Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Pedro, o progressista: o outro mito do imperador https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/01/pedro-ii-liberal-mito/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/08/01/pedro-ii-liberal-mito/#respond Sat, 01 Aug 2020 22:10:17 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/caiu-do-trono-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=582 Duas semanas atrás, os historiadores Thiago Krause e Paulo Pachá falaram do uso nostálgico da história do Império pela extrema direita. Queria aproveitar a deixa, meio atrasado, para falar para outro lado desse mito, que atinge a outro tipo de pessoa, gente até de centro-esquerda: a ideia de que D. Pedro II foi um anti-déspota e esclarecido. Nosso Papai Noel no poder, o bom velhinho da tolerância e conciliação nacional. Uma força da democracia e do progresso, destituído por um golpe militar que abriu um precedente maldito, o da República tutelada.

Pedro, o democrata, teria evitado fazer uso de seus consideráveis poderes, governando como monarca constitucional moderno, deixando a política correr como um regime parlamentarista constitucional. O monarca também odiaria a escravidão, era um abolicionista constrito pelas limitações do sistema. Também fã de ciências e arqueologia, poliglota, muito lido, que até mesmo, em seus diário, registrou que a república era uma forma superior de governo que a monarquia. Um homem exasperado com um país que não avançava, apesar de seus desejos.

Enfim, ironicamente para os monarquistas atuais, Pedro II não poderia ser classificado como um conservador. Não para sua época.

Em sua época, o Pedro liberal tinha entre seus fieis gente com a cabeça considerada arejada para a época, como o abolicionista e secularista Joaquim Nabuco. A ideia foi reforçada por biografias relativamente recentes focadas na pessoa do imperador, como a de Paulo Rezutti e a de José Murilo de Carvalho.

Não há nada de errado em retratar o ser humano em suas contradições. É uma verdade histórica como outras. Mas há o risco de criar uma mitologia sem querer. Conhecendo Pedro enquanto humano, é fácil ser tentado a ver nele uma figura que não corresponde a suas ações.

Podemos discutir por dias o que Pedro II queria pessoalmente, se ele era mesmo essa figura avançada, e até especular se repudiaria seus descendentes retrógrados. Mas o que condena o Pedro liberal é o que foi seu governo na prática, no que implica esse “constitucionalismo democrático” todo dele.  Assumindo um país em guerra civil, Pedro batalhou até a exaustão para moderar facções e evitar conflito, de forma a manter a integridade nacional. Esse é um mérito que se levanta dele, mas será mesmo mérito a moderação em face ao intolerável? O Segundo Reinado foi uma paz escravocrata, o  que inclui medidas altamente pró-escravidão, como aceitar a continuidade do tráfico ilegal e mostrar simpatia para com os confederados na Guerra Civil Americana, até aceitar refugiados entre eles por aqui.

Se o monarca era mesmo tão arejado das ideias (não estou descartando nem aceitando essa possibilidade aqui; esse é outro tema), ele traiu o que acreditava em nome da estabilidade. Lutar pela estabilidade de uma situação iníqua é um mal. Isso não é grandeza.

A “moderação” de Pedro serviu para sermos o último país do continente americano a abolir a escravidão. O resultado foi a continuidade da tortura e cativeiro de milhões, por gerações, e o atraso econômico e social que segue ainda hoje. Se é uma trágica ironia para um monarca abolicionista, tanto faz. Esse é o triste presente que nos deixou o triste “bom velhinho”.

]]>
0
O Dia Mundial do Rock não é mundial, nem realmente do rock https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/07/13/o-dia-mundial-do-rock-nao-e-mundial-nem-do-rock/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/07/13/o-dia-mundial-do-rock-nao-e-mundial-nem-do-rock/#respond Mon, 13 Jul 2020 17:00:26 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/roque.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=575 Perdoem tirar o dia para chover na festa dos outros, mas é gatilho em roqueiro velho (pleonasmo?). O Dia Mundial do Rock é uma jabuticaba. Existem jabuticabas deliciosas, mas não consigo ver mcjabuticabas publicitárias (como o Dia dos Namorados) como algo que mereça ser chamado de rock’n’roll.

O Dia Mundial do Rock foi concebido em 13 de julho de 1985, quando o brutal roqueiro Phil Collins, criador dos hits derretedores de cara Invisible Touch e Paradise, no calor do momento de seu show no Live Aid, sugeriu que aquele dia passasse a ser conhecido como “Dia Mundial do Rock”. (Para quem não pegou a referência: Phil Collins era um astro pop vindo do rock progressivo; no máximo podia ser classificado como soft rock.)

O apelo foi solenemente ignorado pelo resto do planeta. Até, anos depois, ser lembrado por executivos das rádios de rock de São Paulo. Nos anos 90, as FMs 89 e 97 passaram a celebrar o “Dia Mundial do Rock” proposto por Phil Collins, numa tentativa de recuperar fãs do gênero que havia sido mainstream por alguns anos da década anterior, mas perdia espaço para o pagode e o sertanejo. Basicamente como o Dia dos Namorados do pai de João Doria, esse feito para vender roupas. Meio que colou. Não muito.

