Flashback https://flashback.blogfolha.uol.com.br Tudo é história Thu, 27 Aug 2020 19:18:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 O Dia Mundial do Rock não é mundial, nem realmente do rock https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/07/13/o-dia-mundial-do-rock-nao-e-mundial-nem-do-rock/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/07/13/o-dia-mundial-do-rock-nao-e-mundial-nem-do-rock/#respond Mon, 13 Jul 2020 17:00:26 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/roque.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=575 Perdoem tirar o dia para chover na festa dos outros, mas é gatilho em roqueiro velho (pleonasmo?). O Dia Mundial do Rock é uma jabuticaba. Existem jabuticabas deliciosas, mas não consigo ver mcjabuticabas publicitárias (como o Dia dos Namorados) como algo que mereça ser chamado de rock’n’roll.

O Dia Mundial do Rock foi concebido em 13 de julho de 1985, quando o brutal roqueiro Phil Collins, criador dos hits derretedores de cara Invisible Touch e Paradise, no calor do momento de seu show no Live Aid, sugeriu que aquele dia passasse a ser conhecido como “Dia Mundial do Rock”. (Para quem não pegou a referência: Phil Collins era um astro pop vindo do rock progressivo; no máximo podia ser classificado como soft rock.)

O apelo foi solenemente ignorado pelo resto do planeta. Até, anos depois, ser lembrado por executivos das rádios de rock de São Paulo. Nos anos 90, as FMs 89 e 97 passaram a celebrar o “Dia Mundial do Rock” proposto por Phil Collins, numa tentativa de recuperar fãs do gênero que havia sido mainstream por alguns anos da década anterior, mas perdia espaço para o pagode e o sertanejo. Basicamente como o Dia dos Namorados do pai de João Doria, esse feito para vender roupas. Meio que colou. Não muito.

MEGA EVENTO

Fazendo 35 anos hoje, o Live Aid merece uma menção mais extensa que o Dia Mundial (Só No Brasil) do Rock. Foi uma iniciativa para arrecadar fundos para combater a fome na Etiópia, que, entre 1984 e 1985, matou cerca de 600 mil pessoas. Foram dois megaconcertos acontecendo em Londres e Filadélfia (EUA). Nomes mais que bem estabelecidos, e boa parte já na faixa dos quarenta anos de idade, como os Rolling Stones, Led Zeppelin e Black Sabbath. Alguns mais jovens (e mais pop), como U2, Duran Duran e Madonna. Phil em pessoa, que tinha 34 e começara sua carreira no progressivo Genesis, tinha razão para estar empolgado: havia se apresentado em Londres, pego um voo de Concorde, e fazia outro show no outro continente no mesmo dia.

Infelizmente, o esforço do Live Aid, assistido por 1,5 bilhão de espectadores, rendeu mais às gravadoras que aos etíopes. As músicas dispararam nas pardadas. Mas o dinheiro arrecadado, transferido ao governo Mengistu Haile Mariam, serviu para manter no poder um ditador que seria condenado por genocídio pelas autoridades etíopes em 2007, e segue no exílio até hoje. Mengistu foi acusado de usar de fundos para massacrar sua oposição e a oposição. E uma parte dessa oposição, o grupo guerrilheiro Frente de Libertação do Povo Tigré, também recebeu fundos e o empregou no combate.

Tanto Mengistu quanto a Frente se consideravam marxistas. Em 1990, Mengistu perdeu o apoio da União Soviética, renunciou ao marxismo e tentou reformas de mercado – para ser derrubado pela (também marxista, então adotando o socialismo democrático) Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope, que tomou a capital em 27 de maio. Foi o começo da atual democracia etíope.

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Caso Evandro: caça às bruxas nos anos 1990? https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/18/caso-evandro-caca-as-bruxas-nos-anos-1990/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/06/18/caso-evandro-caca-as-bruxas-nos-anos-1990/#respond Thu, 18 Jun 2020 18:37:35 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/Bruxas.jpg true https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=526 O assunto veio à tona hoje por conta do suposto envolvimento de Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro na casa de quem Fabrício Queiroz foi preso esta manhã. Em 1992, ele próprio chegou a ter sua prisão requerida, acusado de participar de uma seita que teria feito dois “rituais satânicos” homicidas.

Foi o caso chamado de Bruxas de Guaratuba. Um caso que parece ter tido todas características, o rigor (sua ausência) e a fantasia dos julgamentos de bruxaria da Idade Média.

Poderia ser só uma história medonha de serial killer. Em 6 de abril de 1992, o menino Evandro Ramos Caetano desapareceu em Guaratuba, Paraná. Cinco dias depois, seu corpo foi encontrado em com indícios de uma morte brutal: peito aberto, sem vísceras, olhos perfurados, mãos amputadas, escalpo tirado. Dias depois, o pai de santo Osvaldo Marcineiro confessou ter matado a criança num ritual satânico, por encomenda da esposa e filha do prefeito da cidade, Celina e Beatriz Abagge – as “bruxas”, que afirmaram estar esperando ganhar prosperidade com isso. Eles e outros faziam parte do Centro Espírita Beneficiente Abassá Deoe. As “bruxas”  confirmaram o depoimento do pai de santo. Outro caso que havia acontecido dois meses antes, o desaparecimento de outro menino, Leandro Bossi, cujo corpo não fora encontrado, entrou na investigação – foi então que Wassef, que era parte do grupo religioso, e esteve no hotel onde trabalhava a mãe de Leandro, teve sua prisão requerida pelo delegado responsável pelo caso. Wassef não chegou a ser preso, mas sua casa em Atibaia, São Paulo, foi revistada.

