Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Os nazistas desarmaram o povo? https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/05/27/os-nazistas-desarmaram-o-povo/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/05/27/os-nazistas-desarmaram-o-povo/#respond Wed, 27 May 2020 23:50:19 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/NAzis.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=505 Na reunião revelada na semana passada, Bolsonaro falou em “armar o povo contra a ditadura“. É um argumento importado da direita americana, do movimento pró-armas baseado em sua interpretação da Segunda Emenda da Constituição do país. Nessa mesma conversa de ditadura, também surge o argumento de que tiranos desarmam suas populações antes de dominá-las – e inalteravelmente, como prevê Godwin, Adolf Hitler surge na conversa. Armamentistas levantam que Hitler desarmou a população/os judeus, permitindo o Holocausto. E você não quer isso, quer?

A repressão às armas na Alemanha é de antes do nazismo. Após a Primeira Guerra, a República de Weimar, a Alemanha democrática que se seguiu à monarquia, impôs, em janeiro de 1919, a proibição total de armas de fogo e seu confisco. Uma das razões era a paz negociada com os aliados, que exigia o desarmamento do país, firmada posteriormente no Tratado de Versalhes, em junho. Outra era a instabilidade política, movimentos violentos de veteranos contrários ao novo governo democrático, organizados nos Freikorps (“Corpos Livres”, “corpo” aqui no sentido de unidade de infantria), que também combatiam as tentativas de revolução comunista. O movimento nazista foi fundado por ex-Freikorps, como Heinrich Himmler, e outros veteranos de guerra antidemocráticos, como o próprio Hitler. Os nazistas mostraram a razão para as leis ao tentarem derrubar o governo democrático no Putsch da Cerverjaria de 1923, uma tentativa de insurreição armada.

A lei foi relaxada em 1928, permitindo a posse sob licença para cidadãos de “boa reputação”. Foi mantida pelo governo nazista, que começaria em 30 de janeiro de 1933, até uma nova lei em 18 março de 1938, que é a que os movimentos pró-armas costumam citar. A nova lei proibiu judeus de produzir e vender armas, mas também:

  1. Desregulou completamente as armas longas (espingardas e escopetas, que não podem ser ocultas);
  2. Desregulou e a posse de munição;
  3. Reduziu a idade mínima para comprar uma arma de 20 para 18 anos;
  4. Estendeu as licenças de um para três anos;
  5. Deu posse livre a membros do governo (de qualquer ramo) e do Partido Nazista.

Isto é: nazistas não liberaram completamente, mas facilitaram a aquisição de armas para a maioria dos alemães, com exceção dos inimigos do Estado, que sofriam inúmeras outras restrições (e só perderam mesmo a posse numa lei posterior, do fim do ano).

Os alemães, o povo que poderia ficar “contra a tirania”, eram massivamente a favor e a tirania facilitou a eles se armarem. Quanto aos judeus, eram por volta de 0.5% da população alemã. É absurda a ideia de que poderiam se defender contra os outros 99,5% com armas de pequeno calibre (dados os números, nem que fossem porta-aviões). Entidades judaicas, como a Liga Anti-difamação dos EUA, condenam como um acinte a ideia de que o Holocausto poderia ter sido evitado se judeus pudessem, como nos EUA, comprar pistolas no supermercado.

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Thyphoid Mary: sem ficar doente, ela matou dezenas https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/27/thyphoid-mary-sem-ficar-doente-ela-matou-dezenas/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/27/thyphoid-mary-sem-ficar-doente-ela-matou-dezenas/#respond Fri, 27 Mar 2020 21:44:52 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Mallon-Mary_01.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=412 Seu nome era Mary Mallon e ela era, como muitos milhares, uma imigrante da Irlanda para Nova York. Seu país perderia, naquele século 19, um terço de sua população para a fome, e um terço para a emigração. Aos seus 21 anos, em 1900, ela daria início a uma meteórica carreira de cozinheira para os grã-finos nova-iorquinos. Aparentemente, ela era excelente no que fazia: pelos anos que se seguiriam, trabalho nunca faltaria. Mesmo matando, sem querer, talvez dezenas de seus empregadores.

Já em seu primeiro emprego, após duas semanas de trabalho, as pessoas da casa pegaram febre tifoide: uma doença intestinal grave causada por bactérias do gênero Salmonella, uma cepa específica, que não é a mesma que pode contaminar ovos de galinha. A tifoide é letal em até 20% dos casos, o que pode ser diminuído para 1% com tratamento moderno – mas não de 1900. Passa de pessoa em pessoa pela rota fecal-oral, o que é tão ruim quanto soa: o contágio se dá por alimentos contaminados por fezes do doente. Mary Mallon, uma portadora completamente assintomática, podia ser a rainha dos temperos, mas higiene não era seu forte.

No segundo emprego, no ano seguinte, Mallon causaria a primeira morte: a lavadeira da família. No terceiro, na casa de um advogado, sete dos oito membros da família ficaram hospitalizados. E o padrão continuaria por toda sua carreira: Mary arranja um emprego, todo mundo fica doente, Mary some e arranja emprego em outro lugar. Sempre arranjava.

Foi preciso um detetive biológico para acabar com seu rastro de doença: o engenheiro sanitário George Soper, contratado por uma das famílias afetadas, entrevistou as vítimas e traçou uma rota da doença em Nova York. Só famílias ricas pegavam, não havia uma epidemia. Concluiu que a cozinheira era a responsável, entrou em contato e tentou pedir que ela que colaborasse com um exame de fezes, para ser recusado repetidas vezes. Até mesmo propôs a escrever um livro com ela e dividir os direitos autorais, mas Mary tratava a ideia de estar contaminando as pessoas como um insulto. Em 1907, acabou internada à força pela autoridade sanitária de Nova York, baseada no trabalho de Soper, e ficaria três anos em quarentena num sanatório em North Brother Island. Na imprensa nova-iorquina, ganharia a alcunha pela qual entraria na história: Thyphoid Mary, a Maria Tifoide.

