Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Há 60 anos, cadelas se tornavam as primeiras criaturas a sobreviver ao espaço https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/19/belka-strelka-cachorras-espaco/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/19/belka-strelka-cachorras-espaco/#respond Wed, 19 Aug 2020 22:05:47 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/BelkaStrelka-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=601 Em 20 de agosto de 1960, as primeiras criaturas vivas voltavam do espaço… com vida. A famosa cadela Laika, que decolara no Sputink 2, em 3 de novembro de 1957, havia morrido de hiperaquecimento horas após o lançamento, quando a temperatura interna chegou a 43o C. Mesmo sem o calor, não havia qualquer chance para ela, porque sua nave não era nave. Era um satélite, que ficou meses no espaço, se desintegrando na atmosfera só em 14 de abril de 1958.

Quase 3 anos depois, os soviéticos estavam prontos para trazer de volta criaturas vivas. Ou quase: era a segunda tentativa. Na primeira, em 28 de julho de 1960, a nave se desintegrou logo após o lançamento, matando dois outros cachorros, Bars e Lisichka.

Às 8h44 da manhã, a Korabl-Sputnik 2, que ficaria conhecida como Spunik 5 no Ocidente, decolava de um míssil nuclear modificado R-7 Semyorka. No módulo Vostok 1, iam não só as duas cachorras, Belka e Strelka, como 40 camundongos, dois ratos e diversas plantas. Após 5 órbitas, às 6h da manhã do dia seguinte, a nave reentrava na atmosfera, para ser recuperada na Sibéria. Todos os ocupantes estavam vivos.

O surpreendente vem agora. Strelka, de volta ao centro de treinamento, teria um filhote com um cachorro chamado Pushok, que nunca chegou a ser mandado ao espaço. E um dos filhotes, uma cadela batizada de Pushinka, foi dada de presente ao presidente americano John Kennedy pelo premiê soviético. E aceita de coração, apesar da preocupação de agentes de segurança de que a cachorrinha tivesse algum tipo de grampo secreto. Ela teria mais quatro filhotes com um cachorro Chamado Charlie. Eventualmente, com a morte de Kennedy, a família passaria seus cães para amigos. Longe da Casa Branca, a linhagem da cadela espacial soviética segue viva nos EUA.

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1932 não teve revolução; teve guerra civil https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/07/09/1932-nao-teve-revolucao-teve-guerra-civil/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/07/09/1932-nao-teve-revolucao-teve-guerra-civil/#respond Thu, 09 Jul 2020 19:21:35 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/1932-2.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=565 O Brasil celebra hoje, 9 de julho, os 88 anos de um evento insólito: uma revolução que perdeu. E, por isso, não revolucionou nada.

A Guerra Civil de 1932 pretendia ser uma revolução. E não tinha nada de separatista. O plano era invadir o Rio de Janeiro para derrubar Getúlio Vargas, com a principal justificativa de estabelecer a democracia. A movimentação envolvia interesses da elite cafeeira e um bairrismo paulista meio esquecido, o do “povo bandeirante” que se acreditava fundador do Brasil e se sentia humilhado por uma série de interventores (governadores não eleitos) de outros estados, impostos pelo governo provisório que vinha desde 24 de outubro de 1930 prometendo justamente a democracia.

A revolta paulista não conseguiu o apoio de outros estados (crucialmente Minas Gerais), como esperavam seus líderes. Foi parada militarmente sem cruzar a fronteira com o Rio, invasão planejada para começar pela cidade de Resende, e se tornou uma causa perdida logo na primeira semana. Em 2 de outubro de 1932, os paulistas se renderam.

Em 3 de maio de 1933, os brasileiros foram convocados a eleger uma Assembleia Constituinte – exatamente no dia que já estava previsto antes da guerra começar. E essa Constituição, promulgada em junho de 1934, duraria pouco mais de 3 anos, até o autogolpe do Estado Novo impor uma carta de inspiração fascista – e aí não teve guerra nenhuma. Mesmo se é verdade que a Constituição só saiu mesmo por causa de 1932, mantido o status quo e com a constituinte partindo do governo provisório no Rio, seria no máximo uma “Pressão Constitucionalista”.

PRÊMIO DE CONSOLAÇÃO

Nossa esquisitice está no dicionário: no Michaelis, brasileiro, “revolução” pode ser sinônimo de mera revolta ou sublevação. No Priberam, português, só num sentido figurado. Mais para: “Menino, seu quarto está uma revolução!”.

A “Revolução” Constitucionalista tem precedentes na história brasileira. No Rio Grande do Sul, tem duas: a Farroupilha (1835 a 1845) e a Federalista (1895). Por outro lado, a “Guerra de Canudos” raramente é chamada de Revolução. A impressão é que os líderes serem ricos e influentes, terminando anistiados, determina o título histórico, mais que a natureza do movimento. Que “revolução” não descreve a natureza do movimento, mas serve de prêmio de consolação aos revoltosos, em nome da pacificação nacional.