E depois retiraram a confissão. Aqui começam as semelhanças com a Idade Média: a população revoltada foi às ruas, emulando naquele estereótipo de multidão com tochas e forcados, para atacar a prefeitura e a casa do prefeito. As pessoas acusadas afirmaram que foram torturadas para confessar sua “bruxaria” – e entregar outros “bruxos”. Também disseram que, na cadeia, onde ficaram entre 1992 e 1995, os guardas temiam que fossem se transformar em uma nuvem de fumaça e escapar, por isso fechavam a solda a janela da cela. E que, em outra ocasião, os guardas se jogaram no chão por medo da lua poder empoderar seus feitiços.

Em 1998, acabaram inocentadas do caso, em júri popular, que durou 34 dias. No ano seguinte, o julgamento foi suspenso, e retomado novamente em 2011, quando Beatriz acabou condenada a 21 anos e 4 meses (a mãe foi dispensada pela idade avançada). Em 2016, Celina perdoada pelo Tribunal de Justiça do Paraná, pelo caso ser considerado muito frágil. Em meio a isso, Osvaldo Marcineiro, mais o pintor Vicente Paulo Ferreira e o artesão Davi dos Santos Soares foram condenados.

Em março passado, o jornalista Ivan Mizanzuk, que cobriu extensivamente o caso em seu podcast Projeto Humanos – Caso Evandro, mostrou as gravações do interrogatório, que tinham evidências que ele considerou conclusivas de todas as confissões terem ocorrido sob tortura.

Certamente a criança parece ter sido assassinada em condições brutais, num crime horrendo. Mas o caso, como foi reportado e investigado, é imensamente suspeito, não só pela tortura e ideias supersticiosas, como a menção a religiões afro-brasileiras. Isso é mais uma semelhança com a Era Medieval: lembra um libelo de sangue, a acusação de sacrifício infantil que era feita contra os judeus da cidade, terminando em pogrom (massacre). O pai de santo, pelo racismo religioso brasileiro, ocupa o lugar do judeu.

PÂNICO SATÂNICO

E há ainda o contexto internacional. Em 1992, vivia-se o pânico moral de seita satanista. A onda começou nos Estados Unidos, em 1980, com o lançamento do livro Michelle Remembers, do psiquiatra canadense Lawrence Pazder. Nele, ele falava de uma paciente sua, a Michelle (Smith) do título, que, sofrendo de depressão, lembrou-se durante hipnose que sua mãe, entre 1954 e 1955, quando Michelle tinha 5 anos de idade, participava de um culto satânico, que fora abusada pelos membros, e que eram parte de um vasto grupo de satanistas. Pazder cunhou o termo “abuso ritual” para descrever a categoria dos crimes como os de Michelle, e, em setembro de 1990, afirmou em uma entrevista já ter desvendado “mais de 1000 casos”.

O livro deu um véu científico para uma outra onda do final dos anos 70, na cola do televangelismo: a de “ex-satanistas”, todos então fundamentalistas evangélicos, que diziam haver uma vasta rede de satanismo pelo país.

A história de Michelle simplesmente não batia com os fatos. Isso não impediu de, ao longo dos anos 80, mais de 12 mil casos terminassem investigados nos EUA, em acusações como prostituição forçada, tráfico de drogas, pornografia, abuso sexual, tortura, necrofilia, coprofilia, canibalismo de fetos… enfim, tudo de ruim em nome do Coisa Ruim. Nesses casos todos, jamais se provou haver uma real organização religiosa satanista, mas alguns casos reais partindo de indivíduos perturbados – psicopatas. As grande maioria das acusações partiam de crianças ou de pessoas relembrando “memórias reprimidas” sob hipnose, num contexto evangélico radical. Dezenas de pessoas foram presas sem provas definitivas, sob a acusação de participar da “rede satânica”, e várias continuam ainda hoje.

A ideia era parte da cultura popular mundial. Foi exportada para outros países e terminou sendo considerada pela grande maioria dos acadêmicos como um caso de pânico moral: um medo irracional e fantasioso da sociedade quase inteira, gerando uma teoria da conspiração socialmente aceita, que vai parar na grande imprensa. Como caça às bruxas original. E a maior prova é que quase não se ouve mais ouve falar disso hoje.

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Os nazistas desarmaram o povo? https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/05/27/os-nazistas-desarmaram-o-povo/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/05/27/os-nazistas-desarmaram-o-povo/#respond Wed, 27 May 2020 23:50:19 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/NAzis.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=505 Na reunião revelada na semana passada, Bolsonaro falou em “armar o povo contra a ditadura“. É um argumento importado da direita americana, do movimento pró-armas baseado em sua interpretação da Segunda Emenda da Constituição do país. Nessa mesma conversa de ditadura, também surge o argumento de que tiranos desarmam suas populações antes de dominá-las – e inalteravelmente, como prevê Godwin, Adolf Hitler surge na conversa. Armamentistas levantam que Hitler desarmou a população/os judeus, permitindo o Holocausto. E você não quer isso, quer?

