Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Fragging: assassinatos entre americanos e a derrota no Vietnã https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/02/16/fragging-historia-vietna/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/02/16/fragging-historia-vietna/#respond Sun, 16 Feb 2020 10:00:20 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/fragging-300x215.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=377 Para quem não viveu a época (eu incluso), o fim da Guerra do Vietnã tem algo de misterioso: como o Davi realmente venceu Golias? Por que os EUA desistiram e deixaram o Vietnã comunista ganhar por W.O, quando tombava um soldado seu para dez vietcongues?

O resumo mais aceito é que não havia mais clima político para isso. O que é vago e nebuloso –é difícil ver como hippies fazendo protesto podem fazer seu país perder uma guerra. Mas um fenômeno da guerra permite entender concretamente qual era o tamanho da desmoralização que fez com que os EUA perdessem: o fragging.

O nome vem das granadas de fragmentação (o icônico “abacaxi”) e a ação é simples: joga-se uma granada de fragmentação na tenda ou embaixo de sua cama de um oficial dormindo. E cabum! –o motim foi um sucesso. Não é possível identificar o autor facilmente porque a granada se espalha, sem deixar indícios de digitais, e, na confusão que se segue, todo mundo acaba se misturando. Além disso, os vietcongues faziam exatamente a mesma coisa, jogando granadas em tendas de americanos, tornando incerta a natureza do ataque. Por fim, mesmo quando a tropa sabia quem era o matador, pedir para quem está tão furioso quanto ele, ou tem medo dele, ser dedo-duro não era exatamente popular.

As razões para o fragging explicam como a guerra foi perdida. Havia uma diferença de geração entre oficiais e soldados: às vezes pouca, mas o suficiente para fazer valer o dito da época: “não confie em ninguém com mais de 30”. Os soldados não viam nenhum propósito na guerra, enquanto os oficiais haviam sido criados no anticomunismo dos anos 50. Os oficiais eram voluntários: estavam lá porque queriam. Os soldados eram recrutados à força, em sorteios transmitidos pela TV. Então, quando um oficial decidia ser o “John Wayne”, como diziam–arriscar a vida de todo mundo para ser visto como herói –ele se tornava alvo de fragging. E o “John Wayne” podia ser bem modesto: às vezes bastava fazer seu trabalho. Reprimir o consumo de drogas era particularmente impopular. Também havia questões raciais: oficial negro e subordinados brancos ou vice-versa. O general (negro) Colin Powell, secretário de Estado no governo de George W. Bush, afirmou que mudava seu colchonete de lugar toda noite, para não ser morto por granada. Segundo ele, por tentar reprimir drogas.

O historiador George Lepre, autor de Fragging: Why U.S. Soldiers Assaulted Their Officers in Vietnam (“Fragging: Por que os Soldados dos EUA Atacaram Seus Oficiais no Vietnã”) estimou no mínimo 900 casos, só entre 1969 e 1972, com 99 mortos. Outros casos ficaram na ameaça, verbal ou em fato, jogando uma granada não letal, de fumaça ou flashbang, como aviso. E quase certamente o número é sub-reportado: além do fragging poder ser atribuído a vietcongues, podia ser também praticado em campo, e aí com um mero tiro “mal-apontado”, não granada.

O fragging, além de ser um sintoma imenso de como os EUA desistiram do Vietnã, levou à mudança da estrutura das Forças Armadas dos EUA. Em 1973, o recrutamento compulsório foi encerrado e, desde então, a força é totalmente voluntária. Fragging continua a existir ainda hoje, e houve incidentes nas guerras do Afeganistão e Iraque –como em 2003, quando o sargento  Hasan K. Akbar jogou quatro granadas contra sua própria tropa. Mas a epidemia ficou no passado.