Em 1910, sob a promessa de nunca mais atuar como cozinheira, Mallon libertada. Por anos, ela tentou cumprir a promessa, atuando como lavadeira, mas o dinheiro não era o bastante e ela não conseguia satisfazer sua vocação. Mudando de nome para Mary Brown, e depois vários outros nomes falsos, conseguiu ser novamente empregada como cozinheira. Um novo ciclo de contaminação começou, e, desta vez, o investigador Soper não conseguiu encontrá-la. E Typhoid Mary acabou ousando: seu último emprego seria em nada menos que um hospital: o Hospital Sloane para Mulheres. Quando 25 pessoas ficaram doentes, e duas morreram, em novembro de 1915, a polícia foi acionada e a cozinheira acabou presa de volta no antigo asilo.

Maria Tifoide passaria o resto da vida, até 1937, em quarentena. Oficialmente, três mortes foram ligadas diretamente à ela, mas estimativas de alguns historiadores, considerando todos os casos entre os ricos de Nova York, chegam a 50 vítimas fatais.

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Para o bolsolavismo, hoje é o dia do Ki-Suco https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/15/bolsolavismo-protesto-jim-jones/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/15/bolsolavismo-protesto-jim-jones/#respond Sun, 15 Mar 2020 18:55:31 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Jones-300x215.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=404 É quase um clichê na oposição comparar o bolsolavismo fanático com uma seita. Mas hoje, quando os mais exaltados fãs vão às ruas manifestar-se contra as instituições no começo de uma epidemia, a coisa assume um sentido literal. Em nome do líder, que apareceu para apoiar o movimento, entregam-se potencialmente à própria morte —e a faixa etária dos manifestantes torna o risco bem concreto. Neste dia, os bolsolavistas estão tomando Ki-Suco.

A expressão “tomar o Ki-Suco” nasceu em 18 de novembro de 1978, quando o líder da seita Templo do Povo, Jim Jones, ordenou que fossem preparados tambores industriais de refresco de uva (a marca não era Ki-Suco, chamado de Kool Aid em inglês, mas Flavor Aid). Dentro, foram colocados diazepan, hidrato de cloral, prometazina e cianeto de potássio (só o último é um veneno propriamente dito, os três primeiros são sedativos). Os membros da seita fizeram fila para tomar o refresco, após o que se sentavam no chão e morriam em 30 minutos (5 para crianças). Ao final do dia, havia 918 mortos em Jonestown, uma chácara na Guiana rural, transformada em sede da seita, cercada e vigiada com guaritas, como um presídio.

O que as pessoas não costumam saber sobre Jonestown é que não foi simplesmente todo mundo andando para a morte calmamente. Os primeiros não tinham certeza se era mesmo veneno —muitas vezes antes, nos últimos meses, Jones havia ordenado o mesmo ritual, como um teste de fidelidade, sem usar veneno. Havia seguranças armados garantindo que todos tomassem sua parte —e, de fato, os seis sobreviventes que conseguiram escapar afirmaram ter ouvido tiros. Jones em si se matou com um tiro de revólver na cabeça.

A seita gerou uma cena dantesca, num século repleto de cenas assim, de quase mil cadáveres espalhados no chão, se decompondo visivelmente no calor equatorial. Mas as mortes pararam ali. O bando de fanáticos irresponsáveis comandados por um presidente irresponsável não está só tomando o Ki-Suco, mas forçando, como os seguranças de Jonestown, os outros a tomar.

Possivelmente dando um baita empurrão na epidemia de Covid-19 que não fazemos ideia de qual tamanho já tem —como leva até duas semanas para se manifestar, milhares podem já estar contaminados. Não vai terminar bem.

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Fragging: assassinatos entre americanos e a derrota no Vietnã https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/02/16/fragging-historia-vietna/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/02/16/fragging-historia-vietna/#respond Sun, 16 Feb 2020 10:00:20 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/fragging-300x215.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=377 Para quem não viveu a época (eu incluso), o fim da Guerra do Vietnã tem algo de misterioso: como o Davi realmente venceu Golias? Por que os EUA desistiram e deixaram o Vietnã comunista ganhar por W.O, quando tombava um soldado seu para dez vietcongues?

O resumo mais aceito é que não havia mais clima político para isso. O que é vago e nebuloso –é difícil ver como hippies fazendo protesto podem fazer seu país perder uma guerra. Mas um fenômeno da guerra permite entender concretamente qual era o tamanho da desmoralização que fez com que os EUA perdessem: o fragging.

O nome vem das granadas de fragmentação (o icônico “abacaxi”) e a ação é simples: joga-se uma granada de fragmentação na tenda ou embaixo de sua cama de um oficial dormindo. E cabum! –o motim foi um sucesso. Não é possível identificar o autor facilmente porque a granada se espalha, sem deixar indícios de digitais, e, na confusão que se segue, todo mundo acaba se misturando. Além disso, os vietcongues faziam exatamente a mesma coisa, jogando granadas em tendas de americanos, tornando incerta a natureza do ataque. Por fim, mesmo quando a tropa sabia quem era o matador, pedir para quem está tão furioso quanto ele, ou tem medo dele, ser dedo-duro não era exatamente popular.