MEGA EVENTO

Fazendo 35 anos hoje, o Live Aid merece uma menção mais extensa que o Dia Mundial (Só No Brasil) do Rock. Foi uma iniciativa para arrecadar fundos para combater a fome na Etiópia, que, entre 1984 e 1985, matou cerca de 600 mil pessoas. Foram dois megaconcertos acontecendo em Londres e Filadélfia (EUA). Nomes mais que bem estabelecidos, e boa parte já na faixa dos quarenta anos de idade, como os Rolling Stones, Led Zeppelin e Black Sabbath. Alguns mais jovens (e mais pop), como U2, Duran Duran e Madonna. Phil em pessoa, que tinha 34 e começara sua carreira no progressivo Genesis, tinha razão para estar empolgado: havia se apresentado em Londres, pego um voo de Concorde, e fazia outro show no outro continente no mesmo dia.

Infelizmente, o esforço do Live Aid, assistido por 1,5 bilhão de espectadores, rendeu mais às gravadoras que aos etíopes. As músicas dispararam nas pardadas. Mas o dinheiro arrecadado, transferido ao governo Mengistu Haile Mariam, serviu para manter no poder um ditador que seria condenado por genocídio pelas autoridades etíopes em 2007, e segue no exílio até hoje. Mengistu foi acusado de usar de fundos para massacrar sua oposição e a oposição. E uma parte dessa oposição, o grupo guerrilheiro Frente de Libertação do Povo Tigré, também recebeu fundos e o empregou no combate.

Tanto Mengistu quanto a Frente se consideravam marxistas. Em 1990, Mengistu perdeu o apoio da União Soviética, renunciou ao marxismo e tentou reformas de mercado – para ser derrubado pela (também marxista, então adotando o socialismo democrático) Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope, que tomou a capital em 27 de maio. Foi o começo da atual democracia etíope.

]]>
0
1932 não teve revolução; teve guerra civil https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/07/09/1932-nao-teve-revolucao-teve-guerra-civil/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/07/09/1932-nao-teve-revolucao-teve-guerra-civil/#respond Thu, 09 Jul 2020 19:21:35 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/1932-2.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=565 O Brasil celebra hoje, 9 de julho, os 88 anos de um evento insólito: uma revolução que perdeu. E, por isso, não revolucionou nada.

A Guerra Civil de 1932 pretendia ser uma revolução. E não tinha nada de separatista. O plano era invadir o Rio de Janeiro para derrubar Getúlio Vargas, com a principal justificativa de estabelecer a democracia. A movimentação envolvia interesses da elite cafeeira e um bairrismo paulista meio esquecido, o do “povo bandeirante” que se acreditava fundador do Brasil e se sentia humilhado por uma série de interventores (governadores não eleitos) de outros estados, impostos pelo governo provisório que vinha desde 24 de outubro de 1930 prometendo justamente a democracia.

A revolta paulista não conseguiu o apoio de outros estados (crucialmente Minas Gerais), como esperavam seus líderes. Foi parada militarmente sem cruzar a fronteira com o Rio, invasão planejada para começar pela cidade de Resende, e se tornou uma causa perdida logo na primeira semana. Em 2 de outubro de 1932, os paulistas se renderam.

Em 3 de maio de 1933, os brasileiros foram convocados a eleger uma Assembleia Constituinte – exatamente no dia que já estava previsto antes da guerra começar. E essa Constituição, promulgada em junho de 1934, duraria pouco mais de 3 anos, até o autogolpe do Estado Novo impor uma carta de inspiração fascista – e aí não teve guerra nenhuma. Mesmo se é verdade que a Constituição só saiu mesmo por causa de 1932, mantido o status quo e com a constituinte partindo do governo provisório no Rio, seria no máximo uma “Pressão Constitucionalista”.

PRÊMIO DE CONSOLAÇÃO

Nossa esquisitice está no dicionário: no Michaelis, brasileiro, “revolução” pode ser sinônimo de mera revolta ou sublevação. No Priberam, português, só num sentido figurado. Mais para: “Menino, seu quarto está uma revolução!”.

A “Revolução” Constitucionalista tem precedentes na história brasileira. No Rio Grande do Sul, tem duas: a Farroupilha (1835 a 1845) e a Federalista (1895). Por outro lado, a “Guerra de Canudos” raramente é chamada de Revolução. A impressão é que os líderes serem ricos e influentes, terminando anistiados, determina o título histórico, mais que a natureza do movimento. Que “revolução” não descreve a natureza do movimento, mas serve de prêmio de consolação aos revoltosos, em nome da pacificação nacional.

São Paulo ganhou um baita prêmio de consolação, aliás. Usa como símbolo do estado a bandeira rebelde. que na verdade era uma proposta não aprovada de bandeira do Brasil. A Farroupilha também pode ser chamada de Guerra dos Farrapos, mas o nome “Guerra Paulista”, comum nos anos que se seguiram, raramente é usado. São Paulo é possivelmente (não conferi uma por uma) a única capital sem um logradouro central chamado Getúlio Vargas, como uma Avenida ou Praça Presidente Getúlio Vargas. No lugar disso, duas de suas maiores avenidas são a 23 de maio (dia da morte dos estudantes Mario Martins de Almeida, Euclides Miragaia, Dráusio Marcondes de Sousa e Antonio Camargo de Andrade, que deram origem à sigla M.M.D.C., movimento pela guerra) e 9 de julho (começo da guerra).