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Em 1970, Brasil tinha uma ditadura mais repressiva que a da URSS, afirma estudo da CIA https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/17/estudo_cia_polity_brasil_urss/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/01/17/estudo_cia_polity_brasil_urss/#respond Fri, 17 Jan 2020 22:35:10 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/01/880px-golpe_de_1964-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=355 Comentando sobre a ausência de questões no Enem sobre a ditadura militar, o ministro da Educação Abraham Weintraub afirmou hoje que é um tema “polêmico” e “não há pacificação sobre o que aconteceu”. Ele não explicitou qual é a polêmica exatamente, mas o fato é que a ditadura brasileira é tão “polêmica” para o resto do mundo quanto o Genocídio Armênio é “polêmico” fora da Turquia.

Vamos trazer um exemplo que não podia ser menos de esquerda: a CIA. Essa mesma, a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos. A fonte pública da CIA afirma que o que, há 50 anos, o Brasil não só era uma ditadura, quanto extremamente repressiva. De fato, mais que a União Soviética ou Cuba na mesma época.

O diretor atual do Estudo explica por que, mas primeiro vamos ao estudo em si.

Usado pela agência e também referência para o próprio governo americano, o estudo Polity, atualmente na versão 4, teve início nos anos 1960, pelo trabalho do falecido cientista político Ted Robert Gurr (1936-2017), da Universidade de Maryland. Ele classifica o tipo de regime dos países do mundo. O trabalho de Gurr foi bancado pela CIA e a versão atual é feita pela ONG Center for Systemic Peace (“Centro para Paz Sistêmica”), criada e patrocinada pela Political Instability Task Force (“Força-tarefa da Instabilidade Política”), fundada também pela CIA, em 1994.

O Polity dá uma nota entre -10 e 10, de absoluta ditadura a absoluta democracia. Ou, pelos termos do estudo:  democracia (6-10), anocracia aberta (1-5), anocracia fechada (-1 a -5) e autocracia (-6 a -10). Anocracia querendo dizer um regime híbrido, nem democracia, nem ditadura total. Em sua última edição, cobrindo até 2013, o Brasil levava uma nota 8 e a Venezuela, 4.

Nos tempos da ditadura, entre o AI-2 e a abertura de Geisel, o Brasil tem uma nota -9. O que quer dizer autocracia absoluta, a mesma nota da União Soviética no fim do regime Stalin e da China durante a Revolução Cultural.

Gráfico Polity IV do Brasil
O gráfico do Brasil mostra uma democracia em queda, a ditadura e a abertura (Reprodução)

Na mesma época, a União Soviética levava -7:

Polity IV Russia
O gráfico da Rússia mostra uma ligeira melhora após a morte de Stalin, em 1953 (Reprodução)

Assim como Cuba:

Polity IV Cuba
Relatório de Cuba mostra a ditadura atual e a anterior, de Fulgéncio Batista (Reprodução)

Os únicos a ganhar -10 são a Coreia do Norte e o Haiti de Baby Doc Duvalier.

O Polity IV não conta mortes, mas a situação política de um país. E, em seu relatório, usa o termo “ditadura militar” para explicar o tipo de regime brasileiro, sem qualificação adicional. Monty G. Marshall, diretor atual do Centro para Paz Sistêmica, explica as razões para a nota tão baixa: “[O estudo] Polity não mede especificamente repressão, mas ele nota a coerção em determinar política pública ou limitar competição política. Em geral, ditaduras militares são semelhantes a Estados hegemônicos de partido único. Elas via de regra têm um sistema se auto-seleção para o Executivo ou autoridade designada para o Executivo”. A ditadura brasileira confirmava seus generais no Congresso, mas qual seria o “candidato” marcado para ganhar era escolhidos em decisão interna da cúpula militar. Quanto à comparação com a União Soviética, é a de uma ditadura ativa para uma que já havia sido pacificada. “O grau de repressão nas autocracias é uma função da intensidade do dissenso entre ativistas de oposição, no lugar de uma forma específica de autoridade executiva. Repressão sempre é aplicada por forças de seguranças leais em resposta a provocações reais ou percebidas. Autocracias podem evitar repressão aberta quando os elementos da sociedade civil se mantém obedientes ou inativos.”