As razões para o fragging explicam como a guerra foi perdida. Havia uma diferença de geração entre oficiais e soldados: às vezes pouca, mas o suficiente para fazer valer o dito da época: “não confie em ninguém com mais de 30”. Os soldados não viam nenhum propósito na guerra, enquanto os oficiais haviam sido criados no anticomunismo dos anos 50. Os oficiais eram voluntários: estavam lá porque queriam. Os soldados eram recrutados à força, em sorteios transmitidos pela TV. Então, quando um oficial decidia ser o “John Wayne”, como diziam–arriscar a vida de todo mundo para ser visto como herói –ele se tornava alvo de fragging. E o “John Wayne” podia ser bem modesto: às vezes bastava fazer seu trabalho. Reprimir o consumo de drogas era particularmente impopular. Também havia questões raciais: oficial negro e subordinados brancos ou vice-versa. O general (negro) Colin Powell, secretário de Estado no governo de George W. Bush, afirmou que mudava seu colchonete de lugar toda noite, para não ser morto por granada. Segundo ele, por tentar reprimir drogas.

O historiador George Lepre, autor de Fragging: Why U.S. Soldiers Assaulted Their Officers in Vietnam (“Fragging: Por que os Soldados dos EUA Atacaram Seus Oficiais no Vietnã”) estimou no mínimo 900 casos, só entre 1969 e 1972, com 99 mortos. Outros casos ficaram na ameaça, verbal ou em fato, jogando uma granada não letal, de fumaça ou flashbang, como aviso. E quase certamente o número é sub-reportado: além do fragging poder ser atribuído a vietcongues, podia ser também praticado em campo, e aí com um mero tiro “mal-apontado”, não granada.

O fragging, além de ser um sintoma imenso de como os EUA desistiram do Vietnã, levou à mudança da estrutura das Forças Armadas dos EUA. Em 1973, o recrutamento compulsório foi encerrado e, desde então, a força é totalmente voluntária. Fragging continua a existir ainda hoje, e houve incidentes nas guerras do Afeganistão e Iraque –como em 2003, quando o sargento  Hasan K. Akbar jogou quatro granadas contra sua própria tropa. Mas a epidemia ficou no passado.

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São Valentim: por que, no resto do mundo, hoje é Dia dos Namorados https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/02/14/sao-valentim-dia-namorados/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/02/14/sao-valentim-dia-namorados/#respond Fri, 14 Feb 2020 21:44:16 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/valentino-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=380 Talvez você tenha visto num site do exterior, talvez alguma promoção por aqui: hoje, não 12 de junho, é o Dia dos Namorados do resto do mundo. Ou melhor: não é Dia dos Namorados; é dia de São Valentim. Dia celebrado não só nos States, mas em Cuba, Colômbia, Argentina, Portugal e Angola, para ficar em exemplos mais próximos.

São Valentim, enquanto santo, é um caso complicado. São na verdade dois santos em 14 de fevereiro: São Valentino de Roma, morto em 269, e São Valentino de Terni, em 273. Ambos são mártires cristãos da perseguição romana e, apesar de muitas lendas criadas posteriormente, depois da associação da data com namorados, não tem realmente nada que ver. A Igreja Católica tirou suas celebrações do calendário oficial em 1969, deixando-a para congregações locais. A justificativa é que não sabe nada realmente consistente sobre o(s) santo(s), exceto a data de sua morte.

A associação do misterioso santo que são dois surgiu com o (ou ao menos foi registrada pela primeira vez pelo) trovador medieval inglês Geoffrey Chaucer. Seu poema Parlamento das Aves (1382), incluiu os versos: “Pois assim foi no Dia de São Valentim/Quando toda ave ali vai escolher seu par” (capenga tradução minha).

Chaucer queria dizer o Dia de São Valentim marcava uma época romântica do ano, porque é quando as aves cantam e se reproduzem, e relacionou isso a casais humanos, num exemplo do ideal do amor cortês da literatura medieval. Mas isso não tem nada a ver com o santo, mas a época do ano. As explicações baseadas na vida do santo (da qual nada se sabe), ou um antigo feriado romano, são mitos criados depois dessa associação.

São Valentim virou o dia dos namorados nos países anglo-saxônicos, que herdaram a cultura de Chaucer, e só começou a estourar mesmo no século 19, quando surgiu a indústria de cartões de São Valentim, que movem o feriado nos EUA e Inglaterra até hoje. Os outros países pegaram por contágio cultural, como o Halloween – e o Brasil também pegou, mas é uma história curiosa.

O São Valentim foi importado pelo publicitário João Doria (João Agripino da Costa Doria Neto), pai do atual governador de São Paulo, João Doria Jr. Em 1949, ele recebeu uma encomenda da Exposição Clipper, uma loja de roupas no centro de São Paulo, para agitar as vendas na metade do ano, período até então meio morto nas vendas. Foi assim que o publicitário lançou a campanha para criar o São Valentim brasileiro.

Anúncio original do Dia dos Namorados
Anúncio original do Dia dos Namorados, 1949 (Reprodução)

Escolheu 12 de junho, um dia antes do dia de Santo Antônio, tido por casamenteiro, mas não o dia do santo em si, que é uma nada romântica festa junina. Sem cartões, mas presentes em geral. Apesar de a campanha dizer que “no mundo inteiro as criaturas se amam “, estamos sozinhos nessa: 12 de junho só tem a ver com namorados por aqui.

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As armas nucleares trouxeram a paz? https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/29/as-armas-nucleares-trouxeram-a-paz/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/29/as-armas-nucleares-trouxeram-a-paz/#respond Wed, 29 Jan 2020 23:25:00 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/Castle_Bravo_007-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=368 A “paz” atômica é uma realidade da Guerra Fria que continua até hoje. Sim, hoje, mesmo depois de acordos terem reduzido o arsenal nuclear mundial em 95% – de 70.300 em 1986 para 3.750 em 2019, dos quais 1.750 pertencem aos EUA e 1600 à Rússia, pelo relatório do Instituto Internacional de Pesquisas da Paz de Estocolmo.