São Paulo ganhou um baita prêmio de consolação, aliás. Usa como símbolo do estado a bandeira rebelde. que na verdade era uma proposta não aprovada de bandeira do Brasil. A Farroupilha também pode ser chamada de Guerra dos Farrapos, mas o nome “Guerra Paulista”, comum nos anos que se seguiram, raramente é usado. São Paulo é possivelmente (não conferi uma por uma) a única capital sem um logradouro central chamado Getúlio Vargas, como uma Avenida ou Praça Presidente Getúlio Vargas. No lugar disso, duas de suas maiores avenidas são a 23 de maio (dia da morte dos estudantes Mario Martins de Almeida, Euclides Miragaia, Dráusio Marcondes de Sousa e Antonio Camargo de Andrade, que deram origem à sigla M.M.D.C., movimento pela guerra) e 9 de julho (começo da guerra).

Os tempos são outros. A impressão é que acabou a era do “deixa disso”, a conciliação a qualquer custo que fazia com que o brasileiro visse a si próprio como criatura apolítica. Quem sabe seja a hora de darmos nome aos bois e chamar 1932 e outros eventos como o que foram: guerra civis. O Brasil as teve. E quem sabe essa conversa de brasileiro apolítico tenha sido mesmo um grande mito desde sempre. Não só 1932, mas as mudanças ilegais de regime em 1889, 1930, 1937 e 1964 estão aí de prova.

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A primeira vítima da ditadura militar: os militares https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/28/a-primeira-vitima-da-ditadura-militar-os-militares/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/28/a-primeira-vitima-da-ditadura-militar-os-militares/#respond Mon, 29 Jun 2020 01:04:39 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/marinheiros.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=542 O primeiro sangue derramado pela ditadura foi o do tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, morto em 4 de abril de 1964 por uma rajada de metralhadora pelas costas. Os tiros partiram de seus companheiros militares, por se recusar a apoiar o golpe. Sua posição de paciente zero foi reconhecida pela Justiça do Brasil em março de 2019.

Alfeu era parte de um grupo de vítimas da ditadura menos lembrado: o dos próprios militares. Quando a ditadura assumiu, imediatamente passou a um expurgo em suas forças, com o Ato Complementar nº 3, de 11 de abril, expulsando 122 oficiais de diversas patentes. Na alta cúpula, até 1966, seriam expulsos 24 dos 91 oficiais com patente de general ou equivalente. A perseguição atingiria, segundo a Comissão Nacional da Verdade, até 7.500 militares, entre expulsos, presos, torturados e assassinados.

E isso é outra parte menos lembrada do surgimento da ditadura: não era só uma disputa envolvendo João Goulart e a esquerda civil, de um lado, e os militares a direita civil, do outro. Era uma disputa também entre militares e militares. Havia uma ala pró-Goulart juntando nacionalistas e esquerdistas, que era forte na baixa patente, bastante ruidosa e teve suas vitórias. A própria posse de Goulart, em 1961, aconteceu em grande parte pelo apoio de militares dessa ala, que aderiram à Campanha da Legalidade de Leonel Brizola, contra a outra ala ameaçando fechar o congresso, segundo a denúncia do jornalista Carlos Lacerda, liderança conservadora que acabaria por apoiar o golpe em 64, para se arrepender. (A bem da verdade, a posse de Jango foi mais um “empate”: assumiu como presidente num regime parlamentarista aprovado às pressas, que seria revogado em janeiro de 1963 após um plebiscito.)

Nos anos que seguiram, os militares se polarizaram entre contra e a favor de Jango, culminando na Revolta dos Sargentos, em 12 de setembro de 1963, quando cerca de 600 militares de baixa patente se rebelaram em Brasília, prenderam adversários, inclusive um ministro do Supremo Tribunal Federal, cortaram as comunicações da cidade e tomaram o Departamento Federal de Segurança Pública e o Ministério da Marinha. A razão da revolta havia sido uma decisão do STF de considerar ilegal a eleição de militares a cargos legislativos em 1962. Esses militares representavam principalmente o movimento pró-Goulart.

Sem conquistar adesão em massa e por erros de comunicação, a revolta foi aniquilada. Seus líderes foram enviados a um navio-prisão na Baía de Guanabara.