A repressão às armas na Alemanha é de antes do nazismo. Após a Primeira Guerra, a República de Weimar, a Alemanha democrática que se seguiu à monarquia, impôs, em janeiro de 1919, a proibição total de armas de fogo e seu confisco. Uma das razões era a paz negociada com os aliados, que exigia o desarmamento do país, firmada posteriormente no Tratado de Versalhes, em junho. Outra era a instabilidade política, movimentos violentos de veteranos contrários ao novo governo democrático, organizados nos Freikorps (“Corpos Livres”, “corpo” aqui no sentido de unidade de infantria), que também combatiam as tentativas de revolução comunista. O movimento nazista foi fundado por ex-Freikorps, como Heinrich Himmler, e outros veteranos de guerra antidemocráticos, como o próprio Hitler. Os nazistas mostraram a razão para as leis ao tentarem derrubar o governo democrático no Putsch da Cerverjaria de 1923, uma tentativa de insurreição armada.

A lei foi relaxada em 1928, permitindo a posse sob licença para cidadãos de “boa reputação”. Foi mantida pelo governo nazista, que começaria em 30 de janeiro de 1933, até uma nova lei em 18 março de 1938, que é a que os movimentos pró-armas costumam citar. A nova lei proibiu judeus de produzir e vender armas, mas também:

  1. Desregulou completamente as armas longas (espingardas e escopetas, que não podem ser ocultas);
  2. Desregulou e a posse de munição;
  3. Reduziu a idade mínima para comprar uma arma de 20 para 18 anos;
  4. Estendeu as licenças de um para três anos;
  5. Deu posse livre a membros do governo (de qualquer ramo) e do Partido Nazista.

Isto é: nazistas não liberaram completamente, mas facilitaram a aquisição de armas para a maioria dos alemães, com exceção dos inimigos do Estado, que sofriam inúmeras outras restrições (e só perderam mesmo a posse numa lei posterior, do fim do ano).

Os alemães, o povo que poderia ficar “contra a tirania”, eram massivamente a favor e a tirania facilitou a eles se armarem. Quanto aos judeus, eram por volta de 0.5% da população alemã. É absurda a ideia de que poderiam se defender contra os outros 99,5% com armas de pequeno calibre (dados os números, nem que fossem porta-aviões). Entidades judaicas, como a Liga Anti-difamação dos EUA, condenam como um acinte a ideia de que o Holocausto poderia ter sido evitado se judeus pudessem, como nos EUA, comprar pistolas no supermercado.

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Bolsonaro disse ‘Eu sou a Constituição’, mas Luís 14 nunca disse ‘O Estado sou eu’ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/20/bolsonaro-disse-eu-sou-a-constituicao-mas-luis-xiv-nunca-disse-eu-sou-o-estado/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/20/bolsonaro-disse-eu-sou-a-constituicao-mas-luis-xiv-nunca-disse-eu-sou-o-estado/#respond Mon, 20 Apr 2020 20:41:51 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/Louis_XIV_King_of_France_after_Lefebvre_-_Les_collections_du_château_de_Versailles.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=457 Luís 14 é considerado uma espécie de encarnação do Absolutismo. Seu reinado de 72 anos e 110 dias é o maior de qualquer monarca Europeu (Elizabeth 2ª  precisa de mais quatro anos para alcançá-lo). Ganhou o megalômano apelido de Rei Sol por escolher o Sol como seu símbolo, e gostar de ser comparado ao deus grego do Sol, Apolo. Também mencionavam a regularidade de seus horários.

Mas não porque, como se imagina hoje, o mundo girava em torno dele. O heliocentrismo, em 1643, quando ascendeu ao trono, ainda era polêmico entre católicos. Mas não seria mais na era do Iluminismo, quando Luís passou a simbolizar o que havia de errado com o Antigo Regime absolutista: centralizador, mercantilista, personalista, teocrático. Lembrado por episódios como quando expulsou os protestantes da França.

Foi nessa época que acabou registrada a frase que supostamente representava sua concepção de governo: L‘état, c’est moi, “O Estado Sou Eu”. Ninguém sabe quem escreveu isso primeiro, mas não há qualquer menção até o final do século 18, muitas décadas após o fim de seu reino, em 1715. Já denunciada como apócrifa no século 19, a frase continua a ser repetida como uma verdade de conhecimento comum até hoje. No rol de frases como: “Se eles não têm pão, que comam brioches!” (Maria Antonieta quase certamente jamais disse isso) e “Os fins justificam os meios” (Maquiavel escreveu um bem mais inofensivo: “É preciso considerar o resultado final”).

O CONSTITUCIONALÍSSIMO

A frase falsa leva a uma frase real de Jair Messias Bolsonaro. O presidente apareceu de manhã (dia 20/04/2020) dizendo: “A constituição sou eu”. Ou, mais exatamente: “Eu sou, realmente, a Constituição”. Isso foi comparado ao que Luis 14 não disse. Bolsonaro se pondo no lugar de um líder autocrático dizendo que ele determina o que é Constituição.