A única vez em que dois países com armas nucleares entraram em confronto foi na Guerra de Kargil, entre maio e julho de 1999, quando Índia e Paquistão lutaram por uma região de fronteira. Apesar de declarações ambíguas dos dois lados, que davam a entender a possibilidade do uso das armas nucleares, a intensa oposição diplomática internacional contra o Paquistão, que havia começado a guerra, fez com que o país desistisse.

Essa tensa situação é a chamada MAD (Mutually Assured Destruction, “Destruição Mútua Assegurada”). A ideia é simples: “eu morro, você morre”. Se um país atacar outro com armas nucleares, é destruído por armas nucleares. E a maior prova de que a MAD funciona é o quanto os países tentaram acabar com ela.

CORRIDA CONTRA A PAZ

Em 1949, quatro anos e 20 dias depois da bomba de Hiroshima, a União Soviética fez seu primeiro teste nuclear. Quando isso aconteceu, os países tinham o mesmos método para atacar com armas nucleares: bombardeiros. Isso foi mudado em 4 de outubro de 1957, quando o lançamento do Sputink 1, o primeiro satélite artificial, causou pânico nos EUA. Foi entendido que, se os soviéticos podiam colocar uma esfera de aço no espaço, podiam também alcançar os EUA com mísseis nucleares. E era exatamente isso: o lançador do satélite era uma versão modificada do foguete R-7 Semyorka, o primeiro míssil balístico intercontinental (ICBM), capaz de sair da URSS e atingir o território americano pelo espaço. Os EUA correram atrás e conseguiram lançar sua versão, o Atlas, em novembro do ano seguinte.

A chamada corrida armamentista foi, e é, mais que criar armas, dar um jeito de acabar com a MAD, seguido por acabar com o jeito que inventaram para acabar com a MAD. Cada país queria ter a capacidade de atacar primeiro. Um “ataque decapitador” cujos alvos prioritários não eram cidades e populações civis, mas instalações nucleares adversárias e centros de comando, cuja localização era ao menos parcialmente conhecida por satélite e aviões espiões. E uma escapatória foi continuar a usar aviões: entre 1960 e 1968, os EUA mantiveram uma frota armada de de bombardeiros B-52 no ar indefinidamente, numa rota que se aproximava do espaço aéreo soviético. Outra são submarinos nucleares, impossíveis de detectar, que circulam armados pelos oceanos até hoje. Aviões, ICBMS e submarinos formam a tríade nuclear possuída por Rússia, China, EUA, Índia e, possivelmente, Israel.

Outra tentativa de burlar a MAD foi instalar armas mais perto, mísseis de médio ou curto alcance. Um ICBM leva meia hora até atingir seu alvo, enquanto um próximo pode fazer isso em questão de minutos, não dando tempo para reação. Quando os EUA instalaram mísseis na Turquia, a URSS reagiu instalando em Cuba – levando à Crise dos Mísseis de 1962, o mais próximo que o mundo chegou da aniquilação nuclear, e terminou com ambos retirando seus mísseis.

O equilíbrio também é ameaçado por sistemas antimíssil, uma ideia tão antiga quanto os mísseis, desenvolvida em paralelo. Basicamente, são mísseis (antigamente nucleares) que explodem no espaço, destruindo os mísseis rivais. Os EUA criaram os mísseis Nike-Zeus em 1961 e os soviéticos, que começaram o trabalho em 1959, puseram seu A-35 em operação em 1971. Ainda que seja uma medida defensiva, se um país a possui, pode atacar impunemente. Se ambos a possuem, não tem mais paz atômica.

A reação, antes mesmos de os mísseis antimíssil soviéticos ficaram prontos, foi criar os veículos múltiplos de reentrada (MIRV): um míssil que se reparte em vários outros.  Isso quer dizer que, para cada míssil, o inimigo precisa criar até 10 outros mísseis antimíssil – e, na Guerra Fria, falávamos de caríssimos mísseis nucleares.

DE VOLTA À CORRIDA

A tecnologia criou uma situação insustentável para ambos os lados. Em 1972, EUA e União Soviética firmaram um acordo limitando o número de mísseis antimíssil. Em 1993, depois do fim da URSS, foi feito um acordo anti-MIRV entre Rússia e EUA, que previa o banimento total, mas nunca foi concluído. Ambos terminaram cancelados em 2002, quando os EUA abandonou o primeiro e a Rússia anunciou que iria ignorar o segundo.

Novos acordos se seguiram, os arsenais diminuíram, mas continuamos numa situação em que dois países com mais de 1600 armas – só as ativas, não as que podem ser montadas em questão de dias ou estocadas desde a Guerra Fria – tentam criar formas como poderiam aniquilar o outro primeiro.

Estamos vivendo uma nova, se mais discreta, corrida armamentista. Em 2009, o presidente dos EUA Barack Obama anunciou um reforço ao sistema AEGIS antimíssil, que usa antimísseis mais baratos que armas nucleares, programa que segue em desenvolvimento ainda hoje. A Rússia, por seu turno, está desenvolvendo o ICBM RS-28 Sarmat, pensado para levar 15 ogivas em MIRV e burlar defesas antimíssil de diversas formas, como dividindo sua carga antes de ser interceptado e contando com um sistema antimíssil ele próprio.

O que nos leva, finalmente, de volta à pergunta do título. Além da Crise dos Mísseis, a Guerra Fria teve várias passagens assustadoras, como, em 26 de setembro de 1983, quando o coronel soviético Stanislav Petrov recebeu um alerta de seus equipamentos, mostrando que os EUA tinham disparado mísseis. Isso o obrigava a iniciar um ataque de retaliação, algo que ele simplesmente se recusou a fazer, por ter um palpite que o alarme era falso. Era, mas o mundo foi salvo da aniquilação por alguém não seguindo o plano. E esse é um entre ao menos 10 eventos semelhantes em ambos os lados.