Mas o clima de rebelião continuou. No que Elio Gaspari e diversos historiadores consideraram o principal estopim da ditadura, em 25 de março de 1964, foi a vez da Marinha. Em 24 de março, o almirante Sílvio Mota, ministro da marinha de João Goulart, decretou a prisão dos líderes da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, um sindicato considerado ilegal, que apoiava ferrenhamente o presidente. Em desafio, a associação celebrou seu aniversário no dia seguinte, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, com os líderes condenados. Os membros do Corpo de Fuzileiros Navais enviados para prendê-los aderiram ao movimento, como apoio de seu comandante, o vice-almirante vice-almirante Cândido Aragão. Humilhado, Mota pediu demissão, assumindo no lugar o almirante pró-rebeldes, pró-Jango, Paulo Mário da Cunha Rodrigues, que daria anistia a todos os rebelados no dia 27, para no dia 28 desfilarem pelas ruas do Rio. Mota, Aragão e Rodrigues seriam exonerados após o golpe. O vice-almirante dos fuzileiros, Aragão, aos seus 56 anos, chegaria a perder um olho sob torturas.

Assim foram os últimos dias da democracia. Os líderes do golpe deram também um golpe nas Forças Armadas. A guerra civil que nunca aconteceu foi ainda assim vencida e os militares à esquerda, destruídos. Sem o expurgo feito pela da direita militar, física e ideologicamente, das figuras militares que se opuseram ao golpe, seria difícil de imaginar quarteis ensinando ainda hoje que 1964 foi um “marco para a democracia“. Assim como o apoio com que um presidente como Bolsonaro ainda conta nas forças. Apologistas da ditadura raramente incluem em sua narrativa que os “comunistas” dos quais, a seu ver, salvaram a democracia, eram, em grande parte, outros militares.

A atual cultura militar do Brasil não é natural da profissão. É um legado da ditadura.

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Corrupção nazista: como Hitler comprou os generais https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/25/corrupcao-nazista-como-hitler-comprou-os-generais/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/25/corrupcao-nazista-como-hitler-comprou-os-generais/#respond Thu, 25 Jun 2020 14:39:25 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/konto.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=537 A falta de transparência das ditaduras anda de mãos dadas com a corrupção. Para se manter no poder, Hitler corrompeu oficiais graduados das forças armadas.

Aparentemente, nazistas e militares eram um casamento perfeito. Ambos queriam uma vingança contra a humilhação do Tratado de Versalhes, que desarmou a Alemanha após a Primeira Guerra. Com isso, acertar as contas com a inimiga dessa guerra, a França, e expandir o domínio da Alemanha pela Europa e pelo mundo. Ambos queriam uma ditadura militarista. E antissemitismo, se não exatamente um valor central à vida militar alemã, certamente não era impedimento.

Mas as forças armadas alemãs eram conhecidas por ser “um Estado dentro do Estado”. Ninguém menos que Otto von Bismarck, o chanceler considerado fundador da Alemanha Unificada, foi proibido de atender a reuniões do Supremo Conselho de guerra, por ser considerado civil. Os dois últimos anos da Primeira Guerra foram basicamente uma ditadura militar, num golpe silencioso por conta da incompetência que os militares viam no imperador Guilherme II e seu chanceler, Theobald von Bethmann-Hollweg. Era o “duumvirato” do marechal Hindenburg e ggeneral Ludendorff. Hinderbug acabaria por ser o homem a dar o cargo de chanceler a Hitler, em 30 de janeiro de 1933, selando o destino da Alemanha.

Mas, ao final do dia, Hitler continuava a ser um mero cabo plebeu, quando os oficiais graduados vinham da nobreza alemã – classe extinta com o fim da monarquia, mas obviamente na memória de seus membros. Diante de suas atrocidades – em vários casos, mais pelo desperdício de recursos que questão humana – e de sua condução desastrada e intempestiva da guerra, Hitler não pôde contar com a fidelidade incondicional de todos os militares. Antes mesmo de começar a guerra, já havia uma conspiração marcada para dar um golpe militar, a Conspiração Oster, liderada pelo general Hans Oster, que pretendia mater Hitler e restaurar o imperador Guilherme II para impedir que a Alemanha causasse outra guerra mundial. Estava para começar após a invasão da Checoslováquia, que podia precipitar a guerra – e fracassou porque o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain, deixou de graça, com Hitler ganhando as notícias como “exímio estadista”.

ENTRA O SUBORNO

Antes da guerra, e mais ainda durante, Hitler passou a molhar a mão dos oficiais com presentinhos como propriedades, carros, vultosos cheques e a liberação de impostos. Havia um fundo secreto para isso, chamado Konto 5 (“Conta 5”), que começou em 150 mil reichsmarks (RM) em 1933 (US$ 901.815,32 em dinheiro de hoje), e terminou em RM 40 milhões em 1945.  Oficiais ganhavam de RM 2 mil a RM 4 mil “por fora”, mais RM 250 mil no aniversário, para um salário de RM 24 mil de um general.