Mas o contexto era uma negação de ser alguém assim. Na mesma entrevista, afirmou: “Peguem o meu discurso. Não falei nada contra qualquer outro Poder. Muito pelo contrário. Queremos voltar ao trabalho, o povo quer isso. Estavam lá saudando o Exército brasileiro. É isso, mais nada. Fora isso é invencionice, tentativa de incendiar a nação que ainda está dentro da normalidade”. Chegou a repreender um fã que falou em fechar os outros poderes.

Enfim, o que ele quis dizer, provavelmente, é que é ultra-constitucional. O mais constitucional de todos. Constitucionalíssimo.

Mas a gente sabe o que Jair fez domingo passado. Liderou uma manifestação pedindo precisamente por rasgar a Constituição e realizar uma intervenção militar contra os outros poderes, em frente à sede do Exército, não menos. Gritou palavras de ordem como: “Nós não queremos negociar nada! Nós queremos ação pelo Brasil!” e “Chega da velha política! Agora é Brasil acima de tudo e Deus acima de todos!” Se não falou abertamente em golpe, não deve nem ser por medo das instituições, que continuam a deixar claro que absolutamente nada que fizer terá consequências além de protestos impotentes. Mas porque os golpes preferem chamar a si de “revolução”.

REI TREVAS

Se me permitem, vamos concluir com um desvio para a opinião. A fala de hoje se insere numa estratégia de negação plausível, escapar da responsabilidade, poder formalmente “provar” sua inocência.

A mensagem não é endereçada ao bolsonarista profundo, que o considera um enviado pelo Divino, e possivelmente não entende a fala “democrática” como razão para frustração. Ao contrário, é uma prova dele ser um homem bom demais para este mundo, que mantém a democracia como generosa concessão – até onde durar sua paciência.

A mensagem é para direitistas de outras estirpes na base, como guedistas, moristas e, mais que tudo, militares. A função dessa defesa formal é dar “provas” de que a oposição está sendo histérica, injusta, golpista, que só discorda dele por ter perdido as eleições. Que não há nada de anormal acontecendo. É o mesmo método usado quando uma fonte no governo solta alguma informação para, logo após a imprensa publicar, Bolsonaro aparecer negando ruidosamente, descreditando a “mídia lixo”. Para confirmar a notícia um tempo depois.

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É na guerra que se muda de general, Maia! https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/10/guerra-muda-general/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/10/guerra-muda-general/#respond Fri, 10 Apr 2020 22:02:14 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/mcarthur-1.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=452 O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, afirmou em uma entrevista à Rádio Bandeirantes que acredita que o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, estejam a caminho de se entender, apesar da insubordinação do segundo ao plano/ideologia presidencial. Afirmou que Bolsonaro é militar e sabe que “no meio da guerra, mudar o general quatro estrelas não é o melhor momento”.

O nerd de história aqui ficou com seu radiador fervendo. E nem é sobre política, mas pela falta de lógica na frase que sabe-se lá de onde ele tirou. É justamente na guerra que se muda general, deputado! Devia ser óbvio. Na paz, um general incompetente pode bem ficar jogando bocha no quartel. Em guerra, a incompetência de um general leva à derrota e à mais completa ruína.

Quando um general é incompetente, pode acabar morto em campo de batalha, como Marco Licínio Crasso, membro do Primeiro Triunvirato que dominou de Roma, eliminado tolamente na Batalha de Carras, contra os partas, em 53 a.C. Outros preferem se retirar, como o também romano Varus, derrotado na Batalha da Floresta de  Teutoburgo (9 d.C.), ou o francês Pierre-Charles Villeneuve, perdedor da Batalha de Trafalgar (1805). Ambos preferiram se matar a enfrentar a reação em casa.

Porque a reação acontece. Em 106 a.C., Quinto Servílio Cepião foi condenado ao exílio e perda de cidadania romana por sua derrota em Aráusio, no ano anterior, que custara até 120 mil vidas romanas. Na Guerra Civil Americana, Lincoln teve que sacar George McClellan do comando, em 1862, por simplesmente se recusar a atacar. Na Primeira Guerra, a França passou por três comandantes: Joseph Joffre, removido por uma fragorosa derrota da Romênia em dezembro de 1916, Robert Nivelle, tirado em abril de 1917 pelo fracasso da ofensiva que leva seu nome, e, por fim, Philippe Pétain, com quem o país venceria, mas que, já velhinho, na Segunda Guerra, teria a desonra de atuar como o presidente marionete da França ocupada dos nazistas. Falando em Segunda Guerra, os soviéticos simplesmente executaram seu comandante da fase inicial, Dmitry Pavlov (ainda que alguns digam que Stalin estava só achando um bode expiatório). Na Guerra da Coreia, Douglas McArthur, visto como o grande vencedor do Teatro do Pacífico na Segunda Guerra, foi removido do cargo por insistir em querer escalar a guerra a ponto de planejar um ataque nuclear por conta.

E por aí vai. Em guerra, não existe essa conversa”estabilidade” – para que serviria estabilidade no caminho da derrota?

E aqui talvez aqui haja algo a dizer sobre a política de Maia – mas não estou pensando em Mandetta.