Existe também a possibilidade de uma arma nuclear de algum país cair nas mãos de grupos terroristas. Essa é contrabalançada pela possibilidade de detectar a “assinatura” de um ataque atômico, características que permitem saber qual país fez a arma. Mas é uma defesa tênue.

Enfim, o que a história demonstra é que armas nucleares não garantem a paz. Garantem a paz nuclear. Que é outra coisa: uma paz que pode ser a causa da guerra. Se não foi ainda, é em boa parte por pura sorte.

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Em 1970, Brasil tinha uma ditadura mais repressiva que a da URSS, afirma estudo da CIA https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/17/estudo_cia_polity_brasil_urss/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/17/estudo_cia_polity_brasil_urss/#respond Fri, 17 Jan 2020 22:35:10 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/880px-golpe_de_1964-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=355 Comentando sobre a ausência de questões no Enem sobre a ditadura militar, o ministro da Educação Abraham Weintraub afirmou hoje que é um tema “polêmico” e “não há pacificação sobre o que aconteceu”. Ele não explicitou qual é a polêmica exatamente, mas o fato é que a ditadura brasileira é tão “polêmica” para o resto do mundo quanto o Genocídio Armênio é “polêmico” fora da Turquia.

Vamos trazer um exemplo que não podia ser menos de esquerda: a CIA. Essa mesma, a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos. A fonte pública da CIA afirma que o que, há 50 anos, o Brasil não só era uma ditadura, quanto extremamente repressiva. De fato, mais que a União Soviética ou Cuba na mesma época.

O diretor atual do Estudo explica por que, mas primeiro vamos ao estudo em si.

Usado pela agência e também referência para o próprio governo americano, o estudo Polity, atualmente na versão 4, teve início nos anos 1960, pelo trabalho do falecido cientista político Ted Robert Gurr (1936-2017), da Universidade de Maryland. Ele classifica o tipo de regime dos países do mundo. O trabalho de Gurr foi bancado pela CIA e a versão atual é feita pela ONG Center for Systemic Peace (“Centro para Paz Sistêmica”), criada e patrocinada pela Political Instability Task Force (“Força-tarefa da Instabilidade Política”), fundada também pela CIA, em 1994.

O Polity dá uma nota entre -10 e 10, de absoluta ditadura a absoluta democracia. Ou, pelos termos do estudo:  democracia (6-10), anocracia aberta (1-5), anocracia fechada (-1 a -5) e autocracia (-6 a -10). Anocracia querendo dizer um regime híbrido, nem democracia, nem ditadura total. Em sua última edição, cobrindo até 2013, o Brasil levava uma nota 8 e a Venezuela, 4.

Nos tempos da ditadura, entre o AI-2 e a abertura de Geisel, o Brasil tem uma nota -9. O que quer dizer autocracia absoluta, a mesma nota da União Soviética no fim do regime Stalin e da China durante a Revolução Cultural.

Gráfico Polity IV do Brasil
O gráfico do Brasil mostra uma democracia em queda, a ditadura e a abertura (Reprodução)

Na mesma época, a União Soviética levava -7:

Polity IV Russia
O gráfico da Rússia mostra uma ligeira melhora após a morte de Stalin, em 1953 (Reprodução)

Assim como Cuba:

Polity IV Cuba
Relatório de Cuba mostra a ditadura atual e a anterior, de Fulgéncio Batista (Reprodução)

Os únicos a ganhar -10 são a Coreia do Norte e o Haiti de Baby Doc Duvalier.

O Polity IV não conta mortes, mas a situação política de um país. E, em seu relatório, usa o termo “ditadura militar” para explicar o tipo de regime brasileiro, sem qualificação adicional. Monty G. Marshall, diretor atual do Centro para Paz Sistêmica, explica as razões para a nota tão baixa: “[O estudo] Polity não mede especificamente repressão, mas ele nota a coerção em determinar política pública ou limitar competição política. Em geral, ditaduras militares são semelhantes a Estados hegemônicos de partido único. Elas via de regra têm um sistema se auto-seleção para o Executivo ou autoridade designada para o Executivo”. A ditadura brasileira confirmava seus generais no Congresso, mas qual seria o “candidato” marcado para ganhar era escolhidos em decisão interna da cúpula militar. Quanto à comparação com a União Soviética, é a de uma ditadura ativa para uma que já havia sido pacificada. “O grau de repressão nas autocracias é uma função da intensidade do dissenso entre ativistas de oposição, no lugar de uma forma específica de autoridade executiva. Repressão sempre é aplicada por forças de seguranças leais em resposta a provocações reais ou percebidas. Autocracias podem evitar repressão aberta quando os elementos da sociedade civil se mantém obedientes ou inativos.”

Sobre a questão eleitoral da ditadura, a de que havia um sistema com um partido de oposição permitido e eleições regulares – geralmente levantada por seus apoiadores para negar seu status de ditadura – Monty diz que é irrelevante: “É a intenção do sistema de classificação Polity garantir que pseudo ‘democracias’recebam nota de acordo com suas práticas, não suas ‘fachadas’. Muitos regimes personalistas e de partido único tentam aumentar as percepções de legitimidade por procedimentos eleitorais que são controlados pelo regime. Desde a queda do comunismo soviético, essas ‘fachadas democráticas’ foram entendidas por autocratas como uma farsa necessária para abrandar a crítica internacional. Mas essa expectativa de penduricalhos democráticos parece estar retrocedendo em anos recentes.”

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Onde estarão ‘golfinhos assassinos comunistas’ do Irã? https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/10/ira-golfinhos-assassinos-comunistas/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/10/ira-golfinhos-assassinos-comunistas/#respond Fri, 10 Jan 2020 22:49:51 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/Parc_Asterix_22-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=345 Com esse nome mesmo, “golfinhos assassinos comunistas”: a notícia saiu no site miltary.com, passou a tabloides britânicos e está se espalhando. O Irã poderia ser portador de uma arma secreta: golfinhos da ex-URSS treinados para matar. Matar horrivelmente.