Hitler fazia questão de deixar claro que aquilo não era uma coisa oficial, mas um presente pessoal dele, mais ou menos ilegal, e que podia ser tirada a qualquer instante. Era uma forma de tornar a pessoa cúmplice num acordo desonroso, e dever fidelidade direto ao Fuhrer, não ao Estado. E funcionava: em julho de 1942, quando o marechal de campo Fedor von Bock, comandante de grupos importantes de exército nas invasões da Polônia, França e URSS, foi sacado de sua posição, a primeira coisa que perguntou é se continuaria a receber os cheques. Ao final, Hitler conseguiu prosseguir em sua campanha militar cada dia mais suicida. A tentativa de assassinato que sofreu em 20 de junho de 1942 partiu de uma minoria, e a razão maior era justamente que o país estava perdendo a guerra. Nenhum oficial ativo importante estava envolvido – Erwin Rommel, que seria eventualmente forçado a se suicidar em outubro de 1944, até onde se levantou, sabia do plano e fez vistas grossas, mas sua participação ficou no “apoio moral”.

Militares alemães, como os do resto do mundo, gostavam de se apresentar como uma reserva moral da nação. Mas, com uma generosa dose de suborno, foram dobrados a participar das atrocidades (e participaram, principalmente durante a invasão da URSS) e levar seu país à ruína. As forças armadas alemãs limpinhas, sem envolvimento nos crimes nazistas, é um mito do pós-guerra, de quando oficiais veteranos foram re-recrutados para as Bundeswehr, forças da Alemanha democrática,  em 1955, e os EUA olharam para o outro lado porque os ex (ou “ex”) nazistas eram adversários dos soviéticos.

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Ditadura, só de fotógrafos, disse general a dias do golpe de 64 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/05/28/ditadura-so-de-fotografos-disse-general-a-dias-do-golpe-de-64/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/05/28/ditadura-so-de-fotografos-disse-general-a-dias-do-golpe-de-64/#respond Thu, 28 May 2020 22:43:37 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/Kruel-1.jpg true https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=511 A ideia veio da angustiante especulação sobre qual seria a real posição das Forças Armadas numa possibilidade de golpe. Resolvi descobrir o que diziam os generais à beira do golpe de 1964. Particularmente, queria saber das possíveis (e prováveis) garantias dos generais de que não haveria golpe. Fiz isso por uma pesquisa no Acervo Folha.

Saí frustrado. “Golpe” nas notícias de então era só de esquerda: o golpe que supostamente o presidente João Goulart estaria prestes a dar em si próprio. Com uma irônica exceção:

Recorte da Folha 21/04/1964
Recorte da Folha em 21/03/1964, a 10 dias do golpe militar (Acervo Folha)

O porta-voz dos EUA garantia que o país era contra golpes. O final é profético: “Só saberemos a política de [Lindon] Johnson [presidente dos EUA] a respeito da democracia na América – disse um diplomata – quando houver um golpe de Estado”. Dias depois, os EUA mandariam um porta-aviões na direção do Brasil, para ajudar o grupo golpista numa possível guerra civil. A ajuda da Operação Brother Sam, como foi chamada, não foi necessária.

O mais perto de “garantia” que consegui encontrar por parte de militares brasileiros foi uma nota curtíssima, no dia anterior:

Recorte da Folha
Recorte da primeira página da Folha em 20/03/1964 (Acervo Folha)

Em 17 de março, num encontro com o ministro da Justiça de Jango, Abelardo Jurema, o general Amauri Kruel, responsável pelo II Exército, sediado em São Paulo, teve que posar mais de uma vez para a foto (a que abre  a matéria) retratando a suposta paz entre o Poder Executivo e os militares. Jurema falou que estavam se submetendo a uma “ditadura dos fotógrafos” e Kruel se saiu, sorrindo, com: “É a única ditadura que nós admitimos no país”.

Amauri Kruel aderiria ao golpe algo relutantemente: ligou duas vezes para Jango para tentar convencê-lo a excluir a esquerda do governo como forma de ter sua fidelidade. Segundo o depoimento do coronel do Exército reformado Erimá Pinheiro Moreira à Comissão da Verdade em 2014, Kruel foi subornado pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) para aderir ao golpe.

Se Kruel estava sendo sincero com Jango, sua condição tinha dois nomes: Jango devia remover do governo o chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, e ninguém menos que Abelardo Jurema, o ministro da Justiça com quem havia posado sorridente duas semanas antes. Após o golpe, o ministro teria seus direitos políticos cassados, pelo AI-1, e seguiria para o exílio. Isso torna a foto e a frase simbólicas.

Todo historiador sabe que é um erro pegar exemplos históricos para falar do presente. O que fiz foi uma pesquisa despretensiosa e primordial, que serve para um post, não uma tese. Mas, se esse pequeno achado ilustra alguma coisa, é a relação dos militares com o regime que criaram. Diz algo sobre a negação da natureza do regime pelos militares na época, tentando manter uma fachada democrática. E dos militares até hoje em admitir que “ditadura” é a palavra para o que seu regime foi.