Sobre a questão eleitoral da ditadura, a de que havia um sistema com um partido de oposição permitido e eleições regulares – geralmente levantada por seus apoiadores para negar seu status de ditadura – Monty diz que é irrelevante: “É a intenção do sistema de classificação Polity garantir que pseudo ‘democracias’recebam nota de acordo com suas práticas, não suas ‘fachadas’. Muitos regimes personalistas e de partido único tentam aumentar as percepções de legitimidade por procedimentos eleitorais que são controlados pelo regime. Desde a queda do comunismo soviético, essas ‘fachadas democráticas’ foram entendidas por autocratas como uma farsa necessária para abrandar a crítica internacional. Mas essa expectativa de penduricalhos democráticos parece estar retrocedendo em anos recentes.”

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Atrocidade química ou… cocô de abelha? O mistério da chuva amarela https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/29/atrocidade-quimica-ou-coco-de-abelha-o-misterio-da-chuva-amarela/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/11/29/atrocidade-quimica-ou-coco-de-abelha-o-misterio-da-chuva-amarela/#respond Fri, 29 Nov 2019 20:35:51 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/chuvaamarela-300x215.jpg http://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=43 A fuga dos americanos de Saigon em 30 de abril de 1975 foi má notícia para o povo Hmong do vizinho Laos. Enquanto corria a Guerra do Vietnã, seu país vivia a “Guerra Secreta”, como a batizou a CIA: o confronto entre a monarquia do rei Savang Vatthana e os comunistas do Pathet Laos, os primeiros apoiados pela CIA e pelos capitalistas do Vietnã do Sul, os segundos, pelos comunistas do Vietnã do Norte e os soviéticos. Os Hmong do Laos estavam do lado da monarquia e a resposta não tardou a chegar quando os comunistas do Vietnã viram suas mãos livres da guerra interna. A Guerra Civil do Laos seria vencida pelos comunistas antes do fim do ano. Vistos como vendidos aos americanos, os Hmong sofreram o que descreveriam como política de extermínio, com prisões, tortura e execuções mesmo entre civis apolíticos. 30% dos Hmong acabariam fugindo do Laos.

Os refugiados foram parar na Tailândia e alguns de lá foram para os EUA. Com eles, levaram suas histórias de guerra. Uma das quais saltou aos olhos do mundo mais que as outras: a chuva amarela.

PROJETO SECRETO?

Segundo sobreviventes, enquanto eles tentavam se refugiar na floresta, helicópteros e caças dos comunistas lançaram contra eles uma substância amarela e viscosa. As plantas morriam. E as pessoas tinham sangramentos, convulsões, até cegueira. Relatos parecidos começaram a aparecer também entre os refugiados do Camboja, invadido em 1979 pelo Vietnã comunista para depor o também comunista (e brutal) regime do Khmer Vermelho. (Para constar: o Khmer Vermelho era apoiado pelos EUA.)

Rapidamente, a chuva amarela virou um escândalo mundial: comunistas vietnamitas bancados pelos soviéticos estavam usando armas químicas, contrariando a Convenção de Genebra, da qual a União Soviética e, a partir de 1980, o Vietnã eram signatários.

Em 1981, o o Secretário de Estado dos EUA, Alexander Haig, levou a público a denúncia:”Encontramos agora evidências físicas do Sudeste Asiático, que foram analisadas e encontraram níveis anormais de micotoxinas – substâncias venenosas que não são nativas da região e são altamente tóxicas para o homem e para os animais”. Isto é, a URSS estava usando compostos de um fungo letal produzido em casa para envenenar seus opositores no Laos. Em 1982, um relatório do toxicologista C. G. Mirocha, da Universidade do Minnesota, confirmou os relatórios, encontrando micotoxinas nas roupas dos refugiados, com um misterioso pó amarelo.