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Democracia tutelada: a maldição da Anistia https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/01/ditadura-anistia/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/04/01/ditadura-anistia/#respond Wed, 01 Apr 2020 20:33:22 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/Ditadura.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=423 O vice Mourão, que cada dia mais parece próximo a ser o próximo, apareceu ontem com um tweet de – não dá pra concluir de outra forma – apologia à ditadura militar:

Há 56 anos, as FA intervieram na política nacional para enfrentar a desordem, subversão e corrupção que abalavam as instituições e assustavam a população. Com a eleição do General Castello Branco, iniciaram-se as reformas que desenvolveram o Brasil.

Vamos tentar passar isso por um filtro de realidade: vivemos um regime civil iniciado em 1985 após uma ampla campanha pelo fim do que era chamado, nessa campanha, de ditadura. Uma nova constituição foi entregue, o que quer dizer que não foi reforma; foi revolução. Até a guerra civil que exigia uma constituição democrática ganhou o prêmio de consolação de ser chamada de “Revolução Constitucionalista” porque veio uma constituição (já prometida e na data marcada). Nosso regime é um sucessor espiritual da democracia anterior, a Quarta República de de JK e João Goulart, mas não da ditadura ou sua “revolução de 1964”, como preferia ser chamada.

O que Mourão está fazendo na prática é dar uma declaração de fidelidade a um regime antagonístico. E essa postura não tem nada de exótica nas Forças Armadas brasileiras, ainda que costume vir com uma reafirmação formal de sua submissão ao regime democrático. É o duplipensar militar: sob o comando de uma democracia, demonstram fidelidade a um regime que a destruiu a democracia, com se não houvesse contradição. É, não sei se o bom Godwin me permite a comparação, como se oficiais da Bundeswehr, as forças armadas da Alemanha democrática, saíssem fazendo declarações de que o nazismo era necessário. (Pra ficar claro: a comparação é da fidelidade errada, não entre os militares da ditadura e nazistas.) Para ficar num exemplo próximo e menos dramático: que oficiais da Argentina, Uruguai ou Chile demonstrassem fidelidade às suas ditaduras. Isso seria visto como absurdo por lá e devia ser aqui também. A condição para a existência de forças armadas democráticas é (ou devia ser) que não demonstrem simpatia a golpes militares. Caso contrário, fica a séria suspeita de constituírem não os defensores da democracia que dizem ser, mas uma quinta coluna à espera de atacar.

Essa é a Maldição da Anistia. Quando, em 28 de agosto de 1979, num gesto “generoso”, os militares perdoaram os que se opuseram ao seu regime, violentamente ou não, perdoaram a si próprios. Essa impunidade foi a imposição para que aceitassem sair do poder. Um gesto de intimidação à democracia antes da democracia começar. Durante toda a segunda metade dos anos 80, quando certo tenente Bolsonaro era acusado de entreter sua mente com explosivos, uma conversa de “inquietude nos quartéis” pairava como um cúmulo-nimbo sobre a liberdade reconquistada. Pairaria até pelo menos 1989, quando a conversa era que, se Lula vencesse, a ditadura voltava.

Foi sob essa “inquietude” – eufemismo para “intimidação” – que a Sexta República aceitou o autoperdão dos militares. E ouça, caro direitista: o fim da Anistia significaria realizar o sonho dos militares de também levar os crimes da esquerda a julgamento. Julgamento democrático, legal, constitucional; não morrer por um torturador decidindo ser juiz, algo que era proibido pelas leis da própria ditadura. Do jeito que foi, os militares preferiram simplesmente ficar de lado, com sua narrativa própria, na qual nos impuseram 21 anos de ditadura para salvar a democracia. Não se viram obrigados a assumir um real compromisso de fidelidade ao novo regime, que é aceitar o significado da mudança histórica para esse regime.

A quinta coluna continua a nos intimidar hoje: será que podemos reconhecer o absurdo, o ridículo que é precisarmos saber da opinião de generais para remover um presidente acusado de violar a Constituição e ser uma ameaça à saúde pública? De onde vem essa consulta? Que poder lhes dá a Constituição? Se nossa democracia é intimidada por essa mesma sombra desde 1985, se nossa democracia só existe como uma concessão dos militares, dá pra dizer que somos – ou fomos – uma democracia real? Um regime que nasceu intimidado, forçado a aceitar a Anistia. E que parece ter um limite sobre o que pode decidir, limite imposto por uma ameaça de uso ilegal da força.

Não estou sugerindo um grande expurgo em 1988. Voltando à Alemanha: a Bundeswehr nasceu em 1955 e fez uso de nazistas: não era exatamente fácil achar oficiais alemães sem um passado dez anos depois da guerra. Mas os nazistas tinham que fechar o bico e a revelação de um passado ou opiniões problemáticas dava escândalo e podia significar expulsão.

Dizem que a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude. Mas devíamos parar de subestimar o quanto a hipocrisia é algo superior à apologia ao vício. Hipocrisia é um problema pessoal; a apologia é de todos. Em 1988, o Brasil devia ter, no mínimo, imposto aos militares a hipocrisia.

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Eyam: a vila que se sacrificou pela quarentena, e salvou milhares https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/28/eyam-a-cidade-que-se-sacrificou-pela-quarentena-e-salvou-milhares/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/28/eyam-a-cidade-que-se-sacrificou-pela-quarentena-e-salvou-milhares/#respond Sat, 28 Mar 2020 18:24:57 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/eyam.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=417 O conceito de quarentena surgiu durante a Grande Peste de 1348. Em Veneza, navios que chegavam à cidade eram obrigados a parar numa ilha próxima à cidade, hoje chamada Lazaretto Vecchio, por 40 dias antes de poder descarregar. Lá, ainda hoje arqueólogos topam com valas coletivas.