Os tempos são outros. A impressão é que acabou a era do “deixa disso”, a conciliação a qualquer custo que fazia com que o brasileiro visse a si próprio como criatura apolítica. Quem sabe seja a hora de darmos nome aos bois e chamar 1932 e outros eventos como o que foram: guerra civis. O Brasil as teve. E quem sabe essa conversa de brasileiro apolítico tenha sido mesmo um grande mito desde sempre. Não só 1932, mas as mudanças ilegais de regime em 1889, 1930, 1937 e 1964 estão aí de prova.

]]>
0
A primeira vítima da ditadura militar: os militares https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/28/a-primeira-vitima-da-ditadura-militar-os-militares/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/28/a-primeira-vitima-da-ditadura-militar-os-militares/#respond Mon, 29 Jun 2020 01:04:39 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/marinheiros.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=542 O primeiro sangue derramado pela ditadura foi o do tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, morto em 4 de abril de 1964 por uma rajada de metralhadora pelas costas. Os tiros partiram de seus companheiros militares, por se recusar a apoiar o golpe. Sua posição de paciente zero foi reconhecida pela Justiça do Brasil em março de 2019.

Alfeu era parte de um grupo de vítimas da ditadura menos lembrado: o dos próprios militares. Quando a ditadura assumiu, imediatamente passou a um expurgo em suas forças, com o Ato Complementar nº 3, de 11 de abril, expulsando 122 oficiais de diversas patentes. Na alta cúpula, até 1966, seriam expulsos 24 dos 91 oficiais com patente de general ou equivalente. A perseguição atingiria, segundo a Comissão Nacional da Verdade, até 7.500 militares, entre expulsos, presos, torturados e assassinados.

E isso é outra parte menos lembrada do surgimento da ditadura: não era só uma disputa envolvendo João Goulart e a esquerda civil, de um lado, e os militares a direita civil, do outro. Era uma disputa também entre militares e militares. Havia uma ala pró-Goulart juntando nacionalistas e esquerdistas, que era forte na baixa patente, bastante ruidosa e teve suas vitórias. A própria posse de Goulart, em 1961, aconteceu em grande parte pelo apoio de militares dessa ala, que aderiram à Campanha da Legalidade de Leonel Brizola, contra a outra ala ameaçando fechar o congresso, segundo a denúncia do jornalista Carlos Lacerda, liderança conservadora que acabaria por apoiar o golpe em 64, para se arrepender. (A bem da verdade, a posse de Jango foi mais um “empate”: assumiu como presidente num regime parlamentarista aprovado às pressas, que seria revogado em janeiro de 1963 após um plebiscito.)

Nos anos que seguiram, os militares se polarizaram entre contra e a favor de Jango, culminando na Revolta dos Sargentos, em 12 de setembro de 1963, quando cerca de 600 militares de baixa patente se rebelaram em Brasília, prenderam adversários, inclusive um ministro do Supremo Tribunal Federal, cortaram as comunicações da cidade e tomaram o Departamento Federal de Segurança Pública e o Ministério da Marinha. A razão da revolta havia sido uma decisão do STF de considerar ilegal a eleição de militares a cargos legislativos em 1962. Esses militares representavam principalmente o movimento pró-Goulart.

Sem conquistar adesão em massa e por erros de comunicação, a revolta foi aniquilada. Seus líderes foram enviados a um navio-prisão na Baía de Guanabara.

Mas o clima de rebelião continuou. No que Elio Gaspari e diversos historiadores consideraram o principal estopim da ditadura, em 25 de março de 1964, foi a vez da Marinha. Em 24 de março, o almirante Sílvio Mota, ministro da marinha de João Goulart, decretou a prisão dos líderes da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, um sindicato considerado ilegal, que apoiava ferrenhamente o presidente. Em desafio, a associação celebrou seu aniversário no dia seguinte, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, com os líderes condenados. Os membros do Corpo de Fuzileiros Navais enviados para prendê-los aderiram ao movimento, como apoio de seu comandante, o vice-almirante vice-almirante Cândido Aragão. Humilhado, Mota pediu demissão, assumindo no lugar o almirante pró-rebeldes, pró-Jango, Paulo Mário da Cunha Rodrigues, que daria anistia a todos os rebelados no dia 27, para no dia 28 desfilarem pelas ruas do Rio. Mota, Aragão e Rodrigues seriam exonerados após o golpe. O vice-almirante dos fuzileiros, Aragão, aos seus 56 anos, chegaria a perder um olho sob torturas.

Assim foram os últimos dias da democracia. Os líderes do golpe deram também um golpe nas Forças Armadas. A guerra civil que nunca aconteceu foi ainda assim vencida e os militares à esquerda, destruídos. Sem o expurgo feito pela da direita militar, física e ideologicamente, das figuras militares que se opuseram ao golpe, seria difícil de imaginar quarteis ensinando ainda hoje que 1964 foi um “marco para a democracia“. Assim como o apoio com que um presidente como Bolsonaro ainda conta nas forças. Apologistas da ditadura raramente incluem em sua narrativa que os “comunistas” dos quais, a seu ver, salvaram a democracia, eram, em grande parte, outros militares.

A atual cultura militar do Brasil não é natural da profissão. É um legado da ditadura.

]]>
0
Caso Evandro: caça às bruxas nos anos 1990? https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/18/caso-evandro-caca-as-bruxas-nos-anos-1990/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/18/caso-evandro-caca-as-bruxas-nos-anos-1990/#respond Thu, 18 Jun 2020 18:37:35 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/Bruxas.jpg true https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=526 O assunto veio à tona hoje por conta do suposto envolvimento de Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro na casa de quem Fabrício Queiroz foi preso esta manhã. Em 1992, ele próprio chegou a ter sua prisão requerida, acusado de participar de uma seita que teria feito dois “rituais satânicos” homicidas.