Tanto os soviéticos quanto os vietnamitas e comunistas laotianos negaram veementemente. Entra em campo um jogador de peso: o geneticista e biólogo molecular Matthew Meselson, também um militante contra armas químicas, que havia estudado os efeitos do Agente Laranja no Vietnã. Ele teve acesso às regiões problemáticas e conduziu seu próprio estudo.

Sua conclusão: cocô de abelha. Era isso o que era a chuva amarela.

RESPOSTA NA NATUREZA

Meselson notou que as micotoxinas citadas na verdade eram comuns na região. Mais importante: todas as amostras apresentadas continham pólen. Ao olhar esse pólen no microscópio, notou que as plantas eram locais e as células estavam ocas –  algo que acontece quando passam pelo sistema digestivo de um inseto. Mais tarde, com a repercussão, foi apresentado um estudo chinês de 1976, que abordava camponeses falando em “chuva amarela”– as exatas mesmas palavras dos laotianos. Era um fenômeno idêntico, menos os helicópteros e caças. Uma substância amarela e oleosa caiu aparentemente do nada. Em suas conclusão, os biólogos chineses também apontaram para as abelhas. Um enxame voando rápido a 10 metros de altitude é muito difícil de enxergar contra o céu. Tanto na China quanto no Laos, as pessoas teriam levado a saraivada sem entender de onde vinha.

O governo dos EUA reagiu reconhecendo o pólen, mas dizendo que havia sido adicionado pelos soviéticos para disfarçar suas armas bioquímicas. Meselson contestou, dizendo que isso exigiria o transporte de toneladas de pólen sem detecção por milhares que quilômetros. Estudos posteriores confirmaram o pólen e não indicaram armas químicas. Um consenso na comunidade científica acabou se formando em favor de Meselson, o de que o episódio foi mesmo uma mistura de pavor de guerra com propaganda. As agências e militares dos EUA, porém, mantém até hoje que havia armas químicas, admitindo que não têm como provar.

Quanto aos refugiados Hmong, a maioria não se convenceu com a versão de Meselson. Em 2012, o jornalista Robert Krulwich entrevistou o sobrevivente Eng Yang e sua sobrinha, a escritora Kao Kalia Yang, para falarem da chuva amarela. Krulwich insistiu agressivamente na teoria da abelha, deixando Kao Kalia, segundo diria depois “à beira das lágrimas”. Acusado de racismo, insensibilidade e condescendência, o jornalista publicaria uma retratação.

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‘Corredor da Morte’ da Alemanha deu origem a uma imensa reserva ambiental involuntária https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/16/cinturao-verde-alemanha/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/08/16/cinturao-verde-alemanha/#respond Fri, 16 Aug 2019 20:28:35 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/CinturaoVerdeAlemanha2-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=164 É uma memória distante mesmo para quem viveu, mas, entre derrota nazista, em 1945, e a reunificação, em 1990, existiram duas Alemanhas. Conforme combinado entre Stalin e os aliados ocidentais, o país foi divido em 4 zonas de influência: soviética, americana, francesa e britânica, ocupadas pelo respectivo exército. A área soviética se tornou a República Democrática da Alemanha, mais conhecida por Alemanha Oriental, regime marxista de partido único. As outras três, a República Federal da Alemanha, ou Ocidental, a democracia liberal capitalista.

Entre essas duas, havia a Fronteira Interna Alemã – informalmente, Corredor da Morte, um cordão de isolamento formado por cercas eletrificadas e com alarmes, muros, torres de vigilância, campos minados, armadilhas para carros e pessoas. Ela surgiu 16 anos antes do Muro de Berlim, de 1961 – esse isolava a parte capitalista da antiga capital, também decidida na divisão, que se tornou um enclave na Alemanha comunista.