As notícias são especulativas. Mas golfinhos assassinos comunistas – e capitalistas – têm uma história que merece ser contada e involve o Irã. Há razões para acreditar que o país possa ter seus golfinhos assassinos… jihadistas? Khomeinistas?

Golfinhos militares são reais. Eles existem há mais de 5 décadas. Em 1960, a marinha dos EUA capturou golfinhos para um estudo sobre hidrodinâmica, a ser usado em novos modelos de torpedos. Rapidamente, os cientistas notaram como eram extremamente amigáveis e dispostos a aprender. Assim, em 1962, um segundo programa foi começado, para testar as capacidades militares dos animais. Não só golfinhos de diversas espécies, como belugas, orcas e leões-marinhos foram testados. No final, leões-marinhos e golfinhos nariz-de-garrafa foram escolhidos, num programa que foi empregado nas guerras do Vietnã, do Golfo e do Iraque.

Nós não somos um animal marinho; eles são. Golfinhos são imensamente superiores a humanos embaixo d’água. Eles se orientam por ecolocalização, “vendo” no escuro ou em águas turvas. Com isso, conseguem achar objetos e, principalmente, pessoas com uma facilidade muito maior que qualquer equipamento ou mergulhador. Nas ações da Marinha dos EUA, eles disparam boias localizadoras próximas a minas aquáticas ou objetos perdidos no mar, ou prendem sinalizadores em mergulhadores inimigos, por meio de uma suave narigada. Os “soldados” voltam para avisar seu treinador e ganham um peixe. E para por aí: quem mata, se precisar, são humanos, que jogam granadas submarinas contra o mergulhador.

Os americanos afirmam jamais ter pesquisado o uso letal de mamíferos marinhos. Dizem que não conseguem diferenciar civis de militares, nem amigos de inimigos. Mas dissidentes, como o ex-treinador da Marinha Michael Greenwood, que fez sua denúncia em 1977, afirmam que houve, sim, pesquisas de armas letais, que incluíram tentar criar golfinhos kamikaze.

Nessas denúncias, uma arma particularmente escabrosa: uma agulha ligada a um tubo de gás carbônico comprimido, perfurando o torso do inimigo humano numa narigada. O gás faria o mergulhar inflado boiar até a superfície sem controle. Na prática, seria menos Looney Tunes e mais Faces da Morte. “Eles iriam para a superfície”, afirmou o conservacionista Doug Cartlidge, consultor da Sociedade Europeia de Cetáceos, em entrevista para a ukdiving.com. “Claro que iriam. Mas seria com suas tripas saindo por ambas as pontas.”

Carlidge afirma ter visitado nos anos 90 o que restara do programa soviético, na Ucrânia, numa base em Sevastópol, Crimeia. Ele descreveu o golfinho assassino soviético como algo mais sofisticado que o americano de décadas antes. Ele encaixaria um localizador no inimigo, como fazem os americanos, mas esse localizador também teria a ampola de gás comprimido. Primeiro os marinheiros tentariam capturar o inimigo vivo. Apenas se não o encontrassem ativariam o sistema letal. Doug acredita também que os EUA têm um programa letal secreto, do qual nem os próprios treinadores não letais da Marinha fazem ideia.

Com a queda do regime soviético, no fim de 1991, o programa sobreviveu até 2000. A Ucrânia o retomou em 2012, diante das tensões crescentes com a Rússia e, ironia, perdeu a Crimeia, com a base, para a Rússia em 2014. A Rússia herdou os golfinhos e afirma ter uma versão “de ataque”, capaz de operações letais.

O que tem o Irã com isso? Voltemos a 2000: quando o programa foi encerrado, a Ucrânia vendeu os golfinhos para o Irã, o que foi reportado pela BBC à época. Com eles foram seu treinador, Boris Zhurid, que disse então que ira com eles “Para Alá ou para o Diabo, desde que estejam bem”. Como um golfinho-nariz-de-garrafa pode viver até 50 anos ou mais, os mesmos animais dos tempos soviéticos poderiam ainda estar vivos. Ou novos podem ter sido treinados.

O problema dessa teoria é: onde estarão eles? Nunca mais se ouviu falar dos golfinhos soviéticos ou de seu treinador. Não é exatamente fácil esconder grandes piscinas e animais levados a mar aberto. O E o Irã costuma alardear seus avanços militares, que servem de deterrentes para uma invasão ocidental. Em março passado, o país inclusive proibiu aquários com mamíferos marinhos, afirmando ser uma forma de abuso animal.

Se houver mesmo os golfinhos iranianos, e se houver mesmo guerra, podem encontrar seus pares americanos no Golfo Pérsico. O que aconteceria então?

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“Cidadãos contra a tirania”: EUA de 1791 inspiram o movimento pró-armas do Brasil https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/21/historia-movimento-pro-armas/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/21/historia-movimento-pro-armas/#respond Thu, 21 Nov 2019 22:44:32 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/usa-1872561_1280-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=294 Imagine o pior: alguém decide criar uma nova ditadura no Brasil. Tanques estão na rua, o Congresso é fechado, o STF, fuzilado. Seu líder é declarado Generalíssimo, com poder absoluto. De onde vem a esperança?

Do povo! Cada qual com sua arma legalmente adquirida, todos saem às ruas e passam a confrontar violentamente as forças da tirania. Os golpistas são derrotados. Liberdade!

Parece conversa de anarquista pré-Primeira Guerra, mas é o presidente Jair Bolsonaro. Ele afirmou em junho: “Além das Forças Armadas, defendo o armamento individual para o nosso povo, para que tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta”.