A peste bubônica continuaria a castigar a humanidade muito depois da pandemia medieval que removeu até um terço da população da Europa. Surtos continuaram a ocorrer até a criação da medicina científica no final do século 19.

Um deles seria o de Londres em 1665, que mataria até 100 mil pessoas, ou um quarto da população do lugar que disputava com Paris o título de maior cidade do mundo cristão. Foi em setembro desse ano que o alfaiate da pequena vila de Eyam – então com, estima-se, 800 habitantes e ainda hoje com menos de 1000 – recebeu um carregamento de tecidos da capital. Neles, pulgas contaminadas. Em seis semanas, as 29 primeiras vítimas haviam perecido.

O surto pareceu arrefecer ao fim do ano, com a chegada do inverno e, em maio de 1666, não havia mais nenhum caso. Foi quando a doença renasceu na forma pneumônica, mais fácil de passar. E, diante disso, houve uma troca de liderança. O reitor – o equivalente a padre na Igreja Anglicana, que não usa o título protestante de “pastor” – William Mompesson tomou o lugar do puritano Thomas Stanley como líder da cidade, com a promessa de tomar medidas enérgicas. E tomou. O religioso devisou um plano tanto radical quanto altruísta: Eyam entraria em quarentena voluntária e absoluta. A cidade ficava numa rota comercial importante entre Sheffield e Manchester, e poderia arrasar os dois centros urbanos.

Um círculo de pedras foi estabelecido a uma milha (1.609 m) do centro da cidade. Ninguém entrava nem saía. Os habitantes sobreviviam de comprar alimentos na borda do círculo, pagando com moedas embebidas em vinagre, o que acreditavam poder desinfetá-las.

Rapidamente, a pequena vila se tornou um cenário desolador. As pessoas tiveram que enterrar seus próprios entes queridos. Elizabeth Hancock, uma das moradoras da cidade, teve que, em oito dias, enterrar seus seis filhos e o marido. O reverendo Mompesson determinou que os cultos passassem a ser celebrados ao ar livre, e muitos dos sobreviventes foram os que se isolaram em choças longe do centro da vila. Em uma carta, o líder descreveu a situação: “Meus ouvidos nunca escutaram tamanha e tão dolorosa lamentação. Meu nariz nunca percebeu cheiros tão horrendos, e meus olhos nunca contemplaram espetáculos tão tétricos. Era o Gólgota, um lugar de caveiras”.

Sob a enérgica liderança de Mompesson, que sobreviveria, mas perderia a esposa, a quarentena iria até o fim. Os números são discutidos ainda hoje entre historiadores: Eyam pode ter perdido 260 mortos de uma população de 350, ou 370 de 800, ou 273 (o número oficial registrado na paróquia) de 800. Seja como for, em seu sacrifício abnegado, correto e visto como muito cristão, a vila evitou que qualquer cidade próxima fosse contaminada, e que o surto no país fosse pior, talvez salvando centenas de milhares. Ainda hoje, todo primeiro domingo de agosto, o sacrifício é relembrado na paróquia da vila. Na cultura britânica, o martírio de Eyam foi celebrado em verso, prosa, teatro, música e até óperas.

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Thyphoid Mary: sem ficar doente, ela matou dezenas https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/27/thyphoid-mary-sem-ficar-doente-ela-matou-dezenas/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/27/thyphoid-mary-sem-ficar-doente-ela-matou-dezenas/#respond Fri, 27 Mar 2020 21:44:52 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Mallon-Mary_01.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=412 Seu nome era Mary Mallon e ela era, como muitos milhares, uma imigrante da Irlanda para Nova York. Seu país perderia, naquele século 19, um terço de sua população para a fome, e um terço para a emigração. Aos seus 21 anos, em 1900, ela daria início a uma meteórica carreira de cozinheira para os grã-finos nova-iorquinos. Aparentemente, ela era excelente no que fazia: pelos anos que se seguiriam, trabalho nunca faltaria. Mesmo matando, sem querer, talvez dezenas de seus empregadores.

Já em seu primeiro emprego, após duas semanas de trabalho, as pessoas da casa pegaram febre tifoide: uma doença intestinal grave causada por bactérias do gênero Salmonella, uma cepa específica, que não é a mesma que pode contaminar ovos de galinha. A tifoide é letal em até 20% dos casos, o que pode ser diminuído para 1% com tratamento moderno – mas não de 1900. Passa de pessoa em pessoa pela rota fecal-oral, o que é tão ruim quanto soa: o contágio se dá por alimentos contaminados por fezes do doente. Mary Mallon, uma portadora completamente assintomática, podia ser a rainha dos temperos, mas higiene não era seu forte.

No segundo emprego, no ano seguinte, Mallon causaria a primeira morte: a lavadeira da família. No terceiro, na casa de um advogado, sete dos oito membros da família ficaram hospitalizados. E o padrão continuaria por toda sua carreira: Mary arranja um emprego, todo mundo fica doente, Mary some e arranja emprego em outro lugar. Sempre arranjava.