Cinturão Verde da Alemanha
Em verde, a Fronteira Interna das Alemanhas (Wikimedia Commons)

Por quatro décadas, qualquer ser humano que ousasse se aproximar da Fronteira Interna tinha grandes chances de nunca mais sair de lá. O isolamento era uma faixa de 500 m até 1 km do lado oriental, e, por segurança, não lei, ao menos 100 metros na ocidental. Isso que fez de uma linha de 1.400 km entre as duas Alemanhas um território livre de humanos. E, com isso, “a natureza essencialmente ganhou um feriado de 40 anos”, como definiu o ambientalista Kai Frobel à rede de TV alemã Deutsche Welle.

Cinturão Verde da Alemanha
Remanescente da cerca que dividia as Alemanhas, no Cinturão Verde (foto: Jurgen Skaa/Flickr/CC)

Frobel é considerado o pai do Cinturão Verde, um projeto de preservação da ONG Bund für Umwelt und Naturschutz Deutschland (“Federação Alemã pelo Ambiente e Conservação da Natureza”). Desde sua fundação, em 1975, a Bund, como é chamada pelos alemães, passou a observar, a uma distância segura, de binóculos, como a natureza reagia à ausência humana na fronteira entre os dois mundos.

Reagia bem. No Cinturão Verde, mais de 1.200 espécies consideradas em risco encontram moradia em seus 109 habitats diferentes.

O cinturão não é um parque contínuo. Existem múltiplas áreas preservadas ao longo da antiga fronteira, mas 200 km dos 1.400 km totais são interrompidos por fazendas, estradas e outras obras. O projeto, que conta com a colaboração do governo alemão, é ir ligando essas áreas comprando terras e conseguindo acordos com governos locais. E existe um plano, ainda bem mais ambicioso, de criar o Cinturão Verde Europeu, ocupando toda a fronteira da antiga Cortina de Ferro, uma linha de 12.500 km passando por 24 países.

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Capitalismo ou comunismo? Há 60 anos, líder da URSS e vice dos EUA debatiam qual é o melhor – numa cozinha https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/07/24/debate-da-cozinha/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/07/24/debate-da-cozinha/#respond Wed, 24 Jul 2019 05:00:25 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/07/kitchen-300x215.png http://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=76 1959 deve ter sido o ano em que Guerra Fria pareceu mais próxima de terminar. Se as potências ainda estavam em corrida armamentista nuclear e tentando limitar as áreas de influência do rival, a ascensão do moderado (se irascível) Nikita Khrushchev como premiê soviético, formalizada no ano anterior, parecia apontar um caminho para a paz. Khrushchev, mantendo-se firme em sua convicção socialista, também parecia convicto que as duas potências poderiam conviver como rivais amigáveis – até que o sistema soviético se provasse superior e os EUA, cedo ou mais tarde, tivessem sua própria revolução.

Os americanos, então sob a presidência do (também moderado) Dwight Eisenhower, se mostraram abertos à ideia. Foi assim que ambos os países concordaram com um pequeno e breve enclave do rival em seu território: uma exposição nacional mútua, no modelo das então famosas exposições mundiais. Em junho de 1959, a versão soviética abriu em Nova York. No mês seguinte, era a vez da americana abrir em Moscou. Para isso, o vice-presidente Richard Nixon foi enviado à Rússia. E a inauguração transformou-se num debate a ser traduzido e transmitido nos dois países.

Em 24 de junho de 1959, Nixon e Krushchev se encontraram diante de uma cozinha americana, equipada com os mais modernos eletrodomésticos e conveniências. E ali, diante de uma lava-louça e detergentes, se dispuseram a provar qual sistema era superior. E continuaram num debate mais formal num estúdio de TV.

A conversa, quase monopolizada por Khrushchev, sob protestos de Nixon, teria partes exaltadas e algumas bravatas pouco realistas. Mas foi amigável. Diplomaticamente, o que ficaria conhecido por Kitchen Debate (“Debate da Cozinha”) seria um sucesso: em 15 de setembro, Khrushchev se tornava o primeiro premiê soviético a pisar nos EUA.