Foi o caso chamado de Bruxas de Guaratuba. Um caso que parece ter tido todas características, o rigor (sua ausência) e a fantasia dos julgamentos de bruxaria da Idade Média.

Poderia ser só uma história medonha de serial killer. Em 6 de abril de 1992, o menino Evandro Ramos Caetano desapareceu em Guaratuba, Paraná. Cinco dias depois, seu corpo foi encontrado em com indícios de uma morte brutal: peito aberto, sem vísceras, olhos perfurados, mãos amputadas, escalpo tirado. Dias depois, o pai de santo Osvaldo Marcineiro confessou ter matado a criança num ritual satânico, por encomenda da esposa e filha do prefeito da cidade, Celina e Beatriz Abagge – as “bruxas”, que afirmaram estar esperando ganhar prosperidade com isso. Eles e outros faziam parte do Centro Espírita Beneficiente Abassá Deoe. As “bruxas”  confirmaram o depoimento do pai de santo. Outro caso que havia acontecido dois meses antes, o desaparecimento de outro menino, Leandro Bossi, cujo corpo não fora encontrado, entrou na investigação – foi então que Wassef, que era parte do grupo religioso, e esteve no hotel onde trabalhava a mãe de Leandro, teve sua prisão requerida pelo delegado responsável pelo caso. Wassef não chegou a ser preso, mas sua casa em Atibaia, São Paulo, foi revistada.

E depois retiraram a confissão. Aqui começam as semelhanças com a Idade Média: a população revoltada foi às ruas, emulando naquele estereótipo de multidão com tochas e forcados, para atacar a prefeitura e a casa do prefeito. As pessoas acusadas afirmaram que foram torturadas para confessar sua “bruxaria” – e entregar outros “bruxos”. Também disseram que, na cadeia, onde ficaram entre 1992 e 1995, os guardas temiam que fossem se transformar em uma nuvem de fumaça e escapar, por isso fechavam a solda a janela da cela. E que, em outra ocasião, os guardas se jogaram no chão por medo da lua poder empoderar seus feitiços.

Em 1998, acabaram inocentadas do caso, em júri popular, que durou 34 dias. No ano seguinte, o julgamento foi suspenso, e retomado novamente em 2011, quando Beatriz acabou condenada a 21 anos e 4 meses (a mãe foi dispensada pela idade avançada). Em 2016, Celina perdoada pelo Tribunal de Justiça do Paraná, pelo caso ser considerado muito frágil. Em meio a isso, Osvaldo Marcineiro, mais o pintor Vicente Paulo Ferreira e o artesão Davi dos Santos Soares foram condenados.

Em março passado, o jornalista Ivan Mizanzuk, que cobriu extensivamente o caso em seu podcast Projeto Humanos – Caso Evandro, mostrou as gravações do interrogatório, que tinham evidências que ele considerou conclusivas de todas as confissões terem ocorrido sob tortura.

Certamente a criança parece ter sido assassinada em condições brutais, num crime horrendo. Mas o caso, como foi reportado e investigado, é imensamente suspeito, não só pela tortura e ideias supersticiosas, como a menção a religiões afro-brasileiras. Isso é mais uma semelhança com a Era Medieval: lembra um libelo de sangue, a acusação de sacrifício infantil que era feita contra os judeus da cidade, terminando em pogrom (massacre). O pai de santo, pelo racismo religioso brasileiro, ocupa o lugar do judeu.

PÂNICO SATÂNICO

E há ainda o contexto internacional. Em 1992, vivia-se o pânico moral de seita satanista. A onda começou nos Estados Unidos, em 1980, com o lançamento do livro Michelle Remembers, do psiquiatra canadense Lawrence Pazder. Nele, ele falava de uma paciente sua, a Michelle (Smith) do título, que, sofrendo de depressão, lembrou-se durante hipnose que sua mãe, entre 1954 e 1955, quando Michelle tinha 5 anos de idade, participava de um culto satânico, que fora abusada pelos membros, e que eram parte de um vasto grupo de satanistas. Pazder cunhou o termo “abuso ritual” para descrever a categoria dos crimes como os de Michelle, e, em setembro de 1990, afirmou em uma entrevista já ter desvendado “mais de 1000 casos”.

O livro deu um véu científico para uma outra onda do final dos anos 70, na cola do televangelismo: a de “ex-satanistas”, todos então fundamentalistas evangélicos, que diziam haver uma vasta rede de satanismo pelo país.

A história de Michelle simplesmente não batia com os fatos. Isso não impediu de, ao longo dos anos 80, mais de 12 mil casos terminassem investigados nos EUA, em acusações como prostituição forçada, tráfico de drogas, pornografia, abuso sexual, tortura, necrofilia, coprofilia, canibalismo de fetos… enfim, tudo de ruim em nome do Coisa Ruim. Nesses casos todos, jamais se provou haver uma real organização religiosa satanista, mas alguns casos reais partindo de indivíduos perturbados – psicopatas. As grande maioria das acusações partiam de crianças ou de pessoas relembrando “memórias reprimidas” sob hipnose, num contexto evangélico radical. Dezenas de pessoas foram presas sem provas definitivas, sob a acusação de participar da “rede satânica”, e várias continuam ainda hoje.