Foi preciso um detetive biológico para acabar com seu rastro de doença: o engenheiro sanitário George Soper, contratado por uma das famílias afetadas, entrevistou as vítimas e traçou uma rota da doença em Nova York. Só famílias ricas pegavam, não havia uma epidemia. Concluiu que a cozinheira era a responsável, entrou em contato e tentou pedir que ela que colaborasse com um exame de fezes, para ser recusado repetidas vezes. Até mesmo propôs a escrever um livro com ela e dividir os direitos autorais, mas Mary tratava a ideia de estar contaminando as pessoas como um insulto. Em 1907, acabou internada à força pela autoridade sanitária de Nova York, baseada no trabalho de Soper, e ficaria três anos em quarentena num sanatório em North Brother Island. Na imprensa nova-iorquina, ganharia a alcunha pela qual entraria na história: Thyphoid Mary, a Maria Tifoide.

Em 1910, sob a promessa de nunca mais atuar como cozinheira, Mallon libertada. Por anos, ela tentou cumprir a promessa, atuando como lavadeira, mas o dinheiro não era o bastante e ela não conseguia satisfazer sua vocação. Mudando de nome para Mary Brown, e depois vários outros nomes falsos, conseguiu ser novamente empregada como cozinheira. Um novo ciclo de contaminação começou, e, desta vez, o investigador Soper não conseguiu encontrá-la. E Typhoid Mary acabou ousando: seu último emprego seria em nada menos que um hospital: o Hospital Sloane para Mulheres. Quando 25 pessoas ficaram doentes, e duas morreram, em novembro de 1915, a polícia foi acionada e a cozinheira acabou presa de volta no antigo asilo.

Maria Tifoide passaria o resto da vida, até 1937, em quarentena. Oficialmente, três mortes foram ligadas diretamente à ela, mas estimativas de alguns historiadores, considerando todos os casos entre os ricos de Nova York, chegam a 50 vítimas fatais.

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Para o bolsolavismo, hoje é o dia do Ki-Suco https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/15/bolsolavismo-protesto-jim-jones/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/15/bolsolavismo-protesto-jim-jones/#respond Sun, 15 Mar 2020 18:55:31 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Jones-300x215.png https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=404 É quase um clichê na oposição comparar o bolsolavismo fanático com uma seita. Mas hoje, quando os mais exaltados fãs vão às ruas manifestar-se contra as instituições no começo de uma epidemia, a coisa assume um sentido literal. Em nome do líder, que apareceu para apoiar o movimento, entregam-se potencialmente à própria morte —e a faixa etária dos manifestantes torna o risco bem concreto. Neste dia, os bolsolavistas estão tomando Ki-Suco.

A expressão “tomar o Ki-Suco” nasceu em 18 de novembro de 1978, quando o líder da seita Templo do Povo, Jim Jones, ordenou que fossem preparados tambores industriais de refresco de uva (a marca não era Ki-Suco, chamado de Kool Aid em inglês, mas Flavor Aid). Dentro, foram colocados diazepan, hidrato de cloral, prometazina e cianeto de potássio (só o último é um veneno propriamente dito, os três primeiros são sedativos). Os membros da seita fizeram fila para tomar o refresco, após o que se sentavam no chão e morriam em 30 minutos (5 para crianças). Ao final do dia, havia 918 mortos em Jonestown, uma chácara na Guiana rural, transformada em sede da seita, cercada e vigiada com guaritas, como um presídio.

O que as pessoas não costumam saber sobre Jonestown é que não foi simplesmente todo mundo andando para a morte calmamente. Os primeiros não tinham certeza se era mesmo veneno —muitas vezes antes, nos últimos meses, Jones havia ordenado o mesmo ritual, como um teste de fidelidade, sem usar veneno. Havia seguranças armados garantindo que todos tomassem sua parte —e, de fato, os seis sobreviventes que conseguiram escapar afirmaram ter ouvido tiros. Jones em si se matou com um tiro de revólver na cabeça.

A seita gerou uma cena dantesca, num século repleto de cenas assim, de quase mil cadáveres espalhados no chão, se decompondo visivelmente no calor equatorial. Mas as mortes pararam ali. O bando de fanáticos irresponsáveis comandados por um presidente irresponsável não está só tomando o Ki-Suco, mas forçando, como os seguranças de Jonestown, os outros a tomar.

Possivelmente dando um baita empurrão na epidemia de Covid-19 que não fazemos ideia de qual tamanho já tem —como leva até duas semanas para se manifestar, milhares podem já estar contaminados. Não vai terminar bem.

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Pare de dizer milícia; o nome é máfia https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/11/pare-de-dizer-milicia-o-nome-e-mafia/ https://flashback.blogfolha.uol.com.br/2020/03/11/pare-de-dizer-milicia-o-nome-e-mafia/#respond Wed, 11 Mar 2020 22:53:55 +0000 https://flashback.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/15812743505e4054eed2e0f_1581274350_3x2_xl-300x215.jpg https://flashback.blogfolha.uol.com.br/?p=395 Milícia é atualmente a palavra mais nociva do português brasileiro. É preciso urgentemente parar de usá-la. A Folha devia parar. Todo mundo devia.