A relação começaria a azedar com a Revolução Cubana, no fim do mesmo ano. Que acabaria levando a influência soviética perto demais para o conforto dos EUA, que tentaram derrubar o regime na desastrada operação da Baía dos Porcos. Assim, três anos depois, a Crise dos Mísseis, causada pela instalação de mísseis nucleares soviéticos em Cuba, deixaria o mundo à beira da aniquilação nuclear.

A seguir, um resumo (ainda assim longo) com recortes interessantes da conversa e edições para melhor compreensão.

(Duas versões ligeiramente diferentes dos originais podem ser lidas aqui e aqui). 

PARTE 1: NA EXPOSIÇÃO

[Os dois entram na cozinha da exposição americana]

Nixon: Eu quero te mostrar esta cozinha. É como as das nossas casas na Califórnia. [Aponta para uma lava-louças.]

Khrushchev: Nós temos essas coisas!

Nixon: Esse é o nosso mais novo modelo. O tipo que é construído em milhares de unidades para instalação direta nas casas. Nos Estados Unidos, gostamos de facilitar a vida das mulheres…

Khrushchev (interrompe): Sua atitude capitalista para com as mulheres não existe no comunismo!

Nixon: Acredito que essa atitude em relação às mulheres é universal. O que nós queremos é tornar a vida mais fácil para nossas donas de casa…

[…]

Nixon: Esta casa pode ser comprada por US $ 14.000 e a maioria dos americanos pode comprar uma casa na faixa de US$ 10.000 a US$ 15.000. Deixe-me dar um exemplo que você pode apreciar: nossos metalúrgicos da indústria do aço que, como vocês sabem, agora estão em greve. Qualquer metalúrgico poderia comprar esta casa. Eles ganham US$ 3 por hora. Esta casa custa cerca de US$ 100 por mês para adquirir num contrato de 25 a 30 anos.

Khrushchev: Temos metalúrgicos e camponeses que podem gastar US$ 14.000 numa casa! Suas casas americanas são construídas para durar apenas 20 anos, para que os construtores possam vender novas no final. Nós construímos com solidez. Nós construímos para nossos filhos e netos!

Nixon: Casas americanas duram mais de 20 anos, mas, mesmo assim, depois de vinte, muitos americanos querem uma nova casa ou uma nova cozinha. Sua cozinha fica obsoleta após tanto tempo… O sistema americano é projetado para tirar proveito de novas invenções e novas técnicas.

Khrushchev: Esta teoria não se sustenta. Algumas coisas nunca ficam obsoletas – casas, por exemplo, e móveis. Utilidades domésticas, talvez, mas não casas. Eu li muito sobre americanos e casas americanas, e não acho que essa exposição que você faz é estritamente precisa…

Nixon: Bem, hum …

Khrushchev: Espero não ter te insultado…

Nixon: Eu sou insultado por especialistas! Tudo o que dizemos é [num espírito de] bom humor. Fale tudo francamente!

Khrushchev: Os americanos criaram sua própria imagem do homem soviético. Mas ele não é como vocês imaginam. Acham que o povo russo ficará embasbacado de ver essas coisas, mas o  fato é que as casas russas recém-construídas têm todo esse equipamento hoje.

Nixon: Sim, mas …

Khrushchev: Na Rússia, tudo que você precisa fazer para conseguir uma casa é nascer na União Soviética. Você tem direito à moradia … Na América, se você não tem um dólar, [não] tem o direito de escolher entre dormir em uma casa ou na calçada. No entanto, você diz que somos escravos do comunismo!

Nixon: Eu aprecio que você é muito articulado e enérgico …

Khrushchev: Enérgico não é a mesma coisa que sábio.

Nixon: Se você estivesse no Senado, nós chamaríamos você de filibusteiro [alguém que fica falando sem parar para impedir uma votação]! Você domina toda a conversa e não deixa ninguém falar. Esta exposição não foi projetada para embasbacar, mas para criar interesse. Diversidade, o direito de escolher, o fato de termos mil construtores construindo mil casas diferentes é o mais importante. Nós não temos um modelo decidido pelo funcionário mais alto do governo. Essa é a diferença!