Outro exemplo vem do think tank Instituto Mises Brasil. Entre dezenas artigos numa pesquisa por “desarmamento”, está o do PhD em história Gay North: Desarmamentos e Genocídios. Sugere que o Genocídio Armênio, o Massacre de Ruanda de 1994 e a Revolução Chinesa poderiam ser evitados se o lado perdedor estivesse armado. Sua conclusão:

Há uma razão por que os governos são tão empenhados em desarmar seus cidadãos: eles querem manter seu monopólio da violência a todo custo. A ideia de haver cidadãos armados é apavorante para a maioria dos políticos. Afinal, para que serve um monopólio se ele não pode ser exercido? Cidadãos armados impõem um limite natural à tirania do estado. 

Daria para preencher uma enciclopédia com mais exemplos. Não é nada exótico: é uma conversa tão americana quanto torta de maçã, Elvis Presley em Las Vegas e Oreo empanado. Uma pesquisa do Instituto Rasmussen em 2013 revelou que 65% dos eleitores americanos acreditavam que os direitos às armas eram uma “defesa contra a tirania” –  pelo número, certamente entrando na conta milhões de eleitores do Partido Democrata, o de Barack Obama, Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez. A explicação vem da história dos EUA. 

NAÇÃO SEM EXÉRCITO

Assim como o tortuoso sistema eleitoral americano, o direito às armas é uma peculiaridade da história de um país que surgiu de uma revolução que criou a república democrática liberal moderna, no que era então um experimento novo, radical e cheio de contradições – como declarar a independência dizendo que os homens serem iguais é “verdade auto-evidente” e manter a escravidão. Essa peculiaridade está consolidada na Segunda Emenda da Constituição dos EUA, ratificada em 15 de dezembro de 1791, de autoria de James Madison:

A well regulated militia being necessary to the security of a free state, the right of the people to keep and bear arms shall not be infringed

(“Uma milícia bem regulamentada sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de manter e portar armas não deve ser infringido”)

Que “milícia” seria essa? Não como as do noticiário brasileiro: milícia, por definição, é uma força de civis mobilizada militarmente (e provavelmente é uma péssima ideia continuar a usar o termo para se referir a máfias policiais).

A Revolução Americana começou movida por milícias. As Batalhas de Lexington e Concord, em 19 de abril de 1775, foram travadas por civis armados. O Exército Continental, o primeiro dos EUA, surgiu em 14 de junho do mesmo ano a partir da adesão de militares profissionais saídos do Exército Britânico – George Washington, o mais notório deles – e a profissionalização dessas milícias. Durante a Guerra de Independência, outras milícias continuariam dando seu suporte às forças profissionais. 

Os Pais Fundadores dos EUA eram basicamente unânimes na ideia do povo se ter o direito de se levantar contra o próprio governo, um direito natural codificado pelo fundador do liberalismo John Locke em seus Dois Tratados Sobre o Governo (1689). Como Noah Webster, o pai da educação americana, já deixava claro enquanto a lei ainda era pensada, em 1787:

Before a standing army can rule the people must be disarmed; as they are in almost every kingdom in Europe. The supreme power in America cannot enforce unjust laws by the sword; because the whole body of the people are armed, and constitute a force superior to any band of regular troops that can be, on any pretence, raised in the United States. (An Examination Into the Leading Principles of the Constitution)

(“Antes que um exército regular possa dominar, as pessoas devem ser desarmadas; como foram em praticamente todos os reinos da Europa. O supremo poder na América não pode impor leis injustas pela espada; porque todo o coletivo do povo é armado, e constituiu uma força superior a qualquer tropa de tropas regulares que pode ser, por qualquer razão, criada nos Estados Unidos.”)

Thomas Jefferson não só admitia como considerava salutar a violência que podia advir disso: 

The tree of liberty must be refreshed from time to time with the blood of patriots and tyrants. It is its natural manure. (Carta a William Stephens Smith, 13 de novembro de 1787.)

(“A árvore da liberdade deve ser renovada de tempos em tempos com o sangue de patriotas e tiranos. É seu esterco natural”.)

Quando os rebeldes venceram, havia uma forte antipatia à ideia de criar um exército profissional permanente, sob o poder central –, particularmente dos chamados anti-federalistas, como Jefferson, que queriam um poder o mais distribuído possível. Achavam que um exército poderia ser usado para impor a força do governo federal contra os estados. A ideia era que cada estado pudesse se defender sozinho, com suas milícias. Quando a Segunda Emenda foi aprovada, o Exército Continental havia sido desmobilizado, reduzido a 80 membros.

A ideia já estava morta no nascimento. Com a fragorosa derrota do General St. Clair contra os índios na Batalha de Wabash, em 4 de novembro de 1791, a opinião pública já estava mudando. O Exército dos EUA seria criado, como Legião dos Estados Unidos, em maio do ano seguinte, mudando o nome para “Exército” em 1796. O presidente George Washington, como chefe do Exército, também ganhou domínio sobre as milícias estaduais.

TEMPOS DO MOSQUETE

A Segunda Emenda mostra a idade. É fruto de uma época em que o grosso do combate consistia em linhas de infantaria atirando com mosquetes umas contra as outras, e então partindo para uma carga de baioneta às cegas, por conta da fumaça emitida por suas armas. Um soldado podia ser formado em uma semana. Em 1792, não havia ainda metralhadoras, submetralhadoras, fuzis de assalto, fuzis sniper, tanques, veículos blindados de infantaria, aviões, helicópteros, drones, foguetes. Nem 230 anos de avanços na doutrina militar, inclusive em contra-insurgência. É difícil imaginar o que faria o dono da padaria das esquina com seu revólver .38 contra as Forças Armadas do Brasil. Mesmo na nação da Segunda Emenda, armas automáticas são proibidas. Assim, as “milícias contra a tirania” estariam imensamente pior armadas que qualquer grupo radical islâmico que enfrentou o Exército dos EUA. 