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Stalin criou a teoria da conspiração de que Hitler sobreviveu https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/30/stalin-criou-a-teoria-da-conspiracao-de-que-hitler-sobreviveu/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/30/stalin-criou-a-teoria-da-conspiracao-de-que-hitler-sobreviveu/#respond Thu, 30 Apr 2020 23:16:50 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/HitlerEva-3.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=472 A história real não é consenso: Hitler se matou com uma cápsula de cianureto seguida por um tiro na têmpora em algum momento entre as 15h e 16h de 30 de abril de 1945. Seu corpo foi levado à saída do bunker e cremado a céu aberto, depois cremado mais um pouco e enterrado numa cova rasa numa cratera de explosão de artilharia soviética. Em 1º de maio, os alemães ouviram pelo rádio que Adolf Hitler estava morto e o almirante Karl Dönitz assumiria como presidente. No dia seguinte, as forças alemãs em Berlim se renderiam. A rendição final, de forças além de Berlim, só viria dia 8.

Desde a descoberta, o destino dos restos de Hitler ficou com os soviéticos. No dia 4 de maio, os restos de Hitler, Eva Braun, Blondi, a pastora alemã de Hitler, e outro cachorro não identificado foram encontrados pelo comandante soviético Ivan Klimenko. Eles foram levados ao centro de contra-inteligência (Smersh) no dia seguinte. Stalin desconfiou que seria um casal de impostores e restringiu toda informação. No dia 11, com a ajuda dos assistentes de seu dentista e seus registros, os soviéticos identificaram os restos como de Hitler. A mandíbula e os dentes que serviram de identificação foram enviados a Moscou, o resto, enterrados numa floresta em Brandenburgo.

Stalin aceitou a verdade. E passou a dizer que era mentira, declarando sua teoria pela primeira vez na Conferencia de Potsdam, em julho, que seria, por anos, a versão oficial soviética: Hitler havia fugido para a Argentina ou Espanha, com a ajuda dos Aliados ocidentais. O líder soviético, assim, é a origem das teorias da conspiração que circulam ainda hoje. Ainda em 1947, uma pesquisa revelava que a maioria dos americanos acreditava que Hitler estava vivo.

Os países ocidentais, que haviam replicado o comunicado dos alemães e aceito sua versão, ordenaram uma investigação ainda em novembro de 1945, que concluiu que era verdade: Hitler estava morto. Continuaram a realizar buscas até os anos 1950 e nenhuma revelou Adolf comendo alfajor em Buenos Aires.

Mas a pergunta é: o que Stalin queria com isso? Ele nunca explicou e historiadores discutem ainda hoje. Uma hipótese é que queria minar o apoio dos outros países à Espanha e Argentina, na qual o fascismo seguia vivo. Outra é que a ideia de Hitler vivo mantinha também vivo o espírito de ameaça que manteve o moral alto na guerra. E uma possibilidade bem mais mesquinha é que fosse uma rixa com o Marechal Georgy Jukov, chefe das forças soviéticas, que havia sido alçado à posição de herói nacional por seu sucesso. Jukov chegou a dizer aos aliados que o corpo de Hitler fora encontrado, para tomar uma bronca de Stalin e ser forçado a aderir à versão oficial.

Os exumaram os restos de Brandenburgo em fevereiro de 1946, quando partes do crânio foram enviadas a Moscou, onde estão hoje tudo o que restou de Hitler. O que sobrou foi reenterrado em outro local secreto em Magdeburgo. Em 1970, numa operação secreta, foram exumados mais uma vez, cremados, moídos, e jogados no Rio Biederitz. O plano de não haver sepultura pra Hitler evitar criar um santuário para neonazistas. E os soviéticos estavam certos: foi exatamente o que aconteceu com Mussolini.

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75 anos: Mussolini pendurado no posto de gasolina https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/28/mussolini-cabeca-para-baixo-posto-gasolina/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/28/mussolini-cabeca-para-baixo-posto-gasolina/#respond Tue, 28 Apr 2020 22:11:48 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/Mussolini_e_Petacci_a_Piazzale_Loreto_1945.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=467 A foto é brutalmente simples em sua mensagem: o ditador Benito Mussolini, que prometia ressuscitar o império Romano e se tornou um fantoche de um descendente dos bárbaros, terminava sua carreira pendurado pelos pés, como um porco no açougue.

Mussolini, oficialmente primeiro-ministro, governou a Itália entre 31 de outubro de 1922 e 25 de julho de 1943, quando, após a incursão aliada na Itália, foi deposto e preso. Em 23 de setembro de 1943, os nazistas os tiraram da prisão numa operação secreta. Então foi feito líder da República Social Italiana, também chamada República de Saló, por sua capital, uma pequena vila com esse nome na Lombardia, norte do país. Era a parte da Itália ainda controlada pelos nazistas, na qual aquele que havia inspirado Hitler agora era seu capacho.