Khrushchev: Sobre política, nunca vamos concordar com você… [Mas] Por exemplo, Mikoyan gosta de sopa muito apimentada. Eu não. Mas isso não significa que não nos damos bem.

Nixon: Vocês podem aprender conosco e nós podemos aprender com vocês. Deve haver um livre intercâmbio! Deixem as pessoas escolherem o tipo de casa, o tipo de sopa, o tipo de ideias que elas querem!

PARTE 2: NO ESTÚDIO

Khrushchev: (…) Desejamos aos Estados Unidos o melhor para mostrar seus bens, produtos e habilidades… grandes habilidades, e teremos prazer em olhar e aprender. Não só vamos aprender, mas também podemos mostrar – e vamos mostrar – o que fazemos. Isso contribuirá para melhorar as relações entre nossos países – e entre todos os países – para garantir a paz mundial. (…) Há quanto tempo existe a América? São 300 anos? (…) A América existe há 150 anos e aqui está o seu nível. Nós existimos por quase 42 anos e em outros 7 estaremos no mesmo nível da América. Depois seguiremos em frente. Quando cruzarmos com eles pelo caminho, vamos cumprimentá-los amigavelmente, assim! [acena] Então, se vocês quiserem, podemos parar e convidá-los a seguir conosco! (…)

Nixon: (…) Os comentários de Khrushchev agora… eles estão na tradição que aprendemos a esperar dele falando de maneira intempestiva e franca sempre que tem uma chance. E fico feliz que ele tenha feito isso em nossa televisão colorida, em um momento como este. (…) Isso, Sr. Khrushchev é uma das criações mais avançadas em comunicação que temos! (…) Só posso dizer que, se esta competição que você assim descreveu tão eficazmente, na qual você planeja nos ultrapassar, especialmente na produção de bens de consumo, se essa competição é o melhor para o nosso povo e para pessoas em todos os lugares, deve haver um livre intercâmbio de idéias. Existem alguns casos em que você pode estar à frente de nós, por exemplo, no desenvolvimento de seus foguetes para a exploração do espaço sideral. Pode haver outras áreas, como na televisão em cores, onde estamos à sua frente. Para que nossos dois povos façam isso. . .

Khrushchev (interrompendo): O que você quer dizer com na frente?! Não! Nunca! Nós derrotamos você em foguetes e, nessa tecnologia [comunicações], estamos à sua frente também!

Nixon: Espere até ver a imagem.

Khrushchev: Bom! (…) Engenheiros soviéticos ficaram impressionados com o que viram. Também me uno à admiração de nossos engenheiros soviéticos. O fato de os americanos serem pessoas inteligentes é algo no que sempre acreditamos e soubemos, porque pessoas estúpidas não poderiam elevar a economia ao nível que alcançaram. Mas nós também não somos tolos (…). Em 42 anos, demos esse passo! Somos parceiros dignos! Então vamos competir! Vamos competir! O que pode produzir a maioria das mercadorias para as pessoas: esse sistema é melhor e vai vencer!

[Mais conversa sobre comunicação]

Nixon: Você não deve ter medo de idéias!

Khrushchev: Nós estamos dizendo a você: não tenha medo de ideias! Não temos nada a temer! Nós já superamos isso [nota: provável referência ao período Stalin] e agora não tememos ideias!

(…)

Khrushchev: você é um advogado do capitalismo, eu sou um advogado comunista! Então vamos competir!

Nixon: Tudo que pode dizer, pela forma como você fala e como domina a conversa, [é que] você daria um ótimo advogado! O que quero dizer é: aqui você vê o tipo de fita que vai transmitir esta conversa e isso mostra as possibilidades de aumentar a comunicação. E esse aumento na comunicação vai nos ensinar algumas coisas, e algumas coisas a você também. Porque, afinal, você não sabe de tudo!