Mas a Constituição não pode ser contestada e não está no horizonte haver quórum para repelir a Segunda Emenda. De forma que os defensores de políticas desarmamentistas americanos não podem falar simplesmente em proibir armas. O argumento que eles empregam é que os Pais Fundadores não queriam dar o direito às armas a todos os cidadãos, mas apenas a quem estivesse ligado às tais milícias, cuja função é satisfeita pelas forças policiais modernas. 

Com sua história e sua Emenda, os EUA são o país mais armados do mundo. São 120,5 armas por 100 habitantes, segundo a Pesquisa de Armas Pessoais, do Instituto Superior de Genebra (2017). É o único país com mais armas que gente – o Canadá, segundo país desenvolvido no topo, no 7º lugar, tem 34,7. O Brasil, 8,3, ocupa 97º lugar. De acordo com estatísticas coletadas pela iniciativa gunpolicy.org, da Universidade de Sydney (Austrália), em termos de mortes por armas de fogo, o Brasil está em 4º lugar, com 22 mortes por 100 mil, superado pela Venezuela (49,73), El Salvador (44,75), Jamaica (35,22) e Guatemala (25,48). Os EUA tem 12,21 mortes por armas de fogo por 100 mil, o que bate as 11,95 do México. 

Faça o que quiser desses números, mas o Brasil ter poucas armas e matar tanto assim me parece não um argumento para liberar mais armas, mas indício de certo “potencial”. E muita gente defendendo a ideia de “cidadãos contra a tirania” parece ter uma definição de tirania bem flexível, que exclui as ditaduras do Chile e do Brasil. 

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Horror em Amityville: 45 anos do massacre da família DeFeo https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/13/horror-amityville-massacre-defeo/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/13/horror-amityville-massacre-defeo/#respond Wed, 13 Nov 2019 21:06:44 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/112_Ocean_Avenue_1973_2-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=282 Eram 18h30 de 13 de novembro de 1974 quando Ronald DeFeo Jr. entrou aos gritos no Henry’s Bar . “Vocês têm que me ajudar! Acho que atiraram no meu pai e na minha mãe!”.

Um grupo de amigos o acompanhou até sua casa, a alguns quarteirões dali. O bar e a casa ficavam em Amityville, municipalidade de Babylon, Long Island, estado de Nova York.

A cena que encontraram era ainda pior que o anunciado. Não só pais, Ronald DeFeo  (44) e Louise DeFeo (42), com as irmãs Dawn (18) e Allison (13), e os irmãos Marc (12) e John Matthew (9): todos mortos. Jazendo de bruços em suas camas, executados a tiros – dois para cada pai, um só para os irmãos.

A polícia tomou o depoimento de Ronald, que sugeriu que o mafioso Louis Falini era o responsável – o tio-avô de Ronald, Peter DeFeo, era, de fato, um caporegime da máfia de Nova York. Falini, porém, tinha um álibi: estava fora da cidade no dia. Logo o depoimento de Ronald começou a desabar em meio a várias inconsistências. Ronald terminou por confessar os assassinatos. Ele matou a família em 15 minutos, por volta das 3h da manhã daquele 13 de novembro. Disse que tomou banho e saiu de casa às 6h, dando fim à arma do crime – uma carabina Marlin 336 – e suas roupas sujas de sangue, jogando-os num bueiro. Daí seguiu para o trabalho normalmente.

Os advogados de DeFeo alegaram insanidade. Durante o julgamento, ele afirmou ter ouvido vozes comandando-o a matar a família. Também era usuário de heroína e LSD, e foi diagnosticado com transtorno de personalidade antissocial. Não colou: Ronald DeFeo terminaria condenado à prisão perpétua, onde permanece até hoje.

ASSOMBRAÇÃO LUCRATIVA

A icônica e luxuosa casa, em arquitetura colonial holandesa, ficou parada por 13 meses. Até ser comprada pelo casal George e Kathleen Lutz, em dezembro de 1975, por uma ninharia, e incluindo os móveis da família DeFeo. Eram recém-casados e Kathleen tinha 3 crianças de outro casamento. Os Lutz mudaram-se para a casa em Amityville em 19 de dezembro. Nos 28 dias em que permaneceriam, até saírem de madrugada, sem pegar nada, afirmaram ter visto (só para citar alguns):

  • Uma praga de moscas em meio ao inverno;
  • As crianças dormindo na posição em que os corpos foram encontrados;
  • Uma imagem de um demônio surgindo na lareira;
  • Uma cadeira de balanço se movendo sozinha;
  • Kathleen recebendo marcas no corpo sem explicação;
  • Um crucifixo virando de cabeça para baixo sozinho;
  • A filha de 5 anos, Missy, afirmar ter visto um amigo imaginário, uma demônio em forma de porco com olhos vermelhos; também encontraram pegadas de porco do lado de fora.
  • George vendo Kahtleen se transformar em uma velha de 90 anos;
  • Uma meleca verde saindo das paredes.

A história dos Lutz seria romantizada pelo escritor Jay Anson, a partir de 45 horas de depoimento do casal, e publicada como Horror em Amityville, em setembro de 1977. O filme viria em 1979.

Os Lutz foram acusados de mentir: quase nada do que disseram foi comprovado. Não havia marcas de animais, nem dano à casa, nem os vizinhos notaram qualquer coisa de anormal em sua estadia. Quando o livro saiu, a casa já havia sido vendida para James e Barbara Cromarty, em março de 1977. Viveriam lá por 10 anos. Quando indagado sobre aparições, James dizia: “Nada estranho jamais aconteceu, exceto por gente aparecendo por causa do livro e do filme”. A casa continua habitada, com uma reforma mudado as janelas para disfarçar. Continua oficialmente não assombrada.

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