A ideia era parte da cultura popular mundial. Foi exportada para outros países e terminou sendo considerada pela grande maioria dos acadêmicos como um caso de pânico moral: um medo irracional e fantasioso da sociedade quase inteira, gerando uma teoria da conspiração socialmente aceita, que vai parar na grande imprensa. Como caça às bruxas original. E a maior prova é que quase não se ouve mais ouve falar disso hoje.

]]>
0
Ditadura, só de fotógrafos, disse general a dias do golpe de 64 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/05/28/ditadura-so-de-fotografos-disse-general-a-dias-do-golpe-de-64/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/05/28/ditadura-so-de-fotografos-disse-general-a-dias-do-golpe-de-64/#respond Thu, 28 May 2020 22:43:37 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/Kruel-1.jpg true https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=511 A ideia veio da angustiante especulação sobre qual seria a real posição das Forças Armadas numa possibilidade de golpe. Resolvi descobrir o que diziam os generais à beira do golpe de 1964. Particularmente, queria saber das possíveis (e prováveis) garantias dos generais de que não haveria golpe. Fiz isso por uma pesquisa no Acervo Folha.

Saí frustrado. “Golpe” nas notícias de então era só de esquerda: o golpe que supostamente o presidente João Goulart estaria prestes a dar em si próprio. Com uma irônica exceção:

Recorte da Folha 21/04/1964
Recorte da Folha em 21/03/1964, a 10 dias do golpe militar (Acervo Folha)

O porta-voz dos EUA garantia que o país era contra golpes. O final é profético: “Só saberemos a política de [Lindon] Johnson [presidente dos EUA] a respeito da democracia na América – disse um diplomata – quando houver um golpe de Estado”. Dias depois, os EUA mandariam um porta-aviões na direção do Brasil, para ajudar o grupo golpista numa possível guerra civil. A ajuda da Operação Brother Sam, como foi chamada, não foi necessária.

O mais perto de “garantia” que consegui encontrar por parte de militares brasileiros foi uma nota curtíssima, no dia anterior:

Recorte da Folha
Recorte da primeira página da Folha em 20/03/1964 (Acervo Folha)

Em 17 de março, num encontro com o ministro da Justiça de Jango, Abelardo Jurema, o general Amauri Kruel, responsável pelo II Exército, sediado em São Paulo, teve que posar mais de uma vez para a foto (a que abre  a matéria) retratando a suposta paz entre o Poder Executivo e os militares. Jurema falou que estavam se submetendo a uma “ditadura dos fotógrafos” e Kruel se saiu, sorrindo, com: “É a única ditadura que nós admitimos no país”.

Amauri Kruel aderiria ao golpe algo relutantemente: ligou duas vezes para Jango para tentar convencê-lo a excluir a esquerda do governo como forma de ter sua fidelidade. Segundo o depoimento do coronel do Exército reformado Erimá Pinheiro Moreira à Comissão da Verdade em 2014, Kruel foi subornado pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) para aderir ao golpe.

Se Kruel estava sendo sincero com Jango, sua condição tinha dois nomes: Jango devia remover do governo o chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, e ninguém menos que Abelardo Jurema, o ministro da Justiça com quem havia posado sorridente duas semanas antes. Após o golpe, o ministro teria seus direitos políticos cassados, pelo AI-1, e seguiria para o exílio. Isso torna a foto e a frase simbólicas.

Todo historiador sabe que é um erro pegar exemplos históricos para falar do presente. O que fiz foi uma pesquisa despretensiosa e primordial, que serve para um post, não uma tese. Mas, se esse pequeno achado ilustra alguma coisa, é a relação dos militares com o regime que criaram. Diz algo sobre a negação da natureza do regime pelos militares na época, tentando manter uma fachada democrática. E dos militares até hoje em admitir que “ditadura” é a palavra para o que seu regime foi.

]]>
0
Os nazistas desarmaram o povo? https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/05/27/os-nazistas-desarmaram-o-povo/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/05/27/os-nazistas-desarmaram-o-povo/#respond Wed, 27 May 2020 23:50:19 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/NAzis.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=505 Na reunião revelada na semana passada, Bolsonaro falou em “armar o povo contra a ditadura“. É um argumento importado da direita americana, do movimento pró-armas baseado em sua interpretação da Segunda Emenda da Constituição do país. Nessa mesma conversa de ditadura, também surge o argumento de que tiranos desarmam suas populações antes de dominá-las – e inalteravelmente, como prevê Godwin, Adolf Hitler surge na conversa. Armamentistas levantam que Hitler desarmou a população/os judeus, permitindo o Holocausto. E você não quer isso, quer?

A repressão às armas na Alemanha é de antes do nazismo. Após a Primeira Guerra, a República de Weimar, a Alemanha democrática que se seguiu à monarquia, impôs, em janeiro de 1919, a proibição total de armas de fogo e seu confisco. Uma das razões era a paz negociada com os aliados, que exigia o desarmamento do país, firmada posteriormente no Tratado de Versalhes, em junho. Outra era a instabilidade política, movimentos violentos de veteranos contrários ao novo governo democrático, organizados nos Freikorps (“Corpos Livres”, “corpo” aqui no sentido de unidade de infantria), que também combatiam as tentativas de revolução comunista. O movimento nazista foi fundado por ex-Freikorps, como Heinrich Himmler, e outros veteranos de guerra antidemocráticos, como o próprio Hitler. Os nazistas mostraram a razão para as leis ao tentarem derrubar o governo democrático no Putsch da Cerverjaria de 1923, uma tentativa de insurreição armada.