A dita “milícia” do Rio de Janeiro (daqui por diante, só com aspas) merece ser chamada simplesmente de Máfia do Rio de Janeiro (com maiúsculas, como Cosa Nostra e Camorra). Enquanto os traficantes são outra forma de crime organizado presente na cidade, eles não tem o alcance no Estado e negócios típico de organizações que são chamadas de “máfia” pelo mundo afora. Nenhum político apareceu dizendo para legalizar o narcotráfico. E talvez nem Flávio Bolsonaro ousasse se estivéssemos falando a palavra certa.

A “milícia” se parece inclusive com a mais clássica das máfias. A definição talvez mais canônica de máfia é no Código Penal Italiano. O artigo 416-bis diz que uma organização pode ser caracterizada como mafiosa se:

Aqueles que pertencem à associação exploram o potencial para intimidação que sua condição de associados permite, e a obediência e omertà que deriva dessa condição leva à prática de crimes, ao controle direto ou indireto da administração ou liderança de atividades financeiras, concessões, permissões, negócios, e serviços públicos, com o propósito de conseguir lucro ou vantagens injustas para si próprios ou outros.

A única coisa acima que não parece se aplicar à Máfia do Rio é a omertà, nome usado para o pacto de silêncio da máfia italiana. Mas não é como se alguém pudesse sair da “milícia” apontando os nomes de seus membros secretos sem consequências. Não teria sido a morte do mafioso Adriano, herói de Bolsonaro, uma ação para impor a omertà?

PALAVRA MALDITA

Mas o que é uma milícia? É uma força paramilitar, civis reunidos para alguma atividade militar. Milícias de cidadãos começaram a Revolução Americana, em 1776 – e o termo “milícia bem organizada” está até hoje na Constituição dos EUA. Milícia também era a Guarda Vermelha dos bolcheviques, em 1917, e a União Soviética e a Iugoslávia comunista chamavam suas forças policiais de “milícia”. A “milícia” do Rio ganhou esse nome porque se organizaram para conquistar morros do narcotráfico, e já eram membros de organizações militares ou paramilitares, como a PM. Mas isso sempre transmitiu a ideia errada: eles não tomaram os morros para trazê-los ao Império da Lei, mas fizeram uma conquista de território de organizações rivais, típica de máfias, que rendeu e rende a eles muito lucro. E uma máfia com origem militar não merece ser chamada de outra forma: a Máfia Russa foi formada principalmente por ex-agentes da KGB e veteranos da Guerra do Afeganistão. Ninguém chama de “milícia russa”.

Se fosse só um erro semântico, não faria sentido eu chamar de “palavra mais nociva da língua portuguesa”. Mas a palavra “milícia” distorce grotescamente a gravidade e o significado do que estamos falando. O brasileiro, em geral, não tem nada contra militar: as Forças Armadas seguem sendo a organização mais bem-avaliada do país. “Milícia”, assim, particularmente para quem não é do Rio, dá um certo ar de dignidade, de guerreiro com uma causa, à Máfia Carioca. Não é difícil ler como um grupo de policiais particularmente durões, à Dirty Harry, que foi contra as leis “frouxas”, baseadas nos “direitos humanos”, para derrotar o narcotráfico – certamente a Máfia prefere ser vista assim.

E isso se reflete na situação política do Brasil. A Máfia matou Marielle Franco. Porque investigava a Máfia, não porque queria prender um grupo de policiais excessivamente durões em nome dos direitos humanos de “esquerda”.

O extremismo de direita brasileiro tem como uma de suas causas principais o combate ao crime pela via da brutalidade policial e a “milícia” é intimamente ligada com essa brutalidade. A brutalidade é a escola da intimidação. E uma forma como um policial, mesmo se “honesto”, torna-se um fora da lei, dando um trunfo para a Máfia recrutá-lo: o medo da punição. Não sabemos se e quanto a Máfia Carioca está infiltrada nas outras polícias. Mas os métodos do motim no Ceará –fechar o comércio, intimidar –são típicos da Máfia.

É parte da cultura popular, amplamente reproduzida em programas policialescos, que a solução para o crime é esse policial criminoso. E esses programas provavelmente são muito maiores que Olavo de Carvalho ou memes no WhatsApp em propagar a extrema direita no Brasil. Eles o tem feito por décadas. O maior ponto de aprovação de nosso governo extremista é justamente sua política de segurança. Política que se resumiu, basicamente, a tentar tornar mais difícil a punição a abusos policiais, o ponto mais central do Pacote Anticrime. Que não passou. Então a “política” tem sido um espírito de liberou geral nas forças policiais. PMs são estaduais e não respondem ao presidente, mas se sentem justificadas por suas palavras (e as do governador carioca e de outros extremistas ou plagiários). Os números da violência policial provam isso.

Essa impressão de dureza contra o crime segue firme diante de uma suspeita extremamente grave, na direção oposta: a de que a família presidencial, incluindo possivelmente o próprio mandatário da nação, está ou esteve ligada com as… “milícias”? PMs durões? Quem liga?

A família presidencial é suspeita de ligação com a Máfia Carioca.

Enquanto usarmos a palavra errada, o brasileiro médio não vai acordar para o fato de que estamos discutindo se o Brasil não elegeu a máfia para combater o crime.

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