O corpo na foto de 28 de abril de 1945 estava irreconhecível. Mas isso foi no pós-morte: ele havia sido deixado na Piazalle Loreto, praça próxima à estação central de Milão, e brutalizado pela multidão, que jogou vegetais, pedras, urinou e chutou os corpos dele e de sua amante, Claretta Petacci. Na madrugada do mesmo dia, havia sido executado a tiros de submetralhadora pelo partisan (membro das resistência) comunista Walter Audisio, após um julgamento sumário, ou, por algumas versões, nem isso: o líder partisan Urbano Lazzaro, que não estava presente na cena, mas a investigou posteriormente, afirmava que simplesmente haviam sido mortos quando Petacci tentou roubar uma arma de um partisan.

Seja lá como Mussolini tenha sido despachado, esse foi só o começo de uma longa e mórbida aventura pós-morte. Às 14h do mesmo dia, os americanos tiraram os corpos do posto de gasolina e os levaram para autópsia. Então, um fotógrafo militar capturou outra imagem, em cores, dos corpos de Mussolini e Petacci posando de braços dados. A foto é brutal demais para publicar sem aviso (e a que ilustra a matéria já é meio demais), então vai via link, clique aqui por conta e risco –dá para ver claramente o estrago na face do ditador. Os americanos testaram o casal para sífilis, que acreditavam poder ter causado sua “loucura”, mas deu negativo. O ditador foi enterrado numa cova não marcada num cemitério da cidade.

Em 21 de abril de 1946, domingo de Páscoa, pouco menos de um ano após sua morte, o corpo de Mussolini foi escavado pelo fascista Domenico Leccisi. E começou uma caçada por seu corpo, mudado de lugar em lugar, até ser “capturado”, em agosto do mesmo ano, num mosteiro Certosa di Pavia, perto de Milão. Faltava uma perna. Dois monges foram acusados de conspirar com o fascista.

O cadáver então movido, secretamente, para outro mosteiro, em Cerro Maggiore, e lá permaneceria até 19 de maio de 1957, quando assumiu como primeiro-ministro italiano o democrata cristão Adone Zoli. Ele havia sido partisan na guerra, mas então ascendera com apoio parlamentar da extrema direita –incluindo nada menos que Leccisi, o exumador, agora senador. Como concessão, o corpo foi devolvido para a família e enterrado em 1º de setembro na vila de Predappio, local de seu nascimento. Até hoje, um mausoléu com símbolos fascistas e uma tumba de pedra marcam ostensivamente o local. Todo dia, até centenas de fascistas convergem para fazer “turismo” na tumba, com 28 de abril marcando o auge.

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É na guerra que se muda de general, Maia! https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/10/guerra-muda-general/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/10/guerra-muda-general/#respond Fri, 10 Apr 2020 22:02:14 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/mcarthur-1.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=452 O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, afirmou em uma entrevista à Rádio Bandeirantes que acredita que o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, estejam a caminho de se entender, apesar da insubordinação do segundo ao plano/ideologia presidencial. Afirmou que Bolsonaro é militar e sabe que “no meio da guerra, mudar o general quatro estrelas não é o melhor momento”.

O nerd de história aqui ficou com seu radiador fervendo. E nem é sobre política, mas pela falta de lógica na frase que sabe-se lá de onde ele tirou. É justamente na guerra que se muda general, deputado! Devia ser óbvio. Na paz, um general incompetente pode bem ficar jogando bocha no quartel. Em guerra, a incompetência de um general leva à derrota e à mais completa ruína.

Quando um general é incompetente, pode acabar morto em campo de batalha, como Marco Licínio Crasso, membro do Primeiro Triunvirato que dominou de Roma, eliminado tolamente na Batalha de Carras, contra os partas, em 53 a.C. Outros preferem se retirar, como o também romano Varus, derrotado na Batalha da Floresta de  Teutoburgo (9 d.C.), ou o francês Pierre-Charles Villeneuve, perdedor da Batalha de Trafalgar (1805). Ambos preferiram se matar a enfrentar a reação em casa.

Porque a reação acontece. Em 106 a.C., Quinto Servílio Cepião foi condenado ao exílio e perda de cidadania romana por sua derrota em Aráusio, no ano anterior, que custara até 120 mil vidas romanas. Na Guerra Civil Americana, Lincoln teve que sacar George McClellan do comando, em 1862, por simplesmente se recusar a atacar. Na Primeira Guerra, a França passou por três comandantes: Joseph Joffre, removido por uma fragorosa derrota da Romênia em dezembro de 1916, Robert Nivelle, tirado em abril de 1917 pelo fracasso da ofensiva que leva seu nome, e, por fim, Philippe Pétain, com quem o país venceria, mas que, já velhinho, na Segunda Guerra, teria a desonra de atuar como o presidente marionete da França ocupada dos nazistas. Falando em Segunda Guerra, os soviéticos simplesmente executaram seu comandante da fase inicial, Dmitry Pavlov (ainda que alguns digam que Stalin estava só achando um bode expiatório). Na Guerra da Coreia, Douglas McArthur, visto como o grande vencedor do Teatro do Pacífico na Segunda Guerra, foi removido do cargo por insistir em querer escalar a guerra a ponto de planejar um ataque nuclear por conta.