A lei foi relaxada em 1928, permitindo a posse sob licença para cidadãos de “boa reputação”. Foi mantida pelo governo nazista, que começaria em 30 de janeiro de 1933, até uma nova lei em 18 março de 1938, que é a que os movimentos pró-armas costumam citar. A nova lei proibiu judeus de produzir e vender armas, mas também:

  1. Desregulou completamente as armas longas (espingardas e escopetas, que não podem ser ocultas);
  2. Desregulou e a posse de munição;
  3. Reduziu a idade mínima para comprar uma arma de 20 para 18 anos;
  4. Estendeu as licenças de um para três anos;
  5. Deu posse livre a membros do governo (de qualquer ramo) e do Partido Nazista.

Isto é: nazistas não liberaram completamente, mas facilitaram a aquisição de armas para a maioria dos alemães, com exceção dos inimigos do Estado, que sofriam inúmeras outras restrições (e só perderam mesmo a posse numa lei posterior, do fim do ano).

Os alemães, o povo que poderia ficar “contra a tirania”, eram massivamente a favor e a tirania facilitou a eles se armarem. Quanto aos judeus, eram por volta de 0.5% da população alemã. É absurda a ideia de que poderiam se defender contra os outros 99,5% com armas de pequeno calibre (dados os números, nem que fossem porta-aviões). Entidades judaicas, como a Liga Anti-difamação dos EUA, condenam como um acinte a ideia de que o Holocausto poderia ter sido evitado se judeus pudessem, como nos EUA, comprar pistolas no supermercado.

]]>
0
Conheça 10 bandeiras que o Brasil não teve https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/05/20/10-bandeiras-que-o-brasil-nao-teve/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/05/20/10-bandeiras-que-o-brasil-nao-teve/#respond Wed, 20 May 2020 23:00:02 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/bandera.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=480 Ontem as redes estavam animadas com a proposta do influencer Felipe Neto de “ressignificar” a bandeira do Brasil, tomando-a de volta da extrema direita. Em meio a isso, surgiu um burburinho de gente que acredita que nossa pobre bandeira é um caso perdido e talvez precise de um redesign.

A atual bandeira do Brasil foi criada meio às pressas, em 4 dias, após a proclamação da República, e aprovada sem votação ou cerimônia, o que incomodou, como veremos, muita gente no começo do novo regime. É uma adaptação da bandeira do Império, na qual as cores representavam simplesmente a Casa de Bragança e a Casa de Habsburgo (de Dom Pedro e Maria Leopoldina), e o losango se estendia até a margem. O círculo celestial não parece, mas representa a velha esfera armilar, o símbolo mais antigo da nação. Era um objeto físico, que representa não a Terra, mas os astros na “esfera” do céu, dispostos em arcos móveis. Servia para guiar marinheiros no tempo das Grandes Navegações e daí se tornou o símbolo da maior posse colonial portuguesa.

Sem discutir o mérito da bandeira ou de seu uso político atual, não deixa de ser uma oportunidade para lembrar que poderíamos, de fato, ter uma bandeira muito diferente – e com significados diferentes. Veja a seguir.

1. BANDEIRA DO REINO DO BRASIL, 1816

Em 16 de dezembro de 1815, o Brasil foi elevado à condição de Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves. Nessa condição, o Reino do Brasil era uma entidade política própria, não mais mera colônia. Assim, precisava de uma bandeira própria. Numa Carta de Lei de 13 de maio de 1816, Dom João 6º descreveu a bandeira do Reino do Brasil como uma esfera armilar dourada (já usada antes como símbolo da colônia) num fundo azul. A bandeira, aparentemente, nunca foi feita.

Bandeira do Reino do Brasil (Imagem: Wikimedia Commons)

2. BANDEIRA DE DEBRET, 1820

Em 1820, Dom João 6º pediu ao pintor francês Jean-Baptiste Debret, em missão para retratar o Brasil, que criasse uma nova bandeira brasileira, também contendo a esfera armilar. O que ele queria – talvez até prevendo a independência – nunca ficou claro, mas, com alterações no escudo, a bandeira de Debret seria a base da bandeira do Império e, por herança, da atual.

Bandeira do Brasil independente por Debret, 1820 (Imagem: Wikimedia Commons)

3. BANDEIRA DE JÚLIO RIBEIRO, 1888

Antes do fim do Império, o militante republicano Paulista fez uma bandeira inspirada na dos Estados Unidos, mas com cores diferentes. O branco, preto e vermelho representam as raças do Brasil e as estrelas são a constelação do  Cruzeiro do Sul. Não aceita, numa versão com 13 faixas no lugar das 15 de Júlio, ela se tornaria símbolo do lado paulista na Revolução Constitucionalista (ou Guerra Civil?) de 1932, e quase certamente seria a nova bandeira do Brasil se vencessem. Como memória do conflito, se tornaria a bandeira de São Paulo em 1946.

Bandeira de Júlio Ribeiro (Imagem: Wikimedia Commons)

4. BANDEIRA DO CLUBE REPUBLICANO, 1889

Outra cópia da bandeira americana foi criada pelo republicano carioca Júlio de Trovão e, numa versão com uma cor diferente (azul claro) no escudo, hasteada nos primeiros quatro dias da República.

