose faz o veneno”, sua frase mais famosa). Paracelso não só era a favor da cura pelos corpos, como deu uma receita: um homem jovem, de 24 anos, saudável, morto de forma violenta, não doença. Sua carne deveria ficar exposta à luz da lua por uma noite e depois, preservada em ervas e sal e posta para secar ao sol. Basicamente uma forma de presunto humano (não, a gíria não deriva daí).

Mas, afinal, por que faziam isso? De acordo com o historiador britânico Richard Sugg, da Universidade de Durham, autor Mummies, Cannibals and Vampires: The History of Corpse Medicine from the Renaissance to the Victorians (sem versão em português), a principal fonte dessa matéria, é basicamente pela mesma razão que os nativos da América consumiam seus inimigos ou seus entes queridos: absorver algo deles. No caso, a “força vital”. Isso se mistura a uma visão de mundo cristã, na qual as criaturas seguem uma hierarquia e o ser humano é o ápice da criação – portanto, sangue, ossos e carne de animais não teria o mesmo poder. Algo visto na simbologia da eucaristia, o consumo da “carne e sangue de Cristo”, pois mais bárbara que interpretação possa parecer aos cristãos de hoje. Por fim, a ideia de que Deus já planejou tudo de antemão. “A fonte [da receita de Paracelso] deve ser jovem, saudável e prematuramente morta porque todos os seres vivos tem uma duração de vida predeterminada e, assim, há mais a se extrair do corpo”, escreve Sugg.

É consenso entre historiadores que a medicina canibal – ou canibalismo iátrico, para ficar no termo exato – começou a ficar para o passado junto com alquimia e as crenças religiosas aplicadas à ciência que a motivavam, na era do Iluminismo. Entre o povo, a crença demorou a morrer: na execução do Rei Luís XVI, em plena Revolução Francesa, em 1792, a turba correu ao cadafalso para embebedar lenços ou partes da própria roupa em seu sangue (até onde se sabe, para guardar como suvernires). Ainda em 1854 na Alemanha, um tumulto ocorreu numa execução, quando o povo tentou pegar o sangue do morto. O pó de múmia ainda era encontrado em farmácias europeias até o começo do século 20, quando passaram a ser tratadas como tesouro arqueológico, não matéria-prima para remédio. Sugg, porém, lembra do longo processo de jogar esse passado canibal para fora dos livros de história da medicina ocidental, justamente advindo do iluminismo, que tentou limitar a data dessas histórias à Idade Média.

Diante desse voraz, amplo, socialmente aceito, teologicamente justificado e eventualmente esquecido canibalismo europeu, soa hipócrita sua condenação das culturas indígenas? Para a antropóloga Beth Conklin, da Universidade Vanderbilt (EUA), é muito pior, pois a versão europeia tem um caráter mais cruel. “Uma coisa que sabemos é que praticamente toda a forma de prática canibal não ocidental é profundamente social, no sentido em que a relação entre quem come e é comido importa”, afirma, à Revista da Fundação Smithsonian. Isto é, comia-se os inimigos, entes queridos, sacrificados aos deuses. “No processo europeu, isso foi amplamente apagado e tornado irrelevante. Seres humanos foram reduzidos a simples matéria biológica equivalente a qualquer outro produto medicinal.”

]]>
0