E por aí vai. Em guerra, não existe essa conversa”estabilidade” – para que serviria estabilidade no caminho da derrota?

E aqui talvez aqui haja algo a dizer sobre a política de Maia – mas não estou pensando em Mandetta.

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Democracia tutelada: a maldição da Anistia https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/01/ditadura-anistia/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/01/ditadura-anistia/#respond Wed, 01 Apr 2020 20:33:22 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/Ditadura.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=423 O vice Mourão, que cada dia mais parece próximo a ser o próximo, apareceu ontem com um tweet de – não dá pra concluir de outra forma – apologia à ditadura militar:

Há 56 anos, as FA intervieram na política nacional para enfrentar a desordem, subversão e corrupção que abalavam as instituições e assustavam a população. Com a eleição do General Castello Branco, iniciaram-se as reformas que desenvolveram o Brasil.

Vamos tentar passar isso por um filtro de realidade: vivemos um regime civil iniciado em 1985 após uma ampla campanha pelo fim do que era chamado, nessa campanha, de ditadura. Uma nova constituição foi entregue, o que quer dizer que não foi reforma; foi revolução. Até a guerra civil que exigia uma constituição democrática ganhou o prêmio de consolação de ser chamada de “Revolução Constitucionalista” porque veio uma constituição (já prometida e na data marcada). Nosso regime é um sucessor espiritual da democracia anterior, a Quarta República de de JK e João Goulart, mas não da ditadura ou sua “revolução de 1964”, como preferia ser chamada.

O que Mourão está fazendo na prática é dar uma declaração de fidelidade a um regime antagonístico. E essa postura não tem nada de exótica nas Forças Armadas brasileiras, ainda que costume vir com uma reafirmação formal de sua submissão ao regime democrático. É o duplipensar militar: sob o comando de uma democracia, demonstram fidelidade a um regime que a destruiu a democracia, com se não houvesse contradição. É, não sei se o bom Godwin me permite a comparação, como se oficiais da Bundeswehr, as forças armadas da Alemanha democrática, saíssem fazendo declarações de que o nazismo era necessário. (Pra ficar claro: a comparação é da fidelidade errada, não entre os militares da ditadura e nazistas.) Para ficar num exemplo próximo e menos dramático: que oficiais da Argentina, Uruguai ou Chile demonstrassem fidelidade às suas ditaduras. Isso seria visto como absurdo por lá e devia ser aqui também. A condição para a existência de forças armadas democráticas é (ou devia ser) que não demonstrem simpatia a golpes militares. Caso contrário, fica a séria suspeita de constituírem não os defensores da democracia que dizem ser, mas uma quinta coluna à espera de atacar.

Essa é a Maldição da Anistia. Quando, em 28 de agosto de 1979, num gesto “generoso”, os militares perdoaram os que se opuseram ao seu regime, violentamente ou não, perdoaram a si próprios. Essa impunidade foi a imposição para que aceitassem sair do poder. Um gesto de intimidação à democracia antes da democracia começar. Durante toda a segunda metade dos anos 80, quando certo tenente Bolsonaro era acusado de entreter sua mente com explosivos, uma conversa de “inquietude nos quartéis” pairava como um cúmulo-nimbo sobre a liberdade reconquistada. Pairaria até pelo menos 1989, quando a conversa era que, se Lula vencesse, a ditadura voltava.

Foi sob essa “inquietude” – eufemismo para “intimidação” – que a Sexta República aceitou o autoperdão dos militares. E ouça, caro direitista: o fim da Anistia significaria realizar o sonho dos militares de também levar os crimes da esquerda a julgamento. Julgamento democrático, legal, constitucional; não morrer por um torturador decidindo ser juiz, algo que era proibido pelas leis da própria ditadura. Do jeito que foi, os militares preferiram simplesmente ficar de lado, com sua narrativa própria, na qual nos impuseram 21 anos de ditadura para salvar a democracia. Não se viram obrigados a assumir um real compromisso de fidelidade ao novo regime, que é aceitar o significado da mudança histórica para esse regime.