Bandeira por José Lopes da Silva Trovão (Imagem: Wikimedia Commons)

5. BANDEIRA DE SILVA JARDIM, 1890

O jornalista republicano mineiro Antônio de Silva Jardim foi um dos que não gostaram da bandeira oficial da República, parecida demais com a do Império, nem queria copiar a bandeira dos EUA. Seguindo a mesma ideia das três raças do Paulista Júlio Ribeiro, criou uma bandeira republicana – a República é representada pelo barrete frígio em cima do escudo, um símbolo que data de Roma Antiga, representando os escravos libertos, e usado como símbolo republicano na Revolução Francesa. Também traz de volta a velha esfera armilar, com uma âncora, para deixar clara a ligação com navegações.

Bandeira de Antônio de Silva Jardim (Imagem: Wikimedia Commons)

6. BANDEIRA DO BARÃO DO RIO BRANCO, 1890

O patrono da diplomacia brasileira também apresentou um projeto tricolor que não parecia a bandeira do Império nem a dos EUA, reintroduzindo também a Cruz da Ordem de Cristo, símbolo de Portugal, um sol à moda argentina e uruguaia, e com estrelas representando os Estados.

Projeto do Barão do Rio Branco (Imagem: Wikimedia Commons)

7. BANDEIRA DE OLIVEIRA VALADÃO, 1892

Com a ascensão do ditadorial Floriano Peixoto, o senador militar Manuel Prisciliano de Oliveira Valadão propôs militarizar a bandeira, colocando o brasão no meio.

Projeto de Oliveira Valadão (Imagem: Wikimedia Commons)

8. BANDEIRA DE EURICO DE GÓIS, 1908

Em seu livro Os Símbolos Nacionais, o advogado baiano criticou a adoção do lema positivista (“o slogan de uma pequena seita”) na bandeira brasileira, dizendo que uma bandeira devia fazer jus à tradição e à história de um povo. Também criticava o erro da configuração das estrelas no céu. Em seu lugar, propôs uma bandeira retomando as proporções da do Império (o losango até o canto), e um brasão lembrando quatro períodos da história do Brasil: a estrela branca é a República, o anel azul é o Império, a esfera armilar é o breve Reino sob Dom João, e a cruz é o Brasil-colônia.

Bandeira de Eurico de Góis, 1908 (Imagem: Wikimedia Commons)

9. BANDEIRA DE EURICO DE GÓIS, 1933

O agora político baiano voltou à carga novamente na Constituinte de 1933, desta vez concedendo aos positivistas da República o direito de figurarem com o círculo do Cruzeiro do Sul.

Bandeira de Eurico Góis, 1933 (Imagem: Wikimedia Commons)

10. BANDEIRA DE VENCESLAU ESCOBAR, 1908

Outro que não era fã do slogan positivista, o parlamentar gaúcho propôs, no mesmo 1908 em que Góis lançava seu livro, uma solução minimalista: arrancar a faixa. Foi um projeto de lei que ficaria engavetado por 20 anos, até ser reprovado.

Bandeira de Wenceslau Escobar, 1908 (Imagem: Wikimedia Commons)

 

]]>
0
Bolsonaro disse ‘Eu sou a Constituição’, mas Luís 14 nunca disse ‘O Estado sou eu’ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/20/bolsonaro-disse-eu-sou-a-constituicao-mas-luis-xiv-nunca-disse-eu-sou-o-estado/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/20/bolsonaro-disse-eu-sou-a-constituicao-mas-luis-xiv-nunca-disse-eu-sou-o-estado/#respond Mon, 20 Apr 2020 20:41:51 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/Louis_XIV_King_of_France_after_Lefebvre_-_Les_collections_du_château_de_Versailles.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=457 Luís 14 é considerado uma espécie de encarnação do Absolutismo. Seu reinado de 72 anos e 110 dias é o maior de qualquer monarca Europeu (Elizabeth 2ª  precisa de mais quatro anos para alcançá-lo). Ganhou o megalômano apelido de Rei Sol por escolher o Sol como seu símbolo, e gostar de ser comparado ao deus grego do Sol, Apolo. Também mencionavam a regularidade de seus horários.

Mas não porque, como se imagina hoje, o mundo girava em torno dele. O heliocentrismo, em 1643, quando ascendeu ao trono, ainda era polêmico entre católicos. Mas não seria mais na era do Iluminismo, quando Luís passou a simbolizar o que havia de errado com o Antigo Regime absolutista: centralizador, mercantilista, personalista, teocrático. Lembrado por episódios como quando expulsou os protestantes da França.

Foi nessa época que acabou registrada a frase que supostamente representava sua concepção de governo: L‘état, c’est moi, “O Estado Sou Eu”. Ninguém sabe quem escreveu isso primeiro, mas não há qualquer menção até o final do século 18, muitas décadas após o fim de seu reino, em 1715. Já denunciada como apócrifa no século 19, a frase continua a ser repetida como uma verdade de conhecimento comum até hoje. No rol de frases como: “Se eles não têm pão, que comam brioches!” (Maria Antonieta quase certamente jamais disse isso) e “Os fins justificam os meios” (Maquiavel escreveu um bem mais inofensivo: “É preciso considerar o resultado final”).

O CONSTITUCIONALÍSSIMO

A frase falsa leva a uma frase real de Jair Messias Bolsonaro. O presidente apareceu de manhã (dia 20/04/2020) dizendo: “A constituição sou eu”. Ou, mais exatamente: “Eu sou, realmente, a Constituição”. Isso foi comparado ao que Luis 14 não disse. Bolsonaro se pondo no lugar de um líder autocrático dizendo que ele determina o que é Constituição.