Khrushchev: Se eu não sei tudo, você não sabe nada sobre comunismo, exceto pelo medo! (…) Me dê sua palavra, vice-presidente, me dê sua palavra que minha fala vai ser também gravada em inglês. Vai ser?

Nixon: Certamente será! E, na mesma moeda, tudo o que eu disser será gravado e traduzido e transmitido por toda União Soviética. É um bom negócio.

[Apertam as mãos]

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Quantos Stalin matou? https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/07/22/quanto-stalin-matou/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2019/07/22/quanto-stalin-matou/#respond Mon, 22 Jul 2019 22:15:37 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2019/07/stalin-300x215.png http://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=62 Livros ainda serão escritos sobre como o número de pessoas mortas por um premiê soviético se tornou tema de disputa política no Brasil. Se você perguntar à internet brasileira, a resposta varia entre “pouco” e “100 milhões” ou mais.

Mas este é um caso peculiar em que, se a mesma pergunta for feita a historiadores profissionais, a resposta será quase tão discrepante quanto. Os neostalinistas (raros no Ocidente, em ascensão na Rússia) vão falar em menos de 100 mil, e relativizar mesmo esses números. Do outro lado, já se falou em até 110 milhões – pelo escritor e historiador dissidente Alexander Soljenítsin, em 1975, logo após ser expulso da União Soviética.

Um número assim não é levado mais a sério hoje em dia. Mas foi bastante circulado durante a Guerra Fria, quando acadêmicos ocidentais confiavam no testemunho e estatísticas produzidas por dissidentes. Por exemplo, o historiador americano Rudolph Rummel, em 1990, publicou sua estimativa de 51,5 milhões de mortes no período Stalin.

Após a queda do regime soviético, em 1991, os arquivos da inteligência soviética foram abertos e os historiadores puderam finalmente contar com números oficiais. E esses números acabaram parecendo modestos em comparação. São eles:

  1. Execuções políticas (1929-1953): 777.975
  2. Mortes nos gulags (campos de trabalhos forçados): entre 1,5 e 1,7 milhões
  3. Mortos no reassentamento dos kulaks (proprietários de terras): 389.521
  4. Mortos em outros reassentamentos: 309.521
  5. Mortos na Grande Fome da Ucrânia (Holodomor): mínimo 1,8 milhões, máximo 6,7 milhões (pesquisa pelo historiador australiano Stephen G. Wheatcroft; já se chegou a falar até em 20 milhões).

Total: 3,2 – 9,9 milhões.

Em sua forma bruta, esses números não são aceitos por ninguém. Entre outras coisas, está em disputa se a fome da Ucrânia foi mesmo uma política deliberada de extermínio por Stalin, com o governo do país adotando como posição oficial que foi um genocídio. Historiadores variam entre concordar ou considerar o desastre resultado da coletivização agrícola de Stalin e/ou também problemas climáticos. Neostalinistas não só descontam o Holodomor, como afirmam que as mortes nos Gulags foram naturais em sua maioria e que os números de execuções listados pela NKVD foram inflados. Mais comum é ir na direção oposta, argumentando que os números oficiais certamente ficam aquém da realidade, com execuções e mortes nos gulags subnotificadas.

Noves fora, no que pode ser considerado mainstream hoje, Stalin foi responsável pela morte de algo entre 9 milhões (Oleg Khlevniuk, da Universidade de Moscou, uma das maiores autoridades da Rússia atual) a 20 milhões ou mais (o historiador britânico Simon Sebag Montefiore, autor das recentes biografias de Stalin e Lenin). Na média, 15 milhões é um número frequentemente citado.

Sejam 3, 9, 15 ou 20 os milhões de Stalin são menos do que se ouve por ai, mas ainda muita, muita gente. E, já que ninguém vai resistir à tentação de comparar com Hitler, o número desse fica entre 10 milhões e 25 milhões. Mas isso não conta a Segunda Guerra na Europa, que ele causou, e custou mais uns 35 milhões, pelo menos.

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