A quinta coluna continua a nos intimidar hoje: será que podemos reconhecer o absurdo, o ridículo que é precisarmos saber da opinião de generais para remover um presidente acusado de violar a Constituição e ser uma ameaça à saúde pública? De onde vem essa consulta? Que poder lhes dá a Constituição? Se nossa democracia é intimidada por essa mesma sombra desde 1985, se nossa democracia só existe como uma concessão dos militares, dá pra dizer que somos – ou fomos – uma democracia real? Um regime que nasceu intimidado, forçado a aceitar a Anistia. E que parece ter um limite sobre o que pode decidir, limite imposto por uma ameaça de uso ilegal da força.

Não estou sugerindo um grande expurgo em 1988. Voltando à Alemanha: a Bundeswehr nasceu em 1955 e fez uso de nazistas: não era exatamente fácil achar oficiais alemães sem um passado dez anos depois da guerra. Mas os nazistas tinham que fechar o bico e a revelação de um passado ou opiniões problemáticas dava escândalo e podia significar expulsão.

Dizem que a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude. Mas devíamos parar de subestimar o quanto a hipocrisia é algo superior à apologia ao vício. Hipocrisia é um problema pessoal; a apologia é de todos. Em 1988, o Brasil devia ter, no mínimo, imposto aos militares a hipocrisia.

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Fragging: assassinatos entre americanos e a derrota no Vietnã https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/02/16/fragging-historia-vietna/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/02/16/fragging-historia-vietna/#respond Sun, 16 Feb 2020 10:00:20 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/fragging-300x215.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=377 Para quem não viveu a época (eu incluso), o fim da Guerra do Vietnã tem algo de misterioso: como o Davi realmente venceu Golias? Por que os EUA desistiram e deixaram o Vietnã comunista ganhar por W.O, quando tombava um soldado seu para dez vietcongues?

O resumo mais aceito é que não havia mais clima político para isso. O que é vago e nebuloso –é difícil ver como hippies fazendo protesto podem fazer seu país perder uma guerra. Mas um fenômeno da guerra permite entender concretamente qual era o tamanho da desmoralização que fez com que os EUA perdessem: o fragging.

O nome vem das granadas de fragmentação (o icônico “abacaxi”) e a ação é simples: joga-se uma granada de fragmentação na tenda ou embaixo de sua cama de um oficial dormindo. E cabum! –o motim foi um sucesso. Não é possível identificar o autor facilmente porque a granada se espalha, sem deixar indícios de digitais, e, na confusão que se segue, todo mundo acaba se misturando. Além disso, os vietcongues faziam exatamente a mesma coisa, jogando granadas em tendas de americanos, tornando incerta a natureza do ataque. Por fim, mesmo quando a tropa sabia quem era o matador, pedir para quem está tão furioso quanto ele, ou tem medo dele, ser dedo-duro não era exatamente popular.

As razões para o fragging explicam como a guerra foi perdida. Havia uma diferença de geração entre oficiais e soldados: às vezes pouca, mas o suficiente para fazer valer o dito da época: “não confie em ninguém com mais de 30”. Os soldados não viam nenhum propósito na guerra, enquanto os oficiais haviam sido criados no anticomunismo dos anos 50. Os oficiais eram voluntários: estavam lá porque queriam. Os soldados eram recrutados à força, em sorteios transmitidos pela TV. Então, quando um oficial decidia ser o “John Wayne”, como diziam–arriscar a vida de todo mundo para ser visto como herói –ele se tornava alvo de fragging. E o “John Wayne” podia ser bem modesto: às vezes bastava fazer seu trabalho. Reprimir o consumo de drogas era particularmente impopular. Também havia questões raciais: oficial negro e subordinados brancos ou vice-versa. O general (negro) Colin Powell, secretário de Estado no governo de George W. Bush, afirmou que mudava seu colchonete de lugar toda noite, para não ser morto por granada. Segundo ele, por tentar reprimir drogas.

O historiador George Lepre, autor de Fragging: Why U.S. Soldiers Assaulted Their Officers in Vietnam (“Fragging: Por que os Soldados dos EUA Atacaram Seus Oficiais no Vietnã”) estimou no mínimo 900 casos, só entre 1969 e 1972, com 99 mortos. Outros casos ficaram na ameaça, verbal ou em fato, jogando uma granada não letal, de fumaça ou flashbang, como aviso. E quase certamente o número é sub-reportado: além do fragging poder ser atribuído a vietcongues, podia ser também praticado em campo, e aí com um mero tiro “mal-apontado”, não granada.

O fragging, além de ser um sintoma imenso de como os EUA desistiram do Vietnã, levou à mudança da estrutura das Forças Armadas dos EUA. Em 1973, o recrutamento compulsório foi encerrado e, desde então, a força é totalmente voluntária. Fragging continua a existir ainda hoje, e houve incidentes nas guerras do Afeganistão e Iraque –como em 2003, quando o sargento  Hasan K. Akbar jogou quatro granadas contra sua própria tropa. Mas a epidemia ficou no passado.

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