Mas o contexto era uma negação de ser alguém assim. Na mesma entrevista, afirmou: “Peguem o meu discurso. Não falei nada contra qualquer outro Poder. Muito pelo contrário. Queremos voltar ao trabalho, o povo quer isso. Estavam lá saudando o Exército brasileiro. É isso, mais nada. Fora isso é invencionice, tentativa de incendiar a nação que ainda está dentro da normalidade”. Chegou a repreender um fã que falou em fechar os outros poderes.

Enfim, o que ele quis dizer, provavelmente, é que é ultra-constitucional. O mais constitucional de todos. Constitucionalíssimo.

Mas a gente sabe o que Jair fez domingo passado. Liderou uma manifestação pedindo precisamente por rasgar a Constituição e realizar uma intervenção militar contra os outros poderes, em frente à sede do Exército, não menos. Gritou palavras de ordem como: “Nós não queremos negociar nada! Nós queremos ação pelo Brasil!” e “Chega da velha política! Agora é Brasil acima de tudo e Deus acima de todos!” Se não falou abertamente em golpe, não deve nem ser por medo das instituições, que continuam a deixar claro que absolutamente nada que fizer terá consequências além de protestos impotentes. Mas porque os golpes preferem chamar a si de “revolução”.

REI TREVAS

Se me permitem, vamos concluir com um desvio para a opinião. A fala de hoje se insere numa estratégia de negação plausível, escapar da responsabilidade, poder formalmente “provar” sua inocência.

A mensagem não é endereçada ao bolsonarista profundo, que o considera um enviado pelo Divino, e possivelmente não entende a fala “democrática” como razão para frustração. Ao contrário, é uma prova dele ser um homem bom demais para este mundo, que mantém a democracia como generosa concessão – até onde durar sua paciência.

A mensagem é para direitistas de outras estirpes na base, como guedistas, moristas e, mais que tudo, militares. A função dessa defesa formal é dar “provas” de que a oposição está sendo histérica, injusta, golpista, que só discorda dele por ter perdido as eleições. Que não há nada de anormal acontecendo. É o mesmo método usado quando uma fonte no governo solta alguma informação para, logo após a imprensa publicar, Bolsonaro aparecer negando ruidosamente, descreditando a “mídia lixo”. Para confirmar a notícia um tempo depois.

]]>
0
É na guerra que se muda de general, Maia! https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/10/guerra-muda-general/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/10/guerra-muda-general/#respond Fri, 10 Apr 2020 22:02:14 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/mcarthur-1.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=452 O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, afirmou em uma entrevista à Rádio Bandeirantes que acredita que o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, estejam a caminho de se entender, apesar da insubordinação do segundo ao plano/ideologia presidencial. Afirmou que Bolsonaro é militar e sabe que “no meio da guerra, mudar o general quatro estrelas não é o melhor momento”.

O nerd de história aqui ficou com seu radiador fervendo. E nem é sobre política, mas pela falta de lógica na frase que sabe-se lá de onde ele tirou. É justamente na guerra que se muda general, deputado! Devia ser óbvio. Na paz, um general incompetente pode bem ficar jogando bocha no quartel. Em guerra, a incompetência de um general leva à derrota e à mais completa ruína.

Quando um general é incompetente, pode acabar morto em campo de batalha, como Marco Licínio Crasso, membro do Primeiro Triunvirato que dominou de Roma, eliminado tolamente na Batalha de Carras, contra os partas, em 53 a.C. Outros preferem se retirar, como o também romano Varus, derrotado na Batalha da Floresta de  Teutoburgo (9 d.C.), ou o francês Pierre-Charles Villeneuve, perdedor da Batalha de Trafalgar (1805). Ambos preferiram se matar a enfrentar a reação em casa.

Porque a reação acontece. Em 106 a.C., Quinto Servílio Cepião foi condenado ao exílio e perda de cidadania romana por sua derrota em Aráusio, no ano anterior, que custara até 120 mil vidas romanas. Na Guerra Civil Americana, Lincoln teve que sacar George McClellan do comando, em 1862, por simplesmente se recusar a atacar. Na Primeira Guerra, a França passou por três comandantes: Joseph Joffre, removido por uma fragorosa derrota da Romênia em dezembro de 1916, Robert Nivelle, tirado em abril de 1917 pelo fracasso da ofensiva que leva seu nome, e, por fim, Philippe Pétain, com quem o país venceria, mas que, já velhinho, na Segunda Guerra, teria a desonra de atuar como o presidente marionete da França ocupada dos nazistas. Falando em Segunda Guerra, os soviéticos simplesmente executaram seu comandante da fase inicial, Dmitry Pavlov (ainda que alguns digam que Stalin estava só achando um bode expiatório). Na Guerra da Coreia, Douglas McArthur, visto como o grande vencedor do Teatro do Pacífico na Segunda Guerra, foi removido do cargo por insistir em querer escalar a guerra a ponto de planejar um ataque nuclear por conta.

E por aí vai. Em guerra, não existe essa conversa”estabilidade” – para que serviria estabilidade no caminho da derrota?

E aqui talvez aqui haja algo a dizer sobre a política de Maia – mas não estou pensando em Mandetta.

]]>
0